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Lucy Evangelista

Arqueóloga e Antropóloga Biológica

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Quem é a Lucy?

 

A Lucy sou eu, é a primeira coisa que posso dizer. Tenho 46 anos, sou mãe de três filhos.  Vivo em Lisboa desde 1997, nasci cá, mas fui muito pequena para o Porto, onde vivi até aos 18 anos. Sou Arqueóloga de licenciatura e de mestrado e, depois, doutorei-me em Antropologia Biológica, em Coimbra. Não sei, sou muitas coisas, somos todos muitas coisas. Sou neta da Sr.ª D. Isaura e sobrinha-neta do Sr. Pe. Telmo, que são os meus antepassados tutelares. Sou uma de cinco irmãos, a segunda. A família da minha mãe é inglesa, e ela casou com um transmontano, que era filho único, conheceram-se em França. Portanto, nunca tive muita família aqui em Portugal, a não ser a minha avó Isaura, o meu tio Telmo e o meu tio Gil, a quem eu chamo a minha Santíssima Trindade. 

 

Como foi viver para o Porto?

 

Quando me perguntam de onde é que eu sou, eu digo sempre que sou do Zoio. É uma aldeia em Trás-os-Montes, onde a minha avó vivia e onde o meu pai cresceu. Era uma família de três pessoas: a mãe do meu pai nasceu no Brasil, o meu avô no Zoio e o meu pai em Moçambique. Três pessoas, três continentes. O meu pai é que era transmontano, apesar de ter nascido em Moçambique. Os irmãos da minha avó não tiveram filhos, então o meu pai era o único descendente daquela linha. Eu nasci em Carcavelos, onde os meus pais viviam e fui muito pequena para o Porto, mas estas movimentações dos meus pais tinham a ver, penso, com o trabalho deles. Primeiro, vivemos em Miramar, depois, pequena, fui viver para Vila Nova de Gaia, para um sítio encavalitado nas margens do Douro, chamado Avintes, que é famoso por causa da broa. E finalmente mudámos para o Porto, para a zona de Serralves, onde vive ainda a minha mãe. Aos dezoito, dezanove, foi quando vim para Lisboa.

 

Fez a licenciatura em Lisboa?

 

Fiz tudo no Porto. Já casada, porque eu casei-me muito cedo, aos 20 anos. Fiz a licenciatura no Porto, casei-me a meio da licenciatura, depois o mestrado, e o doutoramento fiz em Coimbra. Nunca estudei em Lisboa.  

 

Porquê a Arqueologia?

 

Eu, até aos doze anos, queria ser freira, por influência do meu tio, claramente, e também porque quando vivi em Avintes estudei no Colégio das Doroteias, no Sardão. Aquilo para mim era tudo muito místico, aquelas mulheres, aquele silêncio, aqueles jardins. E o meu tio tinha uma abordagem à religião que eu retive, talvez por isso não consiga dizer que não sou crente, porque Deus foi-me sendo ensinado assim a passear, em Trás-os-Montes, tudo muito telúrico. Era gente de um tempo muito antigo, o meu tio nasceu em 1929, a minha avó em 1918, por isso ainda tive acesso a uma vivência muito antiga, a uma maneira de pensar muito primordial, muito ligada à Terra, aos ciclos, e a religião vinha toda misturada por meio disto tudo. Estando nas freiras, eu era assim muito silenciosa, falava muito pouco, dizem-me, era muito tímida, ainda sou; as pessoas riem-se quando eu digo que sou tímida, mas não sabem que a timidez não tem nada a ver com a capacidade… 

 

De interagir com outros. 

 

De interagir com outros, sim. Era muito tímida, a minha avó mandava-me sair para comprar arroz na mercearia do Zoio e eu ficava…

 

Era uma aflição.

