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Tem 88 anos e continua a ter uma vida bastante produtiva, faz clínica, promove conferências, dá aulas e escreve. Como é que surgiu o seu interesse pela psicanálise?

 

Ah, isso sei muito bem. Eu fiz psiquiatria no Porto, depois houve um concurso para assistente hospitalar, foi o primeiro concurso a nível nacional para assistentes hospitalares de psiquiatria. Havia só uma vaga, para o Hospital Júlio de Matos, em Lisboa. Éramos uns 13 ou 14 candidatos e eu vim e fiquei em primeiro lugar.

Fiquei em primeiro lugar e resolvi vir para Lisboa. E vim para Lisboa convencido que Lisboa era a catedral da psiquiatria, que a psiquiatria era muito boa, que a do Porto era fraca. Ao fim de uns meses no Júlio de Matos cheguei à conclusão que era idêntica à do Porto (risos), que era fracote. De maneira que nessa altura decidi: “Ou vou para neurologia ou vou para psicanálise”. E fiz as duas ao mesmo tempo, fiz o internato quase todo de neurologia, mas depois desisti. Fiz as duas, mas optei pela psicanálise. Começou assim.

 

Duas opções muito diferentes, a neurologia e a psicanálise.

 

Mas era o que havia mais próximo da psiquiatria, uma mais objectiva, mais empírica, e outra mais filosófica. Não sei se vinha desde a minha adolescência ou até da infância. Durante a infância, e principalmente no liceu, fui sempre o melhor aluno a Matemática, mas ao mesmo tempo também escrevia poesia e escrevi um romance aos 8 anos, de maneira que estava nas duas coisas (risos).

 

O que de alguma forma se liga aos dois tipos de pensamento de que estava a falar, um pensamento crítico e um pensamento criativo.

 

Sim, se quiser. São os dois pensamentos úteis, o crítico e o criativo. São as duas grandes vertentes, não é?

Antes de me ter decidido pela medicina, pensei noutras hipóteses, pensei em arquitectura, houve até uma altura em que pensei ir para a marinha de guerra. Houve uma coisa em que pensei e que desisti logo que era ir para advogado. No meu tempo os exames no liceu eram no 3º, 6º e 7º anos. No 7º havia uma linha para ciências e outra para letras e para seguir direito tinha que ir para letras. Houve uma cadeira que eu detestei, foi o latim. Tive 3 anos de latim e teria latim no 7º ano se fosse para letras, aí desisti logo. Mais latim, não! De maneira que fui para ciências. No 7ºano era o melhor aluno a matemática, era muito bom em física, a biologia era fraquinho, tive um 10, a biologia tive de fazer exame de admissão para entrar em medicina. Engenharia, matemática, nesses cursos aí entrava de borla. Depois lá me veio a idéia da medicina, não sei muito bem de onde veio, alguma influência familiar, suponho que houve uma certa influência da minha mãe. Na minha família havia muitos médicos. O meu avô materno era médico, o meu padrinho era médico, o irmão da minha mãe era médico, tinha um primo mais velho que também era médico.

Durante o curso interessei-me pela investigação, a dada altura pensei em investigar bacteriologia e virologia, estudar os vírus. Era uma coisa muito moderna, naquela época sabia-se pouco de vírus, logo dava-me gozo ir estudar uma coisa sobre a qual se sabia pouco, na vanguarda digamos da investigação. Todos os meus professores me diziam para ir para cirurgia porque tinha um jeito manual grande de maneira que quando acabei o curso ainda estive 6 meses num serviço de cirurgia cardíaca, mas depois aquilo... não me satisfazia no resto.

Uma das razões pelas quais fui para psiquiatria foi porque estava noivo, eu namorava uma mulher com quem casei e queria casar e abriu um concurso para psiquiatria, foi mais uma razão para ir.

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Estava a falar da sua atracção pelo novo, pelas coisas recentes.

