top of page
Seabra.png

 

 

Quem é João Seabra Diniz?

 

Venho de uma família grande, com pessoas muito diferentes, com várias experiências, e isso para mim foi muito enriquecedor. Lembro-me, por exemplo, que, desde sempre, os livros foram uma presença. O que se lia nos livros era importante e falava-se dessas coisas. Tenho alguns livros que vieram de gerações anteriores, e lembro-me de ouvir  falar daqueles autores e das coisas que diziam desde pequeno. A música também foi uma presença desde muito cedo. A respeito da música, houve uma coisa que me marcou e que acho que vale a pena contar. Reconhecendo o meu interesse, quando fiz 16 anos os meus pais ofereceram-me uma assinatura para a temporada de ópera, do teatro de S. Carlos. A primeira ópera em programa era o Parsifal, de Wagner. Foi uma experiência inesquecível.

Outra coisa que foi muito importante para mim, foi existir na minha família, quer do lado da minha mãe, quer do lado do meu pai, fortes raízes no campo, na propriedade agrícola. Desde pequeno que descobri a natureza e os animais, gostei muito de cavalos, andei a cavalo, diverti-me com isso, era uma coisa muito boa. Lembro-me que íamos para a quinta do meu avô de automóvel e quando chegávamos guardava-se o carro. A partir daí, todas as deslocações eram em carros de cavalos, como em Sintra. E havia um homem com quem eu gostava muito de falar, que já naquela altura era um homem muito idoso, que era o cocheiro. Tinha sido cocheiro de praça em Lisboa, quando não haviam táxis, nem automóveis. Gostava muito de o ouvir contar essas coisas. De facto, na minha infância existiram várias figuras destas, que eram muito calorosas e transmitiam uma experiência. Era também habitual ouvir falar várias línguas em casa, inglês e francês, porque recebíamos pessoas que não falavam português. Eu comecei a ler livros em francês aos 14 anos.

 

Mais tarde, quando pensei em estudar psicologia, fui para Itália onde fui contactando com uma cultura diferente e espectacular. O que era engraçado é que eram nomes que eu conhecia perfeitamente de ouvir falar e de ver em revistas ou em livros. Nada daquilo era estranho. Por exemplo, eu já conhecia bem a história de Leonardo da Vinci. Foi um tempo muito interessante, encontrei muita gente e fiz muitos amigos.

 

O problema da psicanálise pôs-se mais para o fim do curso. Por exemplo, eu entusiasmei-me pelo teste Rorschach, mas depois perguntei-me: Para que é isto me serve? Quando eu fizer um psicodiagnóstico depois o que é que eu faço? Como é que ajudamos a pessoa a sair dali? Por acaso, o professor que dava as técnicas projectivas tinha contactos com a psicanálise e eu interessei-me e fiz uma primeira tranche de análise em Roma. A seguir voltei a Portugal, onde encontrei  um Grupo de Estudos muito interessante.

Tenho a impressão, não sei bem, mas tenho a impressão que fui o segundo psicólogo a entrar na SPP. Parece-me que o Jaime Coelho já lá estava, mas o resto eram tudo médicos. Lá estavam os três que tinham sido os fundadores, o Pedro Luzes, o João dos Santos e o Francisco Alvim. Nessa altura, já havia um grupinho de médicos que tinham começado a sua formação ali. Entrei como candidato. No mesmo ano que eu, entraram o João França de Sousa, o Eurico Figueiredo e a Maria do Carmo Borges da Silva, que depois se afastou. Fizemos todos parte do mesmo grupo. Nessa altura vinham cá os franceses e os ingleses fazerem-nos os seminários. O que foi um enorme privilégio, porque vinham grandes psicanalistas, o Michel Fain, o Serge Lebovici, a Annie Anzieu, Gilbert Diatkine, Sónia Salmeron e também muitos ingleses. Ainda fiz seminários com o Pierre Luquet no auto clube médico, porque a sede da Sociedade Portuguesa de Psicanálise era, nessa altura, em casa do Pedro Luzes. Mas rapidamente apareceu a casa onde instalámos a sede e ali temos estado.

O Pedro Luzes e o Francisco Alvim fizeram a formação na Suíça onde encontraram uns médicos espanhóis que também estavam a fazer formação e quando voltaram resolveram fazer em conjunto a Sociedade Luso-Espanhola. O João dos Santos tinha feito a formação em França e só entrou depois.