 

«O que é que eu digo às pessoas que encontro na rua, o que é que eu faço?» Mas o meu tio é, de facto, uma pessoa importantíssima na minha vida. Também já morreu, aliás, o meu pai, a minha avó e o meu tio, que eram a minha família portuguesa, já morreram todos, com intervalos de dois anos. Julgo que isso se explica por estarem todos muito conectados. Resta a minha mãe que, claro, é de uma tradição completamente diferente, anglo-saxónica. Eu também tenho assim aquele pragmatismo anglo-saxónico. Às vezes, perguntam-me quanto de mim é inglês e eu não sei muito bem, sou meio inglesa, tenho nacionalidade inglesa, tenho um nome inglês. A Inglaterra era um espaço de visita ao mundo da minha mãe, à minha avó, que também era católica, eram ingleses católicos. 

 

Portanto, acerca da religião, tive uma educação muito aprimorada sob esse ponto de vista, mas não da forma como a minha mãe fala da religião na infância dela, de uma maneira muito temerosa, muito de Deus e do Inferno e do «porta-te bem». Comigo, era exatamente o contrário, era uma maravilha e então, talvez por isso, e porque o meu tio era uma pessoa com quem falava muito, passeávamos muito, até aos doze anos, pensava que ia ser freira. E às vezes acho que ainda vou ser. Às vezes, tenho aquela sensação de que ainda vou acabar os meus dias [risos] num convento, em silêncio. 

O silêncio é importante para si. 

 

É, mas tenho pouco e não sou muito praticante. Tenho uma vida muito agitada, agora menos. Mas nunca fui uma pessoa com muito tempo, porque a minha mãe, não sei se naquele espírito muito do pós-guerra, era uma pessoa com a fobia da utilidade, então, nunca na minha vida dormi em casa da minha mãe depois das oito da manhã. E não me recordo, em adolescente, de ter muito tempo para mim, nem espaço, porque entretanto os meus irmãos mais pequenos nasceram e eu fui muito encarregada deles. 

 

Mas não me lembro de querer ser outra coisa que não fosse Arqueóloga. Eu acho que nunca tive muito interesse pelo futuro, aliás, eu tenho um problema, é que não planeio nada. Pelo menos não penso nele, não é algo que gere em mim ansiedade. Ou seja, emocionalmente, as minhas âncoras estão todas para trás, sempre para trás. 

 

Mas no passado ou também no presente?

 

O presente é mais difícil. Às vezes, faço esse exercício do presente, do ficar e enraizar, mas o que é o presente? Porque se formos a pensar, tudo é passado. E depois, eu não sei se se misturam uma série de coisas que me foram acontecendo, em pequenina. Nós éramos muitos, e então o meu pai e a minha mãe, aos fins de semana, metiam os filhos todos no carro e íamos, às vezes, para longe do Porto, ao Mosteiro da Batalha, ao Mosteiro de Alcobaça e aquilo era extraordinário para mim.

 

Portanto, a Arqueologia correspondeu àquilo que queria?

 

Teoricamente sim, depois a prática da Arqueologia é muito diferente. A Arqueologia interessa-me como um lugar de entendimento, acho eu, de perceber, de contexto. 

 

Perceber a História.  

 

Perceber. Perceber as ligações. E depois lembro-me, não sei porquê, da primeira vez que a minha professora primária nos contou a história da fundação de Portugal, ainda com aqueles termos e nomenclaturas todas, eu fiquei fascinada.

 

No verão, em família, fazíamos muitas viagens ao sul de França e fomos visitar muitas daquelas grutas pré-históricas, Rouffignac, Lascaux. Comecei a colecionar fósseis. A partir daí, quando me fui aproximando da decisão de «o que é que eu quero fazer», não me ocorreu mais nada, acho eu. Comecei na Arqueologia e depois desviei para a Antropologia Biológica, por um conjunto de razões. A primeira delas foi porque, por um mero acaso, desde o princípio, cruzei-me com contextos funerários em arqueologia e aquele trabalho com os ossos, talvez por ser uma ciência mais exata, começou a interessar-me muito. Percebi que não podia trabalhar nisso sem ter a qualificação necessária, obrigatória em Portugal e, como já tinha mestrado, fui fazer o doutoramento, aos 35 anos, em Coimbra. 

