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“J’ai perdu mon corps”: Ferenczi e a Fragmentação

Writer: Csongor JuhosCsongor Juhos

Por Jorge Câmara


A fixação a objectos não humanos, e as angústias de fragmentação fizeram-me pensar num filme de animação recente chamado “j’ai perdu mon corps”.


Este filme de animação conta a história de um menino, Naoufel ,que queria ser astronauta e pianista, envolvido num terrível acidente de carro que ceifou a vida dos pais e. de uma mão decepada à procura de um corpo. A mão estava guardada ,provavelmente para ser dissecada ,num qualquer necrotério dum hospital, mas escapa-se numa ânsia febril de quem estava à procura da sua Ítaca. No filme está presente a importância do toque, do contacto das mãos e dos sons. Ouvem-se pouco as vozes ou palavras, mas cria-se um ambiente afetivo e pré-verbal que, desde o início ,impõe uma tensão entre os fragmentos e o todo.




O que faz aquela mão, fria, solitária que se escapa dum frigorífico e que, numa fuga desenfreada, vai sobrevivendo? De que corpo foi separada? Simultaneamente constatamos ,entre flash backs ,que Nauofel obsessivamente gravava o seu quotidiano. Esse passatempo começara anteriormente ao trauma do acidente. Seria o modo de reter algo que o trauma posterior apagaria, uma validação da sua vida? Porque confiar na gravação dum quotidiano? Teria a gravação do discurso parental estado ausente e teria ocorrido uma confusão de línguas sendo a única validação possível a gravação de todas as sonoridades envolventes naquele objecto tornado fiável?


Naoufel ficou um sobrevivente, solitariamente acompanhado pelos seus registos sonoros, talvez uma possibilidade de introjectar o que fora incorporado de um modo violento, como se a gravação fosse certeza da sua existência. Cresceu e mais tarde ao trabalhar numa pizaria teve um acidente ao fazer uma entrega. Como consequência chega tarde ao seu destino e pelo intercomunicador fala com a destinatária da entrega, uma rapariga, de nome Gabrielle, que vivia num trigésimo andar. Fascinado pela sua voz tentará encontrá-la. Sabe que ela trabalha numa biblioteca pelo talão da entrega que nunca fez, pois, a pizza ficara destruída. Encontra-a, mas não revela a sua identidade de distribuidor de pizzas. O acidente remete-nos para um momento traumático, para algo de familiar e encriptado, que curiosamente destrói a comida.


Naoufel, envolvido pelo som da voz de Gabrielle, pois não a tinha visto ainda, vai no seu encalço servindo-se do nome e residência que constava no talão da entrega da pizza. Encontra-a com um homem mais velho que saberemos ser o seu avô . o carpinteiro Gigi. Para ficar perto dela e sem que ninguém suspeitasse pede trabalho ao carpinteiro que tinha afixado há uns anos pedidos para um aprendiz, mas agora está doente e já não era essa a sua intenção. Quando se apercebe que o rapaz é órfão aceita-o. No primeiro dia de trabalho o homem diz-lhe:


Estes são os instrumentos para se transformar a matéria. Isto são acessórios, diz ele, apontando para um torno, não serve para nada, só para segurar a matéria, o esboço é o mais importante, seguir as linhas é o mais fácil….


Naoufel mostra-lhe como ele precisará da sua ajuda mesmo não estando habilitado para tais tarefas. O Homem acaba cedendo e Naoufel vai aprender a criar objectos de madeira. Um deles é um iglô que levou para o topo de um prédio em frente a um guindaste recriando a paisagem do polo norte com que Gabrielle sonhava. Num dos poucos diálogos Naoufel pergunta a Gabrielle:


- Acreditas no destino?

- Como se tudo estivesse escrito anteriormente, como se fosse uma trajectória?

- Sim.

- Não compreendo nada.

- Pensamos que podemos mudar o destino mas só o conseguiremos se fizermos algo completamente incompreensível e irracional, é a única maneira de quebrar o feitiço para sempre, é fazeres-lhe uma rasteira e se fizeres bem, saltas desta borda para o guindaste do outro lado, e se fizeres bem…

- E depois de fintares o destino?

- Tentas afastar-te dele, fugir, foges cegamente e fazes figas.

- Como o quê?

- Eu não sei, como se fosses por aqui, (mostrando a mão e dedos) e depois fazes uma finta…

-Como o quê?

- Alguma coisa improvisada que tu não deverias fazer, mas fizeste como se isso te levasse a qualquer lado, e não lamentas, é mesmo isso…

-E depois? É preciso?


Numa cena em que convida Gabrielle para visitar o Iglô de madeira, o polo norte do desejo dela, num momento de intimidade, no aconchego criado, Naoufel revela quem é. Gabrielle deixa-o, pois pensou que ele seria um oportunista. Naoufel no meio da dor da rejeição embriaga-se numa festa e na manhã seguinte corta a mão direita, na serra circular da carpintaria, e é nesse momento de dor que nasce o fragmento; a mão decepada . É lá o local do segundo traumatismo. A mão vai ser levada para um necrotério de um hospital distante, mais tarde já em casa e após a alta hospitalar, dá-se um encontro entre a mão que desesperadamente procurara o corpo perdido de Naoufel e Naoufel. A mão encontra o corpo perdido, e tenta reunir-se numa incorporação que se revela impossível , mas ainda assim sim seria possível mudar o destino? Poderá a dor traumática, os fragmentos, a autonomia acidental da mão ser uma saída inconsciente de sobrevivência psíquica, revivida num après-coup? Os fragmentos ficarão autónomos no momento do trauma e desse modo a carga traumática ficará mais suportável pois existiu distribuída. Contudo a nostalgia do encontro dos fragmentos com o Eu nunca será completa.



Interrogo-me se se tratará somente uma estratégia de sobrevivência ou se há uma força do desejo de reunião dos fragmentos com o Eu original nunca conseguida por completo? Será a visualização desse caminho e a aceitação dessa impossibilidade a razão da emoção que nos trespassa?


O analista poderá ser o carpinteiro-avô que recebe um pedido no lugar da fala do outro ausente, um veículo, o facilitador de um encontro amoroso, das partes clivadas que anseiam um reencontro, mas que tiveram de seguir o seu caminho autonomamente. A mão teve de fazer um longo trajecto do frigorífico necrotério até ao seu corpo, há o destino e o desconhecimento sobre si mesma. A mão ao se aperceber que Naoufel não precisa mais dela retira-se para dentro da neve, fundindo-se. numa espécie de nada.

O carpinteiro tem os seus instrumentos, mas a obra na madeira é a do aprendiz que criará, com ajuda da sua sábia paciência, um Pinóquio e o humanizará. O carpinteiro-avô está doente, sabe que não estará lá para todo o sempre, nem encontrará todas as repostas. Para nós, analistas é preciso trabalhar nas fronteiras, saltar para os guindastes, tolerar as fragmentações e as angústias sem as quais nada de novo se reorganizará no paciente fragmentado. O que sabemos é que, mesmo com o peso do destino de mortais, temos a nossa loja aberta para e como aprendizes desvendarmos traumas e dores escondidas num amor à verdade.


Pensei que o que nos toca neste filme e que está presente no legado de Ferenczi e da obra escrita com Rank, “Perspetivas da psicanálise” em resposta ao artigo de Freud “rememoração, repetição e elaboração”, é que não será a rememoração, mas sim a compulsão à repetição que trará o material inconsciente verdadeiro”. Os acontecimentos, poderão ser revividos na atualidade, no tempo presente, desde que encontrem um interlocutor disponível para uma nova relação.

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