 

Essa junção não era prática, e a Sociedade Luso-Espanhola acabou e nós recomeçamos o percurso como grupo de estudos, depois como sociedade provisória e, finalmente, como sociedade definitiva. Lembro-me do primeiro encontro Luso-Espanhol que se realizou numa sala da nossa sede. Fui então o candidato que apresentou o caso para discussão dos presentes.

1

 

 

E qual é a memória que guarda dessa apresentação?

 

Foi muito agradável, o grupo era pequeno, havia muita cordialidade e muita proximidade entre as pessoas.

 

Qual a pertinência da psicanálise nos dias de hoje?

 

A teoria Freudiana foi, que eu saiba, a primeira teoria da cultura ocidental que tentou explicar o funcionamento psíquico, o que era o Homem, sem recorrer a explicações e conceitos religiosos ou mágicos.

Há um livro do escritor/ historiador francês Jean Delumeau, que morreu há pouco tempo,  Le péché et la peur cujo subtítulo é A culpabilização no ocidente medieval, em que ele mostra como muitas coisas difíceis, que os homens passavam na sua vida, eram vistas como fruto do pecado, que isso levava a um sentimento de culpa e que este sentimento de culpa promovia um desejo de virtude. O próprio Voltaire, que era um racionalista, disse aquela frase famosa: Se Deus não existisse tinha que se inventar.  Porque realmente não se conseguia explicar o mundo e o que nele acontece, sem a presença de Deus.

Há um outro livro que se chama Law, Sex, and Christian Society in Medieval  Europe do James Brundage que também é, de novo, o estudo da culpabilização no ocidente.

De facto é uma dinâmica completamente diferente olhar para a culpabilidade e dizer que isto foi um pecado ou foi o demónio ou foi outra coisa qualquer, ou sermos capazes de compreender o que é o desejo inconsciente, o que é o sentimento que está por trás de tudo isso.

 

Este processo é complicado, é complexo, é lento. Este é um dos aspectos importantes a destacar, a complexidade da vida psíquica e a ideia que isto não se modifica pela transmissão de um conhecimento intelectual.

Podemos dizer a uma pessoa: Tem este problema. Então quando for assim, faça tal e tal coisa, e resolve o problema. Não resolve. Enfim, a intervenção psiquiátrica vai muito nesta linha: Tens um sentimento que te complica a vida, tomas este remédio esqueces o sentimento e mudas a coisa. E a causa do sentimento? Perceber porque é que é assim? Qual o seu significado na história da pessoa?

 

No Império Romano, quando um general vencia, conquistava um país, ao chegar à capital era-lhe concedido o triunfo. Quer dizer, ia numa quadrilha, aqueles carros romanos com 4 cavalos à frente, com todo o povo a aclamá-lo. É como hoje com os jogadores de futebol, quando ganham o campeonato. Toda a gente grita e aclama. Mas os romanos sabiam que isto pode ser muito enganoso para as pessoas.  Então o triunfador tinha ao pé de si no carro, um homem que levava um pau e na ponta do pau havia um novelo de estopa. No auge do entusiasmo, acendia a estopa que ardia rapidamente e dizia : Assim passa a glória do mundo, a frase latina Sic transit gloria mundi. Eu acho que este requinte de civilização, esta sabedoria no que respeita ao funcionamento humano, tem sido muito desprezada e substituída pelo imediato, pela pressa e pelas coisas concretas. A psicanálise tem essa sabedoria, sabe a importância do passado e do tempo. É importante não esquecermos a divisão que Freud estabeleceu: a psicanálise é uma teoria científica, é um processo de investigação e é uma técnica terapêutica.

Cada pessoa reage conforme aquilo que é e cada pessoa é o que é porque teve uma história, fez um percurso, viveu determinadas experiências. Portanto quando se está numa sessão de análise e a pessoa fala dos seus sentimentos, das suas coisas, das suas memórias, das reacções que vai tendo, essas reacções são condicionadas pela história e portanto ela está a reviver, ali, aquilo que é, não  uma coisa inexplicável, que lhe caiu do céu. A pessoa está a reagir conforme aquilo que é.