 

E correspondeu ao que estava à espera?

 

Gostei muito da experiência, até letiva, de Coimbra. Coimbra tem, naquela escola em particular, uma mentalidade que eu não associo ao resto da mentalidade académica portuguesa. É muito aberta, fluida. Tive professoras maravilhosas, só tive um professor, aliás, a Antropologia é muito uma profissão de mulheres. 

 

Haverá alguma razão para isso?

 

Não sei. A Antropologia Biológica, posta em prática, é muito técnica. Quando chegamos a uma escavação onde há contextos com ossos, a primeira coisa que temos de perceber é se os ossos são humanos, se não estamos a ultrapassar limites legais, se não estamos a tratar de algo que seja da área forense, etc. Temos de fazer um trabalho de escavação, de registo e de análise do que encontramos para responder a uma série de perguntas que, no fundo, são o perfil biológico. 

As perguntas estão padronizadas à partida? 

 

Sim, estão padronizadas, a diferença entre o Forense e aquilo que eu faço, é que o Forense quer responder a uma pergunta muito direta, que nós não temos hipótese de responder, que é contribuir para uma identificação positiva de um indivíduo que está ou desaparecido, ou que foi vítima de um crime, de um desastre em massa ou de queda de avião, por exemplo. São especialistas em ossos humanos que, pela morfologia dos ossos, fazem comparações com registos existentes, e percebem que, por exemplo, determinado crânio ou arcada dentária pertencem a uma determinada pessoa. 

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E a Antropologia Biológica?

Nós não, nós escavamos anónimos. Mas, em princípio, só escavamos Sapiens sapiens, há outras espécies humanas que são especialidade de outros colegas, os Paleoantropólogos. E claro que, quanto mais para trás, mais difícil é encontrar um registo ósseo, porque os ossos são matéria orgânica e a matéria orgânica responde ao ambiente em que está. Nós fazemos um trabalho de escavação em que temos um esqueleto, ou o que resta dele, ou muitas vezes nem sequer temos um esqueleto, porque temos apenas contextos secundários de ossários ou de montanhas de ossos fragmentados e, basicamente, tentamos caracterizar um indivíduo, biologicamente, ou uma comunidade, demograficamente. 

 

Se for um esqueleto que está estendido, na norma cristã, por exemplo, inteiro, como muitas vezes temos a sorte de encontrar, observamos certas áreas anatómicas, macroscopicamente. A partir daí, vemos se tem características masculinas ou femininas, nós temos aspetos sexualmente dimórficos no esqueleto que têm que ver com a nossa função biológica e que são visíveis a partir da puberdade. Já sobre uma criança de cinco anos, é impossível dizer se se trata de um menino ou de uma menina. 

 

A idade à morte é outro aspeto que também tentamos analisar. Nos adultos, a partir do momento em que o esqueleto está formado, à exceção das coisas degenerativas típicas da idade, é muito difícil perceber. Nas crianças, é muito fácil atribuir uma idade, porque como os ossos e os dentes vão crescendo, podemos conferir esses dados nas tabelas de referência, que nos dão essa informação. 

 

Outro aspeto é a ancestralidade. Lisboa, por exemplo, desde muito cedo, teve uma população muito misturada, europeia e extra europeia e o esqueleto humano, pelo planeta fora, também varia com pormenores que se diferenciam. Portanto, podemos olhar a ancestralidade e tentar perceber a origem geográfica das pessoas. 

