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Rita Valadas

Presidente Cáritas Portuguesa

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Quem é a Rita Valadas?

Rita Valadas é uma mulher, mãe, com formação na área da política social, que sempre trabalhou na área da intervenção social, com alguns recreios fora dessa área, para cumprir alguns desafios. É uma pessoa que entende que a sua palavra chave é rasgar, que tende a pensar, ou a decidir, sempre com base no contraditório, que é aquilo que a desafia; que gosta de desafios, de coisas novas, de encontrar soluções para os problemas complexos, ou cada vez mais complexos, com que se vai cruzando no caminho, que preserva e que cuida muito da amizade, que considera ser a base do equilíbrio. 

A base do meu equilíbrio interior, é mesmo o estabelecimento de relações produtivas… não precisam de ser mansas, têm é que ser produtivas (risos). Mas do ponto de vista externo, ou daquilo que a Natureza me pode dar, o meu ponto de equilíbrio é sempre luz e mar. 

Há aí dois aspetos que se ligam: as amizades não precisam de ser mansas e a sua palavra chave é rasgar. Porquê rasgar?

Pois, o rasgar… eu gosto muito de palavras e gosto de devolver às palavras aquilo que elas significam. Rasgar para mim é abrir horizontes, não é destruir, não é figurativo de uma folha de papel, é figurativo de um horizonte, do muito que nós temos para aprender naquilo que está fora de nós. Não tem a ver com a violência de rasgar e não ser mansa, é porque eu acho que as relações interpessoais, se forem mansas, não estão a ser devidamente exploradas, e isso também tem a ver com o facto de eu gostar do contraditório, eu gosto muito de conhecer opiniões diferentes das minhas. 

É verdade que para mim a amizade, ou as relações pessoais positivas, são sempre construídas na verdade de cada um, não tem que ser na minha verdade. Por isso digo que podem não ser mansas, aquilo que eu cultivo é que as pessoas tenham a abertura suficiente para exercer esse seu espaço na minha vida, que é dizer a verdade ou usar as suas inquietações para esclarecer qualquer coisa que nos leve mais longe. 

Isso implica uma capacidade grande de tolerância.

Eu acho que a tolerância é uma prática antiga, mas é uma palavra recente na minha vida, e que eu entendia como mansa (risos). Hoje compreendo que a tolerância está precisamente em aceitar todos os contraditórios, todas as diferenças, e encontrar um consenso que me sirva a mim, sirva os outros, e que justifique estabelecermos uma relação, seja ela qual for. As palavras na minha vida mudam muito, não são muito serenas também. 

Na área da intervenção social, trabalhou muito com pessoas mais velhas. Reli um ensaio da Simone de Beauvoir sobre a velhice em que ela diz o seguinte: “A razão pela qual eu escrevi este livro é para quebrar a conspiração do silêncio”. Isto foi em 1970, mas eu penso que hoje, em 2023, continua atual. 

É verdade que sim, eu tenho trabalhado muito, em muitas perspectivas diferentes, a área do envelhecimento, diria que trabalhei todos os espectros das respostas sociais desde que se nasce até que se morre, nos meus quase quarenta anos de trabalho e sessenta de vida. E a sensação que tenho é a de que, muitas vezes, nos preocupamos com aquilo que não é o essencial no envelhecimento. A questão da saúde é algo em que não podemos senão esperar que os investigadores e os médicos encontrem novos caminhos - temos que buscar o conforto, o bem-estar das pessoas, isso podemos fazer - mas não é uma área em que possamos rebelar-nos contra a ausência de soluções. 

Já o isolamento e a solidão, que são duas coisas completamente diferentes, são fontes de morte e de ausência de saúde. Nós hoje podemos morrer de solidão por razões sociais, ou por razões interiores. 

Lembro-me de um mês de dezembro, de um ano que já não sei precisar, em que descobrimos três casos de pessoas que morreram sozinhas em casa. E estas situações eram brutais, duas irmãs que moravam juntas, uma acamada e outra ainda bem de saúde, mas com um problema cardíaco, foram encontradas mais de 30 dias depois de terem falecido. Isso levou-nos a fazer um levantamento de pessoas isoladas na cidade de Lisboa, no qual foram aplicados mais de 25.000 questionários, que deu depois origem a um programa específico junto da população. Percebemos que  havia 500 pessoas severamente doentes, que ninguém acompanhava, e das quais ninguém sabia. E quando nós olhamos para isto, pensamos de que forma estamos a cuidar, afinal, na área do envelhecimento. 