As pessoas às vezes nas entrevistas iniciais dizem: Já percebi o que não quero fazer, mas de alguma forma quando dou por isso estou a repetir.

 

É por isso que eu, nas primeiras entrevistas, não costumo fazer perguntas. Oiço. É como se usasse uma frase da antiguidade, em que o juiz, que tenta apurar a verdade, apenas diz ao acusado: Quem és tu? O que dizes de ti mesmo?

Pôr a pessoa a falar de si. E o que nós fazemos é, com a pessoa, redescobrir a sua  história, que por sua vez,  ela vai descobrindo a uma nova luz.

2

 

 

Há a ideia que a psicanálise é olhar para o passado e olhar para os traumas.

 

Não é olhar para o passado, é olhar para o que está presente, a questão é essa! Porque é que a pessoa é assim, porque é que tem aquela angústia. Porquê? Pois se tem aquela angústia e se já percebeu que aquela angústia não se justifica, não basta dizer: Não pense nisso e vá em frente. Isso é que era bom, mas constantemente se vê que não é suficiente. E portanto, é importante a ideia de que o passado é qualquer coisa que nos constitui. Estava a lembrar-me do Raul Brandão que falando da sua infância diz: … ouço hoje como ontem os passos do meu pai quando chegava a casa. E diz ainda: Nunca Londres ou a floresta americana me incutiram mistério que valesse os dos quatro palmos do meu quintal. Quer dizer, é uma coisa impressionante ver como realmente a infância está viva e condiciona o presente.

 

Mas a psicanálise também é transformadora.

 

Claro que é. Por isso é que a pessoa quando faz um processo analítico não fica prisioneira do passado e pode construir o presente de outra maneira, embora não relegue as memórias do passado. O passado pode ser uma riqueza e adquirir um sentido. Pode ter-se a experiência da frescura de viver o presente sem estar contaminado pelos aspectos negativos do passado.

 

E todo esse processo continua a fazer sentido?

 

Eu penso que sim, continua a fazer sentido enquanto o Homem continuar a ser aquilo que é. Cada pessoa tem que ter uma história, e é por isso que as crianças se fascinam tanto com o “era uma vez”. E se o narrador altera a história que ela já sabe, a criança protesta: “não é assim”!

 

Para quem nunca fez uma análise e não sabe muito bem o que é a psicanálise, o que é que o João poderia dizer?

 

Fazer uma análise é encontrar-se a si mesmo e para isso precisa de alguém que oiça e precisa de alguém que ouça num contexto não contaminado pela vida quotidiana. Isso é absolutamente fundamental. A relação com o analista é muito real, mas está à parte da vida quotidiana. Por exemplo, já me aconteceu encontrar uma pessoa que está em análise comigo num intervalo de um concerto.  A pessoa se pode raspa-se, não me fala, e se tem que falar, fala mas vai-se embora. E depois quando vem à sessão conta isso, rindo com o que sentiu, porque sentiu que aquilo era outra coisa. Eram duas coisas que não se deviam misturar.

O quadro analítico é uma das grandes invenções,  e a sua “não contaminação” pela vida exterior é muito importante. O analisando, em princípio, tem uma relação muito próxima com o analista, mas sente-se mal se, por acaso, o encontra na vida social.  A pontualidade é outro aspecto que é óbvio. Uma outra coisa que é muito importante é a pessoa saber que, terminada uma sessão à hora estabelecida, não fica comprometida a continuidade.

Ainda há pouco tempo acabei a análise de uma pessoa. Correu bem, demorou quase 10 anos e a pessoa foi bem, foi contente, foi ela que disse que achava que podia  terminar. Correu tudo muito bem. Mas eu recordando, pensei que essa pessoa tinha vindo durante 10 anos, mas nunca tinha visto outra pessoa que não fosse eu, nunca tinha esperado por mim nem um minuto. Realmente isto é uma coisa fora muito especial.

Há pessoas que trabalham em consultórios e o contexto é diferente e tem que ser, mas eu sinto que é uma vantagem ser eu a abrir a porta, ser eu a fechar a porta, não há recados, é entre analista e analisando.

 

Estava a pensar sobre a disponibilidade que nós temos para as pessoas que nos contactam e que estão connosco. No início da vida, se tudo correu bem, também tivemos alguém disponível para nós.