 

E depois, fazemos uma análise daquilo a que nós chamamos patologia: o osso é uma estrutura viva e também responde a afetações a que é sujeito. Se uma doença for longa, pode afetar os ossos - uma gripe ou uma peste negra não afetam, mas os quadros mais graves, infeciosos, por exemplo, como os quadros sifilíticos, as tuberculoses, são doenças que podem ser vistas, apesar que dificilmente. Os aspetos biológicos normalmente contribuem para a demografia e para a perceção da doença ao longo do tempo.

 

A Lucy comentou, a certa altura, que os enterramentos dizem mais acerca dos vivos do que acerca dos mortos. 

 

Sim, esse é o outro lado. E a mim, o que mais me interessa é perceber precisamente o contexto, a cultura, o que está ali a acontecer e o que é que aquela forma de tratamento dos mortos nos está a dizer sobre os vivos, e como é que eles viam o mundo - o que é sempre muito difícil, depende das épocas. Há épocas para as quais está tudo escrito, o período Romano é muito mais fácil de compreender do que aquele que eu mais gosto de estudar, que é o terceiro milénio a. C. – são comunidades humanas muito distantes, não há nada escrito sobre elas, mas ali está o seu testemunho sob a forma de estruturas arquitetónicas, além de outros aspetos, que vão desde restos do quotidiano, cerâmica, pedras lascadas, até ao próprio registo funerário, os mortos e os que os acompanham. 

 

Portanto, a mim, interessa-me compreender quer esta biologia, quer esta demografia, mas interessa-me também entendê-las dentro de um quadro maior, que possa explicar o que está ali a acontecer. Estive, até há pouco tempo, na Necrópole dos Lagares, na Mouraria, em Lisboa, que descobrimos em 2016. Escavámos ali bastante tempo e encontrámos indivíduos que estão depositados de uma forma muito diferente da de um cristão, estão de lado, com a cara a olhar para Meca.

 

Consegue-se perceber esse detalhe?

 

Sim, o enterramento de rito islâmico é absolutamente impossível de confundir. E isto levanta muitos problemas, porque são muito ortodoxos em relação a esta ideia da morte e da mortalidade e não é suposto serem exumados. Mas, em Portugal, há imensos vazios legais para este tipo de situações. Também interferimos na necrópole judaica, e aí está outra comunidade para a qual a exumação é muito complicada. Na verdade, estamos a responder a questões legais que são paralelas a esta, mas há uma questão que se sobrepõe a todas, que é a ideia de que se não forem retirados, são destruídos e, entre uma e outra, talvez o registo seja o mais importante. 

 

Enquanto um enterramento judeu e cristão são muito difíceis de distinguir entre eles, são iguais, no Islão, os mortos são enterrados sem nada, em princípio, são lavados e envoltos numa mortalha e depositados numa fossa muito simples. Há variações ao longo do tempo, mas são indivíduos que são encontrados em decúbito lateral, o lado não interessa muito, e o que interessa é que o rosto esteja virado para Meca. 

 

Para podermos chegar mais fundo no entendimento do contexto que rodeia este tipo de enterramento, é preciso ter lido, estudado e compreendido as populações do passado. Penso que não aprendemos nada sobre isso se nos centrarmos apenas na biologia. Era um homem, morreu com mais de 50 anos, tinha uma fratura remodelada. Mas quem era, de que comunidade fazia parte? Não temos uma identificação positiva para cada um destes esqueletos. Aliás, recentemente, no Convento de São Domingos, na Baixa de Lisboa, ao longo de quatro anos, desenterrámos mais de cinco mil esqueletos, dos quais três mil eram de bebés. 

O que se faz a essas ossadas ou restos humanos? 

 

Temos de os estudar muito bem, registar e entregar um relatório científico, que tem de ser aprovado pela tutela. Mas um bebé que nasceu morto, ou que morreu com seis meses, ocupa um pequeno saco. O esqueleto é limpo e ensacado com uma lógica anatómica e os ossos são guardados em contentores. No caso dos bebés, cabem muitos, o que é bizarro. E depois são entregues à tutela e guardados sob a sua alçada, em grandes armazéns, em Lisboa, ou em museus municipais. 