Nessa altura, ficou muito claro para mim que tínhamos de ter um sistema de alarme, tínhamos que chamar a atenção das pessoas, do mundo em geral para esta necessidade. Por exemplo, se  eu tenho uma loja, e determinada pessoa idosa, em determinada semana não vem à loja, eu tenho que saber o suficiente sobre aquela pessoa, com quem converso todas as semanas, para poder dar, a alguém, um alarme qualquer. E, realmente, as questões da solidão e do envelhecimento convocam muito mais do que as respostas padronizadas que nós criamos.

 

 

 

Li um artigo que saiu recentemente no Público, com dados da Pordata, que referia que 24% da população em Portugal tem mais de 65 anos. O que me impressionou foi que, sendo a esperança média de vida das mulheres, atualmente, de 87 anos e a dos homens de 83, depois dos 65 anos, o número de anos com qualidade de vida é muito diminuto, nas mulheres é de sete anos e nos homens de oito. 

Há aqui várias questões sobre o envelhecimento: a questão fisiológica do corpo que envelhece, a questão psicológica, e também a questão cultural e social, de como é que as pessoas mais velhas são vistas pelos outros.  

O cruzamento dos dados de saúde com esses dados são brutais. Eu não gosto de números nem taxas porque, de facto, na área da pobreza e da intervenção social, não condizem com a realidade do território. 

Não?

Não, de todo, de todo!

O que é que isso quer dizer? Gostava de perceber.

Por exemplo, nós temos uma taxa de pobreza que, desde que começámos a medir, varia entre 16 e 22% e a mudança entre 16 e 22% não representa nada, representa variação da forma de ler os números, e estratégias sociopolíticas do momento. Na verdade, sem a leitura dos territórios, das pessoas, nós não conseguimos ver a variação. Estamos agora a tentar testar alguns indicadores que têm mais a ver com a vivência na proximidade, para ver se conseguimos encontrar um número que diga mesmo se nós estamos a ficar melhor ou pior. 

Se pensarmos, a maior parte dos idosos tem habitação, tem uma casa. Mas de que serve ter uma casa, se a casa não se adequa às suas necessidades? Podem viver numa casa grande e ter de dar muitos passos para chegar a uma torneira com água quente, podem ter problemas de mobilidade e não terem apoio para aprender a usar um suporte, seja ele qual for, podem estar dependentes de uma cadeira de rodas e não terem quem lha empurre, enfim, não conseguirem mobilizar-se numa casa normal… Por isso, a maior parte dos idosos tem uma casa, mas…

Qual é a qualidade de vida que têm nessa casa. 

Se não tivessem casa, alguém estaria preocupado em encontrar-lhes uma solução social. Como têm casa, o que acontecerá eventualmente será um apoio domiciliário que, na grande maioria, funciona cinco dias por semana e não funciona à noite, o que significa que uma pessoa acamada pode estar sem apoio desde as seis da tarde até às nove da manhã do dia seguinte. Por isso é que eu sou muito zangada com os números e com as taxas, em todas as fases da vida e em relação a todos os problemas sociais.  

A idade em diferentes pessoas tem significados muito diferentes, há pessoas com oitenta anos que estão bem, conduzem, têm uma vida social, e outras que estão completamente dependentes; há uma inevitabilidade nos problemas de saúde que pode conduzir à perda de qualidade de vida. Na minha área, trabalha-se muito a importância de se manter ativo, a ligação à comunidade, a ligação social, a capacidade de manter  projetos…

Manter é a palavra chave, porque o problema também tem a ver com a perspetiva de vida, de como é que se viveram todos os anos até se chegar a essa idade. Se uma pessoa, uma mulher, cuidou da família o tempo todo, e se sempre construiu toda a sua vida à volta de um núcleo, quando fica com o ninho vazio não sabe o que há-de fazer. Se uma pessoa sempre fez vida social, tinha grupos de amigos, ia ao cinema, aí é completamente diferente, porque é só continuar aquilo que já era prática. O espaço da prevenção tem que ser cultivado muito antes.

 

Diz-se que a morte está menos presente na sociedade, que as pessoas têm menos contacto, menos espaço para os rituais que havia antigamente. Apesar de a maioria das pessoas ter consciência que um dia há-de morrer, a ideia de ser velho é qualquer coisa que a maioria nega, no entanto, há obviamente um envelhecimento do corpo, que é visível e inegável. Até que ponto irá esta negação da velhice?