 

Isso é a experiência inicial. O que é muito diferente da “reconstrução” analítica. Mas sabemos que às vezes isso não é assim. Que as mães não são capazes, não pode ser e isso fica marcado,  às vezes de tal maneira marcado...

 

 

Gostava de vos contar uma história que foi muito importante, extremamente importante no meu trabalho. Em Portugal, a adopção tinha sido extinta no fim do séc. XIX e no tempo do Marcelo Caetano foi reintroduzida timidamente, mas só podia ser a adopção parcial, exigia-se que os pais naturais tivessem morrido. Com o 25 de Abril fez-se uma nova constituição e a Professora Magalhães Colaço, jurista, foi encarregada pelo governo de fazer uma adaptação dos códigos existentes às exigências da nova constituição. Nomearam-se vários grupos de trabalho e eu fui nomeado para um desses grupos, o grupo sobre o direito de família. Nesse grupo estava, por exemplo, a Dra. Leonor Beleza, o  Dr. Vasco Graça Moura, o Dr. Meneres Barbosa que era o director geral do Serviço Tutelar de Menores. Eu estava pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que era a única entidade que fazia adopção para o país todo. Eu não sabia nada, nem havia ninguém em Portugal que me soubesse explicar porque ninguém tinha experiência.E comecei a pensar e a fazer uma coisa que sempre gostei de fazer que foi escrever. E tive experiências interessantíssimas. Por exemplo, nessa altura o Bairro Alto era a zona da prostituição e eu comecei a contactar com as prostitutas enquanto mães das crianças que queriam entregar para adopção. E estabeleceram-se contactos muito relevantes, chegámos ao ponto, por exemplo, de quando apareceu um filme que era softcore, nem sequer era hardcore, que era o Emmanuelle, haver um grupo de prostitutas que me pediu para fazer uma reunião com elas para lhes explicar como era possível aquilo aparecer nos cinemas. E eu fui fazer uma sessão de esclarecimento sexual no Bairro Alto a um grupo de mulheres que faziam prostituição no Cais do Sodré. Havia uma clivagem brutal entre estas pessoas como mães, como mulheres e a vida que faziam.

Em termos da adopção, de facto, punham-se problemas práticos, como é que se ia fazer e como é que não se ia fazer. Aqui colaborei muito com o Dr. Laborinho Lúcio que era o director do Centro de Estudos Judiciários e com o Dr. Armando Leandro. São dois homens excepcionais, de grande inteligência, de grande sensibilidade de quem fiquei muito amigo. Com o Centro de Estudos Judiciários, fizemos formação pelo país todo. E quando digo pelo país todo, é mesmo pelo país todo, a começar em Braga e a acabar em Ponta Delgada. Corremos as capitais de distrito a falar sobre problemas dos direitos de família. Eu falava de adopções, outros falavam sobre outras questões.

E de facto, hoje em dia digo de brincadeira  que será difícil arranjarem-me uma pergunta sobre adopção a que eu não saiba responder.

 

Como é que foi para si ser convidado para um desafio dessa dimensão sabendo, como acabou de dizer, tão pouco?

 

SD - É uma questão de realismo. Pensei, tenho aqui um problema e tenho que o enfrentar, é preciso um bocado de bom-senso e pensar. Por isso é que eu, isto é verdade, eu trabalhei dez anos na adopção e não tive nenhum insucesso.

Aqui há dois ou três anos numa conferência sobre o bebé, a criança pequena, participei numa mesa em que estava uma senhora que era do serviço de adopções da Misericórdia de Lisboa que apresentou, muito contente, todo o seu programa de preparação dos casais adoptivos e eu no fim disse: Desculpe, mas não estou nada de acordo com isso. Passa a vida a dizer às pessoas como vão ser pais adoptivos e de como têm que se lembrar disso e eu digo que eles têm é que se esquecer que são pais adoptivos.

Escrevi um livro com aquilo que foi a minha experiência, a que eu dei o título que me parece que é muito significativo Este meu filho que eu não tive, não tive, mas é meu filho! 