 

Porque começaram essas escavações no Convento de São Domingos?

 

Começaram como tantas outras em Lisboa. Neste caso, era o edifício do Braz & Braz, que foi comprado pelos donos de um hotel ali ao lado. Nos processos de licenciamento, a arqueologia é obrigatória, e o mínimo de estudo prévio deu-nos a entender que parte daquele edificado era o que restava do antigo Convento de São Domingos. Do ponto de vista dos restos humanos não é difícil perceber porque estariam ali, porque até ao Decreto de Costa Cabral, em 1844, os mortos eram enterrados em igrejas ou em terrenos à volta das igrejas, os cemitérios municipais só existem a partir dessa data. 

 

Então, sabendo nós que o edifício estava construído em cima das ruínas de um claustro de um convento dominicano, a probabilidade de encontrarmos restos humanos era gigantesca. Só não estávamos à espera de que no claustro aparecesse esta quantidade colossal de seres humanos, é a maior coleção de não adultos do mundo e não corresponde ao que seria expectável ali, porque era uma população muito selecionada, ou seja, daqueles quase três mil que tirámos, 90% tinham uma idade à morte inferior a um ano. Havia esqueletos de três anos, alguns de cinco, mas poucos, e no meio de três mil havia uns seis ou sete adultos. Então, claramente, isto não tem que ver com a utilização funerária expectável do convento, que era aquela que depois encontrámos nos corredores e na sala do capítulo, onde estavam os restos mortais do Cardeal Cosme da Cunha, dos patronos dos dominicanos, de homens, mulheres, crianças, famílias, enfim, o que é normal. 

 

Os bebés são algo que estamos ainda a tentar explicar, até porque eles respondem a uma janela cronológica muito estreita, o que é muito raro em arqueologia. 

 

E como se sabe que é um intervalo muito estreito?

 

As ordens religiosas foram extintas em 1834, portanto, a partir daí, sabemos que não há qualquer lógica em que os enterramentos continuassem a ser feitos ali, e sabemos, porque está escrito, que o convento foi comprado pelo senhor que depois construiu o Braz & Braz.

 

O que nos traz uma relação com a data do terramoto.

 

No terramoto de 1755, há uma parte do convento que sofreu danos graves, mas a verdade é que o claustro e a sala do capítulo pertenciam à arquitectura do segundo convento, porque Lisboa não teve só o terramoto de 1755, teve um enorme em 1531, no qual o convento original caiu. Foi depois reconstruído na época filipina, no séc. XVI, e era esse segundo convento que estava dentro do edificado no pós-terramoto. 

 

E como foi definido esse intervalo? 

 

O teto superior da cronologia percebe-se por causa da extinção das ordens religiosas em 1834. Depois, a arqueologia funciona muito com um termo, um bocado antiquado, que é o de «diretores fósseis», aplicável a todas as épocas. Por exemplo, uma ânfora com uma certa configuração diz-nos que se esta ânfora existe em determinado local, então estamos perante um contexto do séc. II d. C. E o mesmo acontece em São Domingos: há um tipo de cerâmica que só começa a ser fabricada em Portugal depois de 1775, aparentemente numa fábrica em Aveiro, e os bebés estão enterrados por cima do sedimento que contém estes restos cerâmicos, logo, temos bebés posteriores a 1775 e anteriores a 1834, o que é um intervalo minúsculo para a arqueologia. Eu penso mesmo que eles são da transição do séc. XVIII para o séc. XIX. A mortalidade infantil era gigantesca.

 

É espantoso que entre esses bebés haja tão poucos adultos, a mortalidade infantil devia ser enorme, mas a materna também.