Há uma negação da idade ainda, isso está cada vez menos presente na vida, ao contrário da questão da morte. Acho que há mais consciência da morte e também há mais consciência da necessidade de agir para se poder ter espaço para decidir como é que se vive a saúde, como é que se vive a doença. Não havia esse espaço, ninguém se atrevia a falar sobre isso. E hoje, há muita preocupação em fazer-se uma coisa que eu acho muito interessante, que é falar sobre a morte e usar a consciência da morte como veículo de promoção da saúde. 

Em todas as idades, o viver bem com a idade, e o viver bem com o menos tempo que temos, melhora muito a saúde. Mas é verdade que o desalento na idade, quando não cultivamos uma vida diferente, muda o nosso sentimento em relação à doença e à morte. Há verdadeiros milagres quando as pessoas são o primeiro dos seus remédios numa situação de saúde, ou a primeira das suas alegrias numa situação de isolamento.

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A forma de lidar emocionalmente com a realidade, quer seja a doença, quer sejam os acasos da vida, influencia obviamente. Há pessoas de idade, que estiveram até dado momento muito bem e de repente, após viverem uma situação de um impacto emocional muito grande, perdem o marido ou a mulher, parecem envelhecer repentinamente; também as quedas são, às vezes, o início de uma degradação relevante na perda da qualidade de vida.   

As famílias também são importantes. Falaram-me recentemente de um caso que me impressionou muito, de um casal em que um dos filhos era tão cuidador que se substituiu aos pais, e aqueles pais, que antes da pandemia eram completamente autónomos e ajudavam a cuidar dos netos, de repente, não estão sequer a conseguir cuidar de si. 

Frequentemente os filhos, a partir do momento em que sentem os pais mais frágeis, porque a idade traz uma certa fragilidade, acham que sabem melhor do que os próprios pais o que é bom para eles, interferindo na sua vida de uma forma que os limita.

A primeira área em que eu trabalhei na área do envelhecimento foi a capacitação dos idosos para expressarem o seu poder. Foi quando surgiu a palavra empowerment, nos anos 90. A Ford estava a fazer uma investigação muito interessante com os testes aos carros, usavam um equipamento que simulava dificuldades de mobilidade. Nessa altura, houve muita discussão sobre isso, e as pessoas que estavam a trabalhar na área do envelhecimento juntaram-se. Eu comecei a trabalhar nas associações de idosos - não para idosos, de idosos - na consciencialização de que não era a juventude que comprava as coisas, quem tinha o dinheiro eram as pessoas mais velhas que, portanto, não deviam estar dependentes dos mais jovens. Isto porque os idosos desse tempo, diferentes dos de agora, assumiam bem essa situação de serem cuidados, em vez de cuidar. 

Foi quando eu senti que estava a começar este movimento de os filhos acharem que passavam a ser pais dos pais, e a prática não é boa em situação nenhuma, nem na situação dos direitos legais que as pessoas têm, nem na sua autodeterminação, porque as pessoas têm direito a decidir a sua vida até ao último suspiro - a menos que não estejam na sua plena capacidade e não tenham dito nada a propósito disso.

O confinamento foi uma época difícil para todos, mas as pessoas de mais idade ficaram mais expostas, sentem que perderam anos de vida e desabituaram-se de fazer certas coisas.

Também houve ganhos, as senhoras do Lar aprenderam todas a lidar com as tecnologias (risos), todas as que tinham telemóvel, e os filhos começaram a receber chamadas.

Para além dos acasos da vida, o que acha que é preciso para envelhecer bem? 

A primeira coisa que é preciso para envelhecer bem é viver bem, eu acho que a maioria dos condimentos para um mau envelhecimento estão na nossa vida, já estavam lá, não eram importantes na altura, mas quando são exacerbados por uma situação qualquer, acontecem; se eu nunca criei um grupo de amigos, não o vou ter quando envelhecer, ou o contrário, pode não ser importante para mim a amizade, mas ter um tipo de atividade… 

A minha mãe determinou que, quando morresse, não queria velório, queria ir direto para o cemitério e ser cremada. Devo dizer que para mim foi uma lição de vida… Aprendi com ela que as pessoas podem morrer quando quiserem. Eu estava com o meu irmão no hospital, nos últimos dias de vida dela, e falávamos muito os dois sobre como poderíamos nos organizar para a acompanhar naquele momento. Estávamos nisto, e a minha mãe deixou de respirar.  A minha mãe era dona de uma vontade férrea, devo dizer, e que detestava que as outras pessoas perdessem tempo com ela. 