Eu fazia a selecção dos casais, mas não era dizendo-lhes como é que deviam fazer. Havia um casal que queria adoptar uma criança e eu dizia: Sim senhor, vamos falar. Querem adoptar uma criança e eu gostava de saber se isso será bom para vocês, que é a questão fundamental. Porque se me convencer que ficam felizes com uma criança a criança também fica feliz com vocês. Então vamos lá ver: Porque é que querem adoptar uma criança agora? Se há uma esterilidade como é que isso apareceu, como é que isso tem sido vivido, quais são as dificuldades que têm, em que é que pensam, como é que pensam, etc.

3

 

 

Havia pessoas às quais a certa altura dizia: Realmente ainda têm dúvidas aqui e ali e é melhor não se meterem nisso, esperem um pouco mais. As pessoas aceitavam.

Quando um casal chegava a dizer-me, e eu chegava a convencer-me, que tinham condições, e quando aparecia uma criança com as condições mais ou menos previstas para aquele casal, chamava o casal e dizia-lhes: Temos uma criança, façam as perguntas que quiserem, se quiserem falam com o pediatra da criança e ficam a saber sobre a sua saúde, mas não vêem a criança.  Se não quiserem essa criança, dizem que não. E nunca a tinham visto.

Mas se diziam que sim, pegava na criança e dizia: Está aqui! Levam e agora não volta para trás, vocês são os pais. E dava um apoio a toda esse processo adaptativo.

Agora, segundo me disseram, entregam as crianças à condição. Leva-se e se não der certo é devolvida. Eu acho isto uma coisa absolutamente atroz. Um miúdo dizia a uma psicóloga que o estava a seguir: Eu sei que se me porto mal a minha mãe manda-me para aquela casa.

Se é verdade que lhe disseram isto, e mesmo que não tenha sido exactamente assim, cabe perguntar que ideia de mãe foi transmitida a essa criança?

 

A partir do momento da adopção as pessoas precisam de saber que podem contar connosco. Há muitas questões que se colocam, põe-se o problema de saber como é que se diz à criança pequena, quando é que se diz que é adoptada, como é que se fala nisso, por isso as pessoas têm que ir sendo apoiadas conforme a necessidade.

Os miúdos quando refilam, por exemplo, o adolescente, que diz: Não me deixam sair à noite porque não são os meus pais.

E alguns pais:  Ah, que ingrato, nós que fizemos ...

Não e não! Eu falava sempre contra isto, quando acontecer qualquer situação deste género dizem: Nós somos os teus pais, quem manda somos nós!

E a outra coisa clássica que é aquela de dizer: Eu quero conhecer os meus pais. E os pais dizem, ou pensam: Ah, tu és é um ingrato. Eu digo assim: Queres conhecer os teus pais, porque não? Se um dia isso for bom para ti nós até podemos ajudar. E em geral a conversa fica por ali. É essencial os adoptantes, perante a criança ou o jovem, sentirem que é real a relação de parentalidade que têm com ele.

 

Hoje nas instituições e às vezes em situações de pré-adoção, há miúdos com histórias complicadíssimas.

 

Terríveis!

 

Será que todos os miúdos têm condições para ser adoptados? 

 

Em princípio, acho que todos têm condições para ser adoptados. Os adultos é que podem não ter condições para serem adoptantes de uma criança especialmente difícil. E portanto é indispensável escolher bem o adulto e dar apoio adequado. Tratando-se de uma situação gravemente patológica, os adoptantes tem que ser devidamente informados antes de tomarem a decisão. 

 

Há situações muito delicadas, por exemplo, as mães que antes do parto decidem dar a criança para adopção e depois, na maternidade, as enfermeiras insistem para que amamentem o bebé. Isso parece-me uma violência.

Aprende-se imenso a trabalhar com crianças muito pequeninas, com bebés. Nesse aspecto aprendi muito com o João dos Santos. Houve uma altura em que íamos os dois fazer observação de crianças em jardins de infância. E houve uma altura em que o Pedro Luzes levava os alunos dele a verem-me a observar uma criança pequena no hospital de S. Roque, da Misericórdia, onde eu trabalhava. Era sempre um bebé que eu não conhecia e a partir da ligação que fazia com a criança, descrevia a mãe, que tipo de mãe era, etc.

A esse propósito aconteceu-me uma coisa muito engraçada. Uma médica diretora do hospital pediu-me para ir ver um bebé:  Está ali uma criança que tem 9 meses e foi abandonada. Gostava que visse o miúdo a ver se está em boas condições para ser adoptado. Fui lá um dia à hora de almoço e quando me aproximei do berço o miúdo estava em pé, agarrado à grade do berço.