 

Eu fiz a instrução primária na minha aldeia, Galafura, no Douro. Andava na 3ª ou 4ª classe e resolvi fabricar um automóvel. Tinha jeito manual e fiz aquilo com um caixote, umas rodas, tudo aquilo de madeira, o volante e não sei o quê mais e aquilo ia ter uma máquina a vapor como os comboios. De maneira que fiz um assento à frente e um local para o motor. O local do motor era uma caixa aberta, revesti aquilo com folha de zinco, depois pus-lhe um pote daqueles de cozinha, atado com uns arames e então a minha idéia era como aquilo fervia e como tinha umas rodas, andava, não é? (risos) E demorei uma data de tempo a fazer aquilo no quintal e quando já estava pronto, com a água e o carvão, decidi pôr aquilo a andar. E o meu pai que de vez em quando passava por lá e perguntava “como é que isso vai?” olhou para aquilo e perguntou, ”mas como é que isso vai andar?”, então eu disse. Ele riu-se, ”a água tem que ir por uns tubos, são os êmbolos que fazem mover as rodas” e eu naquela altura não disse, mas pensei, filho da puta! (risos) Então deixaste-me mais de 6 meses a construir isto … (risos)

 

Não resultou num automóvel, não chegou a ser o carro que era suposto ser, mas ficou uma boa história... (risos). Considera que foi importante ter nascido e crescido num ambiente rural, em contacto directo e genuíno com a natureza, a terra, os animais.

 

Sim, sim, foi importante em vários aspectos. Era um meio pequeno, duro, com um clima duro, com gente dura, gente ligada à terra, portanto acho que isso me deu uma certa têmpera. Depois o convívio, porque andava sempre na rua. Éramos 4 irmãos, éramos 5, mas um irmão faleceu em miúdo, mas eu sou o mais velho e a minha mãe também dizia que eu fui o mais difícil de criar porque era o mais irreverente. De maneira que eu fiz-me bastante na rua, no convívio com os outros miúdos, na vida da aldeia. Por exemplo, o jeito manual não aprendi com o meu pai, o meu pai não tinha jeito nenhum, mesmo para martelar um prego batia mais vezes nos dedos do que na cabeça do prego (risos), aprendi com o Sr. Arsénio, o carpinteiro da aldeia que deixava os miúdos entrar. Eu ia lá muitas vezes para fazer brinquedos, piões, etc. Foi com o sr. Arsénio que eu cultivei o jeito manual.

O que é que no presente existe em si dessa criança rural?

 

Sinto-me melhor num ambiente informal do que num ambiente formal, sou bastante irreverente, com pouco jeito para obedecer à autoridade.

 

Iniciou a sua formação para psicanalista há longos anos. Como foi ser candidato?

 

Eu comecei a minha psicanálise no início dos anos 60. Nessa altura, aqui em Portugal, o que havia era a Sociedade Luso-espanhola, uma sociedade que tinha sido fundada por analistas portugueses que eram poucos, três, e espanhóis. Nessa época o candidato chamava-se postulante  (risos).

Eu não tive qualquer dificuldade em entrar como postulante. Fiz umas entrevistas, foi com dois espanhóis, e aquilo correu bem. Mas depois a Sociedade Luso-espanhola dissolveu-se porque houve uma incompatibilidade interna, há sempre muitos conflitos nas sociedades psicanalíticas o que mostra a rigidez das Sociedades. E o grupo português que era pequeno transformou-se  num grupo de estudos que era supervisionado por um comité internacional da IPA (International Psychoanalytical Association). E então tive de fazer uma nova candidatura à associação internacional.  Lembro-me que tive duas entrevistas, uma com um tipo de Zurique, era simpático, fez-me uma entrevista curiosa, e outra com o presidente da Sociedade Suíça de Psicanálise, que era um grande senhor, cabelos brancos, etc., uma grande figura na psicanálise, e não foi fácil… Ainda me lembro da entrevista, porque a entrevista começou por correr bem, mas a determinada altura o homem começou a insistir, queria que eu tivesse qualquer coisa de homosexualidade, se eu não tinha algumas fantasias, embirrava com aquilo, até que eu eu perdi a paciência e disse, a entrevista passava-se em francês: “ Bien sure, comme nous tous! “. Nessa altura calou-se, virou o disco e soube depois que deu uma excelente informação sobre mim (risos) mas havia estas coisas, uma certa rigidez.

Mais tarde, quando fiz a candidatura para membro aderente, quando apresentei a memória (trabalho final), fi-la internacionalmente. O júri era composto por duas inglesas, eram ambas mulheres, uma era a Hanna Segal, um suíço, um holandês e um francês.

E onde é que apresentou?

 

Apresentei em Lisboa, no Hotel Ritz, numa suíte do Ritz (risos).

Passou a membro aderente em que ano?

… 73, talvez antes.

 

Falou-nos da sua curiosidade, da irreverência, da informalidade, como é que todas estas características aparecem no seu trabalho psicanalítico? E nos seus livros?