Sim, mas a forma de lidar com a morte varia muito de pessoa para pessoa. 

O meu pai nunca falou da morte, morreu muito cedo, tinha muito tempo de vida planeada enquanto reformado. Tinha sido militar, mas era doente, diabético, cegou, foi biamputado… teve uma vida muito difícil, e deixou de falar. Ninguém fazia a mínima ideia do que queria. Mas, mais uma vez, tem a ver com a forma como nós vivemos. 

 

 

E com a capacidade que temos de ressignificar a nossa vida, nos últimos anos, e a capacidade de manter projetos, sem sabermos se os vamos realizar ou não. Efetivamente, há pessoas que têm um final de vida difícil, o seu pai teve uma falta de qualidade de vida enorme. 

Tenho a certeza de que foram tempos difíceis para o meu pai, a única coisa que ele conseguia fazer era segurar-nos a mão, comunicava assim e eu nunca percebi o que sentia. Mas isso não podemos controlar, talvez a única coisa que possamos controlar, ou fazer, seja termos a humildade de dizermos o que queremos, fazendo, por exemplo, o testamento vital, porque em qualquer idade da vida podemos deixar de ter vida. São coisas que podem mudar o nosso tempo final.

Podem torná-lo um tempo mais digno. 

E mais saudável para quem está connosco, quem cuida de nós tem pudor em tomar decisões que não foram faladas. 

 

Há pessoas que dizem que querem viver, independentemente da forma como vão viver, e são muito claras nisso, há outras pessoas que não. 

Para mim, será uma vida com significado se eu me for embora com projetos para terminar.  No dia em que deixar de ter projetos, o fim da minha vida começou aí. Apesar disso, o meu pai, que tinha projetos, não pôde viver; a minha mãe nunca teve projetos, mas a vida dela não mudou com a idade. 

Cada pessoa é um caso, há pessoas a quem as diretrizes globais, os grandes números, não correspondem. 

Na estratégia de combate à pobreza, ou na promoção do envelhecimento ativo e saudável, deve-se analisar a situação, e quando se analisa a situação não nos devemos basear em generalidades ou em grandes grupos, deve haver leitura na proximidade, proximidades diferentes. Nós adoramos dizer que temos uma intervenção centrada na pessoa, mas não é centrada na pessoa, é centrada na leitura que nós fazemos do grupo. Por isso, eu penso que as estratégias nunca vão ser “chapéu” de toda a gente, há que tentar ouvir os que normalmente não são ouvidos, os que passam pela experiência, seja qual for a estratégia que se vai construir, e na aplicação da estratégia tem que se ser flexível. 

Lembro-me por exemplo dos idosos de Trás-os-Montes que, com pensões miseráveis ao nível dos 200€, conseguiam mandar dinheiro para os filhos emigrados, quando 200€ não dava para ninguém sobreviver em Lisboa. Nós podemos tratar isto da mesma maneira? O problema não está nos grandes números, não se pode é ficar por aí.   

  

Tem razão, precisamos ter grandes números e estratégias globais, mas depois temos de ter em conta a realidade de cada pessoa, e a necessidade  de acompanhamento. 

O acompanhamento é diferente. Por exemplo, a Cáritas de Trás-os-Montes tem um projeto de apoio domiciliário nas aldeias e teve que montar uma estratégia de apoio domiciliário que não é igual à descrita na tipicidade das respostas sociais. Tem que haver discriminação positiva nestas respostas, porque estas respostas chegam a pessoas a quem mais ninguém chega; não há centro de saúde, não há farmácia, não há nada. Há umas carrinhas da Cáritas que circulam por todas as aldeias, e o recrutamento de pessoal é feito o mais perto possível, especialmente para que haja uns olhares ali muito perto, nem que seja para um SOS. 

Não costumam articular essas situações com outras instituições locais, a junta de freguesia, ou a GNR?

Sim, há aqui um princípio, mas que tem a ver com a Cáritas e não com a rede social nacional. A Cáritas, em princípio, só vai onde não houver outros promotores de resposta, porque a função da Cáritas não é gerir respostas sociais, nunca foi. Por isso, se alguém me perguntar o que é que a Cáritas faz, eu não sei dizer, com verdade, tenho que arranjar uma forma global de dizer e depois essa também não é a melhor leitura. Por exemplo, a Cáritas de Santarém trabalha com as Cáritas paroquiais, não tem serviços diretos. Tem uma técnica que apoia os voluntários, e todos os apoios que nós damos às Cáritas Diocesanas, estas articulam com as Cáritas paroquiais. 