 

Mas ali devemos estar a responder a preceitos religiosos. Eu suponho que seja um contexto de crianças não-batizadas, e as mães sendo, se calhar eram postas noutro sítio qualquer. É uma ótima pergunta. A verdade é que há poucos estudos sobre a tradição funerária em Lisboa, não se sabe nada, o séc. XVIII foi ontem e não se sabe nada. 

 

A própria tradição funerária, do séc. XX para o séc. XXI, quanto aos rituais associados aos enterramentos, aos funerais, à morte, também tem mudado bastante. 

 

Mas o mundo está numa gigantesca crise simbólica. Penso que é tudo uma resposta a uma crise ou ao fim de um tempo. 

 

Há uma transformação. 

 

Há uma transformação. O cristianismo, os processos históricos… No séc. XIII ou no séc. XIV, aquelas grandes catedrais são já como que o apogeu de um processo. Há processos históricos longos, e avanços e recuos, mas esta matriz ocidental de base judaico-cristã está a desaparecer. E a aceleração do tempo histórico, nos últimos trinta anos, é uma coisa absurda.

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A que chama aceleração do tempo histórico?

 

Os tempos sempre mudaram, mas acho que nunca mudaram tão depressa. Eu lembro-me de algo muito diferente, que era muito mais imutável e penso que, antes da minha avó, não havia grandes distinções entre a avó dela e a bisavó ou a trisavó. 

 

A aceleração do tempo histórico acaba por ter impacto na forma como se vive a morte.

 

A morte é algo de que estamos cada vez mais arredados. 

 

Por um lado, sim, porque as pessoas morrem menos em casa, por outro lado, nesta última dezena de anos, voltou a estar-se mais atento, mesmo nos hospitais, à vontade da pessoa e à possibilidade de ir para casa e ter um acompanhamento.

 

Mas aí, a pessoa está viva. Ou seja, há um cuidado no fim da vida. Passar quatro anos a escavar bebés é pesado, e houve um dia em que eu estava com uma máquina fotográfica digital a tirar fotos a um crânio de um bebé, quando aparece a mensagem «rosto detetado». Aquilo mexeu comigo. E eu pensei que, a uma certa altura, há uma espécie de objetificação daquilo que estamos a fazer, temos de distanciar-nos. Mas depois pensei também: «Porque é que eu tenho tanto cuidado com isto?» Então, eu e a Cidália Duarte, uma grande antropóloga com quem comecei a escavar esqueletos em 1997, tentámos perceber como é que a morte era vivida nas diversas profissões e nos diversos âmbitos em que ela existe. E chegámos à conclusão de que nós somos, provavelmente, a profissão que trata os mortos com um respeito mais reverenciado, porque mais ninguém o faz. Tem toda a razão quando diz que há cuidados paliativos e que as pessoas vão morrer a casa, mas isso é o cuidar da pessoa enquanto ela está viva. O corpo, o morto, é algo que é tratado de uma forma quase violenta. 

 

Nós já vemos os mortos no caixão, já preparados. 

 

E o médico faz tudo para salvar a pessoa, mas a partir do momento em que a pessoa está morta…

 

Nunca tinha pensado dessa forma. 

 

Os padres católicos têm enraizada esta ideia de que o corpo é um «templo corrupto» para a alma e que, a partir do momento em que o espírito se liberta, o corpo não interessa, o que está errado, porque, na verdade, a tradição judaico-cristã é diferente desta. Ou seja, o indivíduo é corpo e alma, e por isso é que os judeus são tão cuidadosos com a ideia do corpo e da memória, de lembrar os mortos. Mas penso que isto está muito introduzido no cristianismo atual. E é por aí que entra a cremação que, teologicamente, se formos ao fundo da questão, não devia ser o ritual mais correto no cristianismo. No princípio do cristianismo, em que ninguém sabe muito bem o que aconteceu, deve ter havido a introdução destas filosofias orientais e então assumiu-se esta ideia de que o corpo não interessa, o que é contrário ao que eu penso serem os preceitos judaico-cristãos mais ortodoxos. Portanto, se numa igreja se encontrarem ossos, os padres não valorizam; o Cardeal Cosme da Cunha, por exemplo, não despertou muita atenção. 