 

Aparecem bastante. Nunca me confinei a seguir um autor, sou a favor da experiência, tudo aquilo que tenho escrito e feito é através da minha experiência. Sou massivamente contra o professor de livro, defendo o investigador. Uma vez no ISPA (Instituto Superior de Psicologia Aplicada) estava a dar uma aula de mestrado e estava a explicar isto e fiquei com a idéia que não me estava a explicar bem, fui ao quadro e escrevi em letras garrafais: se não sabe, não vá ao livro nem pergunte ao professor, e pus por baixo investigue.

 

Desse modo os seus livros são todos escritos com base na sua experiência?

 

Sim, sim, sim.

 

Escreveu muito sobre a depressão.

 

Sim. Comecei por estar em completo desacordo com uma parte dos autores, designadamente o Freud. Dos autores clássicos o Karl Abraham tem um trabalho sobre a depressão, de 1911, sobre a Psicose Maníaco-Depressiva e Estados Afins, que é mais interessante que O Luto e Melancolia do Freud. Mesmo assim também não me chegava o conceito, a forma de ver do Abraham, e levou-me a procurar saber o que era a depressão.

 

E o que é que nos pode dizer sobre a depressão?

 

Tenho mais dúvidas que certezas e isso é bom … portanto tenho muitas dúvidas mas, para já há um aspecto, e isso vem nos meus livros, o Freud confundiu a depressão com luto patológico. Eu acho que são coisas diferentes: o luto é a reacção à perda de um objecto amado. A depressão é a reacção à perda do amor de um objecto.

O paradigma do luto é a morte ou a separação física, porque emigrou ou coisa parecida, o paradigma da depressão é a desilusão amorosa, a minha mulher apaixonou-se por outro, deixou de gostar de mim porque está a fazer a tese de doutoramento e só pensa nisso, ou só pensa nos filhos. E há lutos patológicos. O luto normal é um processo de esquecimento, a pessoa perdida vai pesando menos na recordação do indivíduo e na revivência, e um processo de substituição, substituição por outra pessoa que desempenhe funções idênticas. O luto patológico é, por exemplo, um luto delirante, quando um indivíduo julga que o objecto não morreu, anda aí em qualquer lado, se perdeu em qualquer lado. O luto suspenso, que é muito frequente nos histéricos, que ficam eternamente com a caneta do paizinho que morreu ou com o quarto da filha que faleceu, ficam ligados. Isto vem muito bem descrito num trabalho da Maria Török, Maladie du deuil et fantasme du cadavre exquis. E as depressões é a mesma coisa. Há depressões normais e depressões patológicas e as depressões patológicas não têm nada a ver com aquilo que os psiquiatras costumam dizer que é patológica pela intensidade e pela duração, isso é perfeitamente secundário.

 

O que acontece é o seguinte: na depressão normal o indivíduo perde o afecto, em parte ou totalmente do objecto de amor e reage, fica deprimido, mas ao mesmo tempo zangado com o objecto abandonante, ”a puta, apaixonou-se por outro”, e irritado, etc. Na depressão patológica acha-se ele o culpado, eu é que não a tratei muito bem, ou considera-se inferior, não sou um homem muito interessante, ou ambas. Outro tipo de depressão patológica é a depressão paranóide, nessa situação acusa-se excessivamente o objecto. É a história que já se dizia na minha aldeia, todos os homens impotentes acham que todas as mulheres são putas (risos).

 

Amor é outra palavra chave.

 

É... aí é também uma coisa em que não estou de acordo com a teoria da psicanálise clássica, do Freud designadamente, porque a evolução do indivíduo, a evolução em geral, o progresso, não se faz através da competição, mas através da colaboração. A arma mais forte no desenvolvimento é a cooperação e não a competição. O Freud também centra a coisa no conflito; e as sociedades, a nossa sociedade actual igualmente, a competição, a concorrência, a concorrência e não sei o quê e tal, e tal.

Em minha opinião é fundamentalmente a cooperação que origina a criação de coisas novas. Na competição o que é que acontece? O princípio da soma zero, aquilo que eu ganho, é o que o outro perde. Na cooperação, não é soma zero é a multiplicação, a  multiplicação e a criação. Podemos ganhar os dois, e ainda criar um terceiro, um filho, uma obra que deixamos para o mundo, etc., e mudar esse mundo.