 

 

A enfermeira que estava com ele perguntou: Quer que fique aqui? - Fique, brinque com ele. E fiquei ao lado dela a vê-la brincar com o menino. Ao fim de um bocadinho comecei eu a brincar com o miúdo. E depois, pouco tempo depois, escrevi na papeleta, que era um caderno que estava pendurado na parte dos pés do berço: Não sei como, mas este miúdo tem uma mãe boa dentro de si e por isso está em boas condições para ser adoptado.

A médica no dia seguinte veio-me dizer: Desculpe, foi engano, a mãe daquele miúdo vem vê-lo todos os dias (risos). Eu não sabia mas senti, vi perfeitamente. Por uma razão simples. A criança conhecia a enfermeira, deu-se bem com ela, a mim não me conhecia, mas aceitou brincar comigo sem angústias, sem dificuldades, portanto, tinha um bom objecto interno.

 

Eu acho que aquilo que disse há bocado é verdade, todas as crianças precisam de ser adoptadas quando não têm ninguém, nós temos de ver é quem é que as pode adoptar e porquê. E às vezes é preciso uma certa ajuda, não é?

                   

O João há uns tempos contou uma história de um bebé que não comia.

 

SD -Ah, sim. Não é não comia. Esse bebé comia, mas não aumentava de peso, o que é ainda muito mais interessante. Não engordava. O miúdo mamava sofregamente e quando acabava tinha fúrias, regurgitava, berrava e depois não engordava.

Fui assistir à enfermeira a dar-lhe o biberão. A enfermeira sentou-o ao colo e eu sentei-me de forma a olhar a criança nos olhos, porque isso é fundamental. Quando ela ia dar-lhe o biberão eu disse:  Não, espere. O bebé tinha 3 meses e eu fui fazendo movimentos com a mão, fui captando a atenção dele, os olhos dele, fui falando com ele e estive ali um bocado, aí uns dez minutos ou assim. Quando vi o bebé um bocadinho mole disse: Dê-lhe o biberão. A enfermeira deu-lhe o biberão e o miúdo ao fim de três ou quatro mamadas empurrou o biberão e não quis mais. A enfermeira fez o movimento de lhe dar outra vez o biberão e eu disse: Não. E expliquei-lhe: Este é o momento em que o bebé diz que prefere estar comigo a beber o biberão. E fiquei ali com ele, a falar, a interagir. Passado um bom bocado começou a ficar mortiço e quando o vi mortiço: Agora, dê-lhe o biberão devagarinho. A enfermeira deu-lhe o biberão e ele mamou, mamou e adormeceu antes do fim, quando a médica dizia que ele mamava sofregamente e ficava zangado quando acabava. Adormeceu e eu expliquei: Olhe é assim que faz, porque sabe o alimento da criança é a mãe, o leite escorre por acaso. Este miúdo mamava sofregamente à procura da mãe, quando acabava o leite ele não encontrava ninguém e tinha uma fúria e regurgitava tudo.

A médica cinco dias depois perguntou-me: O que é que fez ao bebé, nunca mais aumentei a dose do biberão e ele está a aumentar de peso.

Agora um trabalho destes, como é óbvio, tem de ser continuado.

De facto o primeiro tempo de vida marca uma pessoa e temos que ir à procura disso quando se faz uma análise, apesar de obviamente isso não estar lá como uma realidade. Está lá depois de uma história. Qualquer pessoa começa na infância e tem um longo crescimento e o que se passa neste longo crescimento é que constrói um homem.

Lembrei-me agora de uma história, de um miúdo que tinha para aí dez anos e estava num internato. Um dia quando cheguei à porta para me ir embora o rapaz disse-me: Eu não te deixo ir embora. Olhei para ele, pensei um bocadinho e respondi: Já pensaste que se não me for embora não posso voltar? E o rapaz abriu a porta e deixou-me passar. 

 

A importância da continuidade.  

 

SD - Ele passou a pensar em mim como aquele que volta, não como aquele que vai.

 

Não o que abandona, mas o que permanece na ausência.

 

SD - É isso. Perceber estas coisas da psicologia das pessoas é muito importante e saber dizê-las também.

bottom of page