 

E porque é que o Cardeal Cosme da Cunha foi importante em termos arqueológicos?

 

Apenas porque houve uma identificação positiva, e isso acontece poucas vezes em Portugal. É uma exceção. E porque ao desenterrá-lo a ele, desenterrámos um bocado da história. Há um retrato do Cardeal, conhecem-se os meandros da vida dele, renegou o nome Távora, juntou-se ao Marquês de Pombal, era inquisidor, etc… Mas nós não podemos olhar para o passado com os olhos de agora, é um erro. 

 

Estava a dizer que, com a colega Cidália Duarte, tentaram perceber como é que as diversas profissões tratavam a morte. 

 

Sim, convidámos um médico, dos cuidados intensivos, que escreveu um texto acerca dos cuidados antes da morte. Falámos com um teólogo, especializado em práticas funerárias, que nos ajudou a perceber esta relação que o clero católico tem com os mortos, de encomendar as suas almas e consolar os que ficam. Convidámos uma arquiteta, especializada em estruturas funerárias, que fez o crematório de Matosinhos; é um sítio muito bonito, espiritual, muito leve, mas é algo que está, mais uma vez, a tratar dos vivos que estão ali a entregar o seu morto. E falámos também com um advogado que tinha trabalhado em Direito aplicado ao cadáver. E depois estamos nós. 

 

Nesta profissão em que eu estou, os mortos são cuidadosamente abordados e tratados, e eu não sei muito bem porquê, não consigo perceber; ou percebo, é porque temos uma identificação com eles. Na Pré-história, ou em tempos mais recuados, um animal tinha o mesmo tratamento que um ser humano, uma paridade, houve um tempo em que a humanidade vivia assim, num sistema mais natural, orgânico, e ainda há vestígios disso por aí, nas religiões animistas, mas rapidamente começámos a distanciar-nos disso e a dar a nós próprios um tratamento diferente. 

 

Continua a ter essa interrogação para si?

 

Continuo a ter esta interrogação, e é um bocadinho uma aflição. Por exemplo, eu mandei rezar duas missas pelos bebés de São Domingos. A certa altura, tornou-se uma coisa tão pesada, verdadeiramente pesada, à qual era difícil dar sentido, não é?

E foram quatro anos, muitos corpos desenterrados…     

 

… e necessariamente a entrar num processo muito mecanizado, gerador de angústia, muito pesado emocionalmente. Então, não tinha bem forma de resolver isso, de arrumar, a única forma que encontrei foi pensar que, de alguma maneira, ao encomendar os inocentes de São Domingos podia fazer a minha parte. 

 

Por exemplo, em São Domingos de Rana, estivemos a escavar num sítio de fossas, que são estruturas arquitetónicas usadas desde sempre, desde a Pré-história, são buracos abertos na rocha, muito perfeitinhos, podem ser lixeiras, podem ser usados para guardar cereais, etc. Estas fossas devem ser pré-históricas, devem ter sido abertas na Idade do Bronze, mais ou menos no segundo milénio a. C. Mas no período Medieval, pode ser Islâmico ou não, porque há inclusão de cerâmicas, o sítio voltou a ser visitado. E, no ano passado, enquanto se escavava, começou a aparecer um conjunto de ossos que era humano, mas que era estranho, ou seja, o que estava um humano a fazer numa fossa que não é uma estrutura funerária? Não se sabe o que aconteceu, mas as pernas do esqueleto acabavam repentinamente e o resto das pernas e os pés apareceram ao lado. E analisando com atenção, percebeu-se que lhe tinham cortado os pés, antes da morte, provavelmente como castigo e meteram-no ali. Já aconteceu, no Alentejo, encontrarmos indivíduos sem mãos, atirados para trás, caídos. E voltou a aparecer neste sítio, na última fossa que estávamos a escavar, outro esqueleto em condições semelhantes. 