Agora é necessário que esta cooperação seja feita de um jogo de complementaridade, eu respondo à necessidade do outro e o outro responde à minha necessidade. Mas essa relação tem de ser uma complementaridade não saturada porque se é saturada entra numa lamechice, fazemos sempre o mesmo. Se eu com a minha namorada ou com a minha mulher estamos sempre em complementaridade total  acabamos por fazer sempre a mesma coisa. De vez em quando é preciso haver um desacordo, alguma dissonância, alguns espaços livres para inventarmos fazer outra coisa. Se olharmos para os casais que duram e tiram prazer de estar um com o outro, de vez em quando têm períodos de ajustamento e não fazem sempre o mesmo, e mudam, e não estão de acordo, ele quer comprar uma casa, mas a mulher quer um automóvel, e discutem um com o outro, se há-de ser a casa ou o automóvel e depois acaba por ceder um e da próxima vez cede o outro.

 

A vida é movimento e a vida mental é a criatividade.

 

Há outra coisa em que não estou muito de acordo com a psicanálise mais clássica, estudei praticamente todas as escolas: Freud, Klein, Bion - Bion menos um bocado - Winnicott , estou a falar das principais escolas, Lacan, o que é a teoria dos sonhos. Os sonhos noturnos dizem-nos muita pouca coisa. Uma das provas é que nos seminários e nos congressos internacionais quando se conta um sonho, cada cabeça sua sentença (risos). O que tem interesse é o sonho diurno, aquilo a que eu chamo o sonho-projecto, aquilo que eu imagino, quem é a mulher com quem eu imagino ir dar um passeio pela Austrália para ver os cangurus, esse é que tem de facto mais sentido.

A psicanálise clássica é muito centrada na repetição, na transferência, naquilo que foi e que se repete actualmente, eu dou mais importância à nova relação, aquilo que nunca foi mas poderá vir a ser.  É importante porque somos animais de futuro, estamos sempre preocupados com aquilo que vai acontecer, não com aquilo que já aconteceu. A não ser quando estamos mais doentes, que é precisamente uma das distinções, quanto mais doente está uma pessoa mais repete, mais transfere na relação com o analista e com as outras pessoas e quanto menos doente é, mais nova relação faz, mais inova, cria nas novas relações  - que vai tendo, nas novas coisas que vai fazendo.

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Então imaginar é importante.

 

Claro que é importante, embora no sonho diurno seja relevante a imaginação com uma certa finalidade, por isso é que se chama sonho-projeto e sonho-exploratório. Há outro tipo de imaginação que é um bocado caótica, por exemplo, estar deitado na praia a olhar para as nuvens e ver cães ou outra coisa qualquer. Não tem muito interesse, distraí, mas não é útil. Agora se sou arquitecto e estou a olhar para as nuvens e a imaginar como é que vou fazer a próxima casa, ou coisa parecida, é uma imaginação com uma finalidade, dirigida.

 

É um sonho com uma visão de futuro.

 

Sim, sim, sim. Lembra-me a frase de um poema do António Gedeão: O sonho comanda a vida. Gosto mais de dizer que a criatividade é que comanda a vida.

 

O sistema educativo promove muito pouco a criatividade.

 

Aí é uma coisa um bocado europeia, nós temos muita história, e ficamos muito agarrados à história.

No decénio de 70, salvo erro, de 1970 até 1979/80, dois psicólogos e psicanalistas americanos recolheram quatrocentos artigos de duas revistas de psicanálise de referência, duzentos escritos por analistas europeus e outros duzentos por analistas norte-americanos e investigaram o número de vezes que citavam Freud. Sabem qual foi a diferença? Os europeus citavam dez vezes mais Freud. É espantoso, este recurso ao passado, ao mestre, ao livro, à história, dez vezes mais! Veio publicado no International Journal of Psychoanalysis, um trabalho muito simples, mas curioso.

 

Estávamos a falar sobre irreverência e mestres. Gostava de saber se considera que houve algum mestre na sua vida, na sua carreira, alguém que o tenha influenciado.

 

Sim, embora considere que os meus principais mestres foram os meus pacientes e os meus alunos e a experiência.

Aprendi igualmente com as coisas, com a realidade.

 

O que é que acontece numa análise?