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Portanto este trabalho na Cáritas é muito diferente do trabalho que fez noutras instituições como a Santa Casa da Misericórdia, o programa Mitra, etc. 

As Cáritas são todas autónomas, dependentes do Bispo da Diocese, assim como a Cáritas Internacionalis também é autónoma, e a Europeia também. Mas também há uma Cáritas Diocesana, com gestão autónoma, e eu só sou um chapéu de chuva virado ao contrário, onde caem todas as necessidades que há na rede, e às quais respondo da melhor maneira possível. 

A Cáritas Diocesana de Coimbra é a maior promotora de resposta social em Coimbra. Como  é a cidade dos estudantes, nunca se prepararam respostas sociais para outros. Então quando o Estado começou a organizar a resposta social, não tinha em Coimbra outros a quem desafiar para fazer protocolos de cooperação. A Cáritas Diocesana de Coimbra tem mil funcionários e tem respostas sociais nas terras mais ermas da Diocese mas, se me perguntar, é a menos Cáritas de todas, porque o trabalho Cáritas de olhar a proximidade, de olhar os problemas, etc, as pessoas não têm tempo para o fazer, porque são promotoras de resposta social.  

O território tem que ser lido e tem que funcionar de maneira diferente, por isso as estratégias são importantes para nos indicarem o caminho para onde queremos ir, queremos que toda a gente tenha isto, que se garanta aquilo, etc, mas fazer um lar em cada aldeia, como se fez em determinada altura, teve consequências, como por exemplo, a valência do Centro de Dia estar a entrar em desuso.

Pois está, mas porquê?

Porque as pessoas aprenderam com a pandemia que têm outras formas de organizar a sua vida, em vez de irem para o Centro de Dia, todos os dias, fazer atividades.

De que é que um Lar precisa para funcionar bem?

Ter apenas pessoas cuja resposta é a institucionalização em Lar, e para a maior parte das pessoas não é. Nós devíamos estar a trabalhar para respostas daqui a trinta anos. O que é que a Alexandra vai querer daqui a trinta anos?

Eu gostava muito de ficar em minha casa, de ter uma resposta em casa.   

Claro! Eu imagino que o prédio onde vive podia decidir criar um andar de serviços com um gestor de casos no local, que servia a todos: alguém caiu, precisa de um enfermeiro, de um fisioterapeuta. Cada um contratava os serviços de que precisava e as pessoas ficavam em sua casa. Até podiam ter um sistema de vigilância mais intrusivo, que alguém controlava. 

É um conceito interessante.

Eu quis fazer isso no IASPA, o Instituto de Ação Social das Forças Armadas, mas não foi possível por várias razões. As Forças Armadas têm muitos edifícios de militares e têm muitos problemas de pessoas com necessidades de apoio, e quando eu estava no Lar sonhava que podíamos fazer o teste desta ideia num edifício do IASPA que tivesse muitos idosos. Penso que  é provavelmente uma solução interessante, é uma coisa que eu ainda gostava de fazer. 

A Rita refere que só deviam estar nos lares as pessoas que não têm alternativa, mas também é muito duro para os familiares, filhos ou não, terem de assumir a responsabilidade por pessoas com menos capacidade.

 

Depende do que é a alternativa, tem que ser estudada no global, com a vontade da pessoa e com a leitura das condições que as pessoas têm. Por isso digo que não é para agora, é uma coisa a fazer, para que daqui a 20 anos nós possamos ter acesso a isso. 

Eu recebi no Lar das Antigas Alunas do Instituto de Odivelas, que dirigi durante o tempo da pandemia e onde tive toda a gente doente, uma senhora vinda do hospital. Chegou só, sem nada e estava acamada, nessa altura. Tinha uma pensão mínima, 300€ ou assim, que estava a ir para uma conta dela; fizemos processo de maior acompanhado, tudo, e durante o tempo que lá esteve não se conseguiu levantar o dinheiro da senhora. De repente o banco avisou o Lar, já eu lá não estava, que tinha ido um sobrinho levantar o dinheiro. Portanto, esta sociedade não é protetora. Como é que dão o dinheiro a um sobrinho, sem autorização da senhora, quando sabiam que estava acamada num lar? Este sobrinho desinteressou-se, mas há muitos filhos a fazer coisas destas.  