 

Nós sabemos que no período Islâmico se praticava a justiça salomónica, era «olho por olho». Temos ali restos humanos, mas não estamos perante um contexto funerário, nem ritualizado, nem nada. Evidentemente que os bebés são uma realidade difícil, mas se eu parar para pensar na violência implícita e no sofrimento destes… 

 

É de facto, uma história tenebrosa. 

 

A questão é a acumulação disto ao longo do tempo.

 

Mas depois fica o espaço para o imaginário.

 

Fica o espaço para o imaginário, e anos e anos nisto é pesado. E, por isso, escavo menos, hoje em dia. 

 

Pensa na sua morte?

 

Parece que eu já morri. Numa das operações que fiz, fui informada que tive uma paragem cardíaca. Se já morri, então não tenho de me preocupar, não é? Se penso na minha morte? Já tive mais essa angústia, vou dizer aquilo que qualquer pessoa diz, de morrer não tenho medo, tenho medo é do processo que constrói esse momento. Adorava ter uma morte santíssima, em que não acordava, ou assim. E, talvez porque vivo no meio disto tudo, eu tenho noites, às vezes, um bocado difíceis. 

 

Mas por isso é que eu prefiro os períodos mais longínquos, porque os esqueletos são já fósseis e, como não se sabe nada, é possível imaginá-los como nós quisermos, os mais próximos é um bocadinho mais difícil. 

 

Precisa muito de ter uma boa vida para compensar este trabalho… 

  

Penso e tenho uma vida fora do trabalho, plantas, sol, mar, amor, a vida no seu pleno, os amigos, a celebração… Mas sempre com esta consciência profunda da finitude... Eu acho que esta minha forma de ser relativiza de alguma forma as coisas. A certa altura, tudo se desmistifica um pouco. É preciso fazer alguns exercícios de leveza, mas não sei se isto não tem um efeito mais profundo do que se possa pensar. Este trabalho é pesado. Depois, gera histórias muito engraçadas; o que mais me interessa é depois poder contar a história e então, aí, tenho uma grande alegria.

 

Por isso, em relação aos bebés de São Domingos, eu não descanso enquanto não contar a sua história, é o mínimo que eu posso fazer por eles, dizendo o máximo que eu puder. Isto apesar de as condições de investigação em Portugal serem difíceis, não é fácil conseguir financiamentos para abordagens mais alargadas com conhecimentos de outras áreas científicas. 

 

Mas, ainda acerca de São Domingos, temos agora um projeto a decorrer com a participação de vários investigadores. Uma delas, a Delminda Rijo, que trabalha com arquivos paroquiais e com a história mais recente no Gabinete de Estudos Olisiponenses, está a dar-nos informações muito interessantes relativamente aos gestos que podem estar na origem destas deposições de tantos meninos no claustro de São Domingos. Por exemplo, no séc. XIX, os pais não tinham como enterrar os filhos e, muitas vezes, havia o hábito de depositar os bebés amortalhados à porta ou no interior das igrejas. Aliás, os bebés de São Domingos foram todos cuidadosamente depositados, envoltos em mortalhas, encontrámos até os alfinetes que prendiam as mortalhas.

 

Foram cuidados. 

 

Muito cuidados, tudo aquilo é um gesto. 

 

Os pais amortalhavam e deixavam os corpos das crianças à porta das igrejas.

 

Sim, para os padres enterrarem. Há um corte tremendo entre essa forma de viver e a atualidade, são duzentos ou trezentos anos, tudo mudou completamente, e o passado é este mistério de que sabemos muito pouco. 


 

Lisboa, janeiro de 2024

Entrevista realizada por Alexandra Coimbra

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