 

Bom, o paciente tem algum sofrimento, sente que há coisas que não correm bem e procura alguém que o ajude a resolver esses problemas, a perceber esses problemas e ver se encontra solução. Se escolhe um psicanalista muitas vezes é porque já leu, ou conhece pessoas que fazem, ou alguém o informa, um amigo, um médico, um professor. Agora o que eu penso é o seguinte: o paciente vem para se tratar e o psicanalista tem um certo interesse em ajudar pessoas a desenvolver-se, a saírem das suas dificuldades. Portanto forma-se uma relação complementar, eu necessito de ser cuidado e há determinadas pessoas que gostam de cuidar. Se a pessoa sente que o analista está a procurar compreender qual é o problema dele e a procurar saída para a dificuldade, adere facilmente. Se o psicanalista sentir que o paciente tem algum talento para pesquisar coisas da vida dele, logo auxiliar o trabalho do analista, também facilita a ligação.

Depois eu penso, mas há muitos analistas que não pensam assim, que a relação analítica tem de ser uma coisa interessante para os dois, agradável para os dois, quem corre por gosto não se cansa. Se eu faço um trabalho que me dá prazer, faço esse trabalho quase de certeza melhor. O paciente também precisa de sentir que a sessão foi uma coisa fácil e agradável, que esteve tranquilo, vomitou algumas coisas, saiu mais aliviado e que progrediu alguma coisa, saiu com mais algum conhecimento. Se quiser há uma satisfação no plano emocional  e uma satisfação no plano cognitivo, irracional e racional.

Além disso há outros aspectos, que são a participação, a implicação do analista na relação ou a neutralidade, a questão clássica da neutralidade. Eu acho que uma relação psicoterapêutica não pode ser neutra, há de facto passagem de afectos e há empenho de parte a parte, há um amor, se quiserem, há uma relação positiva. Agora que tipo de relação é essa é que é mais difícil de dizer. Não é propriamente uma relação parental, filho-pai, filho-mãe, como é um pouco o paradigma da Melanie Klein, muito menos é o paradigma do Freud, que, ao fim e ao cabo, é a relação sexual, não é uma relação amorosa, não é também uma relação de cuidado, como diria o Winnicott, embora seja a mais próxima da realidade, mas também não é neutra.

Tenho duas imagens para isso. O analista é uma espécie de farol, o paciente escolhe, mas o analista abre a luz, ilumina o campo, permite que o paciente comande o barco e escolha, uma vez que há luz, sabe onde estão as rochas, onde estão os outros barcos e onde está o caminho livre. Por outro lado, o analista alimenta a chama, a vida mental é uma chama viva e é necessário ir dando oxigênio para que essa chama não se apague, mas também não dar oxigénio demais senão vai tudo pelos ares (risos). São estas as duas funções de um analista a que chamo mesmo a função farol e a função catalisador. Portanto, permitindo que a pessoa vá fazendo a sua aprendizagem. É como no ensino, no bom ensino o professor não ensina nada, facilita que os alunos aprendam, que os alunos encontrem a sua forma de aprender, ajuda-os nisso.

 

 

Qual é o papel da psicanálise no tempo actual?

 

Bom, aí acho que há dois aspectos, há o aspecto do tempo actual e dos psicanalistas. Os psicanalistas têm que ser mais flexíveis, não aplicar sempre o mesmo modelo, nem todos os pacientes precisam de 4 vezes por semana, para alguns só uma vez chega perfeitamente, nem todos os doentes precisam de psicanálise, às vezes precisam de uma psicoterapia face a face, ou precisam de um psicodrama, ou precisam de uma intervenção familiar, portanto é necessário ter uma maior flexibilidade, uma maior compreensão. Os psicoterapeutas podem especializar-se numa técnica, mas convém saber alguma coisa das outras, por exemplo, para saberem dar indicações.

Estou a recordar-me de um caso de uma colega da SPP (Sociedade Portuguesa de Psicanálise) que fazia supervisão comigo. A dada altura falou-me de uma miúda que tinha recebido para uma psicoterapia. Falámos no caso e a dada altura comecei a duvidar  “esta miúda não tem indicação para uma psicoterapia individual”. A colega disse-me “ah, mas foi mandada pelo analista da mãe com indicação para uma psicoterapia psicanalítica”; e eu “está bem, mas não temos de fazer o que nos mandam”, e pedi-lhe para rever aquilo, vai falar com o pai e falar com a mãe, parece-me que neste caso o que está indicado é uma terapia familiar. “Ah, mas eu não sei fazer” e eu “está bem, mas há aí uma pessoa que faz isso bem e pode fazer uma supervisão” e a paciente foi orientada para uma terapia familiar e o caso correu muito bem. Eu tinha nessa altura um grupo de estudos de psicanálise e de psicoterapia familiar psicanalítica e orientei-a para este grupo e quem seguiu a terapia foi o Orlando Fialho que fez um excelente trabalho com esta família. Por conseguinte há aqui um aspecto, o da psicanálise estar mais apta para poder considerar outras opções e ser mais flexível.