 

As pessoas de idade, em termos de direitos legais e jurídicos são tratadas da mesma forma, mas depois há particularidades que não são avaliadas, num momento da vida dessa senhora ela abriu a conta com o sobrinho, e colocou-se numa situação de suscetibilidade muito grande. 

Neste momento, uma das coisas que é sempre dita na Formação de maior acompanhado é que ninguém deve abrir uma conta com ninguém, nunca. Nós não sabemos o que é o futuro. No outro dia, um dos casos práticos na Formação foi o de uns pais que abriram uma conta com o filho, o filho morreu e a nora levantou o dinheiro, porque metade do que estava na conta era do filho.

O que é ser maior acompanhado?  

É uma maneira de garantir aos idosos os seus direitos, assistência, acompanhamento, apoio, todas essas componentes, e dizer como é que se tem acesso a isso. Antes havia a interdição e inabilitação, já não existe essa figura, agora existe a figura do maior acompanhado, que dá mais liberdade, em princípio, para a própria pessoa decidir da sua vida. 

E eu diria que todas as pessoas que trabalham com o envelhecimento têm de conhecer esta legislação porque andamos a aconselhar muito mal as pessoas. Quando uma pessoa vai para um Lar não pode ser recebida se disser “eu não quero cá ficar”. Se não tiver um processo de maior acompanhado, não pode ficar. Qualquer pessoa, amiga dessa pessoa que está lá contrariada, pode interpor uma ação em tribunal contra quem a obrigar a ficar e contra o Lar que a recebeu. Os contratos de receção das pessoas estão assinados por familiares, mas não podem estar, só se houver um processo de acompanhamento.

Uma pessoa que tenha um AVC, que fique incapacitada, ou que não possa levar uma vida autónoma, muitas vezes transita de um hospital para um lar diretamente, não devia então ser recebida num lar? 

Se as coisas fossem feitas como deve ser, nessa altura teria sido interposto um processo, e teria sido dada a possibilidade de uma tutela temporária a uma pessoa. Os hospitais e a Segurança Social mandam as pessoas para os lares como se tivessem direito, nós temos que aceitar porque temos um protocolo que assim o diz, mas quem tem que garantir a legalidade do processo é a Segurança Social. 

Achei interessante a questão da conta bancária que referiu, nunca tinha pensado na importância de desaconselhar as contas conjuntas, pode haver más intenções, mas há também a vontade de ajudar, de facilitar e de provir necessidades. 

Em situações em que a pessoa tenha confiança pode sempre autorizar a pessoa em conta, mas essa situação é revogável, na conta conjunta não, quando se abre uma conta conjunta, para haver alteração tem que haver assinatura de ambas as partes. Conta conjunta não, autorização em conta sim, é o que temos obrigação de dizer aos nossos filhos. As circunstâncias da vida, às vezes, ultrapassam-nos completamente, como na situação do caso prático que referi há pouco, acerca da nora. 

E por isso é muito importante que se faça muita pedagogia do envelhecimento em tudo, desde o ponto de vista legal até ao cuidado. Desde o cuidar da nossa vontade. Nós não podemos acusar ninguém de não ter cumprido a nossa vontade se não a partilhamos.

Se não nos pronunciamos sobre ela.

Essa não é a nossa cultura, ainda, mas cabe-nos a nós, nesta geração, fazer isto para que os mais novos não repitam modelos que são errados. 

Estamos a chegar ao fim, há alguma coisa que a Rita gostasse de acrescentar? 

Acho que não, nós conversámos muito “ao sabor da pena”. Estas questões do envelhecimento são questões que assumem complexidades cada vez maiores e, se nós não salvaguardarmos as necessidades mais básicas, dificilmente conseguiremos garantir um espaço de dignidade às pessoas que vão envelhecendo. Mas o que seremos quando envelhecermos tem realmente muito a ver com cada um de nós; as senhoras que iam ao cabeleireiro todas as semanas, irão todas as semanas até morrerem, vão para o Lar e querem ir ao cabeleireiro (risos). Acho que esses vícios têm que se criar durante a vida, vícios de conforto, de partilhar aquilo que nos dá alegria, para que depois, mesmo quando a memória se vai, isso ainda seja significante na nossa vida.       

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