Quanto à vertente da sociedade, é uma sociedade mais anónima, com relações pouco espessas entre as pessoas o que cria patologias e dificuldades. No Ocidente, no Oriente é um pouco diferente, as sociedades são de facto muito baseadas na competição, e depois há uma coisa dramática nas sociedades actuais, quer dizer há muita gente que não está de acordo, mas trabalha-se tempo demais. Nos anos 60 pensava-se que íamos trabalhar menos horas e foi o contrário, trabalha-se cada vez mais horas, as pessoas estão sobrecarregadas de trabalho, não tem tempo para se distrair, para falar com os amigos, para conversar, para não fazer nada.

Há uns anos atrás e não tantos anos assim, as coisas mudaram muito a partir do fim dos anos 80, as pessoas procuravam-nos por problemas emocionais, de relação, designadamente relações com os filhos, ou de casal, eram estes os grandes motivos. Hoje vêm muito por problemas no trabalho, “estou esgotado”, “zanguei-me com o patrão”, “vou ser despedido”, o trabalho entrou demasiadamente na vida das pessoas, não só trabalhamos horas demais, como parece que não pensamos em mais nada senão no trabalho. Não temos espaço para outras coisas, mesmo quando estamos com os amigos continuamos a falar de trabalho e depois há os computadores e o patrão ou os colegas mandam-nos e-mails, fazem-nos perguntas pelo computador. Estamos sempre mergulhados no trabalho, e isto já está a penetrar um bocado na clínica, os pacientes já nos vêm contar muitas coisas do trabalho. Um bom trabalho deve ser criativo. Se não é, estamos ali a fazer um sacrifício.

Na psicanálise há a ideia de que o analista não se deve dar a conhecer.

 

Há a posição clássica em que o psicanalista encobre, não se sabe nada da vida do psicanalista. E há uma teoria muito recente de alguns psicanalistas ligados à teoria da relação, designadamente americanos, que acha que o psicanalista se deve revelar, revelar as suas angústias, os seus problemas. Não estou de acordo nem com uns nem com outros. O que não se deve esconder são as coisas evidentes, são acontecimentos que fazem parte da vida, são coisas que de tão notórias... aqui há uns anos quando fiz um enfarte, já fiz dois ou três, o terceiro não foi bem, estive uns 8 dias sem aparecer e quando cheguei a primeira pessoa que recebi disse-me “ Ah eu sei que o doutor esteve doente, parece que foi uma coisa ligeira” e eu “ Não, tive um enfarte”, não ficámos nestas coisas vagas e na mentira.

 

A psicanálise é objecto de críticas severas.

 

Lembro-me de um congresso aqui em Portugal, há uns anos, sobre Psicanálise e Cultura. Eu era presidente da Sociedade Portuguesa de Psicanálise propuseram-me o tema e achei que era  interessante. Foi convidado o Eduardo Lourenço para fazer uma das conferências e o comentador era o Amaral Dias, mas o Amaral Dias chegou atrasado ou não sei o quê,  de maneira que eu fui chamado à última da hora para fazer o comentário. O Eduardo Lourenço fez uma conferência, bem feita, mas com bastante crítica ao Freud, mas ao Freud das pulsões. A maior parte dos escritos são assim, conhecem a primeira parte da obra do Freud, mas conhecem muito mal a segunda, principalmente o trabalho desenvolvido a partir de 1923, a grande volta que ele deu.

Outra coisa que acontece na psicanálise, na psicanálise mais clássica, é que endeusam o Freud: o Freud inventou tudo, sabia tudo, uma espécie de deus omnipotente. Por sua vez, os detratores da psicanálise acham que ele era um chalado, um delirante, um teimoso e não sei o quê. Não era nem uma coisa nem outra, era um homem inteligente, sabedor, etc., genial nalgumas coisas, mas não era propriamente um deus. Mas o Freud também cultivou isso porque com receio que a psicanálise se degradasse, era muito exigente com os discípulos, que os discípulos não saíssem da linha ortodoxa dele, etc. e portanto criaram-se algumas resistências e algumas dificuldades e algumas dissidências.

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