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Jurista

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Paula Guimarães

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Quais são as definições de Cuidador Informal e de Maior Acompanhado?

Curiosamente, foram dois conceitos que apareceram em Portugal há relativamente pouco tempo, um em 2018, o do Regime do Maior Acompanhado, e outro em 2019, o do Estatuto do Cuidador Informal. E, tanto num caso como noutro, o pressuposto não tem que ver com a idade, tem que ver com a vulnerabilidade.

O Regime do Maior Acompanhado é sobre a perda ou redução da capacidade cognitiva e, portanto, aplica-se a todas as pessoas, independentemente da idade, que tenham problemas de perda de capacidade cognitiva, de saúde mental ou de comportamento aditivo, como os toxicodependentes ou os jogadores. E abrange também pessoas com deficiência intelectual, portanto, antes de estas pessoas atingirem os dezoito anos, porque o poder paternal extingue-se automaticamente com a maioridade, deve dar-se início ao processo. E por fim, há as pessoas com demência e, aí sim, há uma determinada percentagem de pessoas com demência que tem idade mais avançada.

O Estatuto do Cuidador Informal também não está relacionado automaticamente com a idade. Porquê? Porque as pessoas cuidadas também têm muitas idades, podem ser crianças, adolescentes, adultos e também pessoas mais velhas, que é a designação que agora a Organização Mundial da Saúde [OMS] pede para adoptarmos, e essas pessoas mais velhas também são uma percentagem mais significativa de pessoas cuidadas. O que costumo dizer, cada vez mais, é que o tema não é a idade, não é o envelhecimento, mas sim as perdas que acontecem em todas as nossas idades, como a pobreza, o isolamento, a dependência ou a perda de capacidade cognitiva. Isso é que nos vulnerabiliza.

De acordo com um relatório da OMS, somos um dos países com esperança média de vida mais elevada na Europa, mas também aquele em que as pessoas, por sua vez, têm menos anos com qualidade de vida.

E somos o quarto país mais envelhecido do mundo, o que é uma loucura. E não estamos preparados para enfrentar essa dimensão. O que tem surgido agora, e que me preocupa um pouco, é esta ideia de que a preparação de uma sociedade envelhecida se faz com a protecção das pessoas idosas, mais este discurso de que as pessoas idosas são prejudicadas ou são discriminadas em razão da idade. Eu não acho isso, acho que as pessoas são discriminadas em razão da pobreza, do isolamento, da dependência, não necessariamente em razão da idade.

Mas pensa que não há discriminação pela idade?

Não, em razão da idade, penso que não. Em Portugal, o que acontece, muitas vezes, é a dificuldade no acesso à saúde por razões económicas, de isolamento, de distanciamento face aos cuidados de saúde.

Nós até somos excessivamente proteccionistas relativamente aos mais velhos. E temos uma sociedade em que a família assume a tomada de decisões relativamente às pessoas mais velhas com o sentido da protecção, e isso pode ser, de facto, uma discriminação em razão da idade. Mas tem muito que ver com a cultura, com o património, nós temos um Direito que protege muito o património familiar e que não dá espaço à autonomia das pessoas. Começamos a tomar decisões relativamente ao património dos nossos pais muito cedo, porque achamos que é nosso ou vai ser nosso.

E não é.

 

Uma das grandes coisas que prejudica as pessoas mais velhas em Portugal é o nosso direito sucessório, que já devia ter sido mudado. Com o direito sucessório que temos, muitas pessoas idosas não tomam decisões para a sua própria felicidade, porque estão a proteger o património para deixar aos filhos. E tomam-se decisões erradas, como pôr os pais em lares mais baratos para não prejudicar a herança.

Penso, sinceramente, que devíamos mudar o foco, devíamos falar menos em idade e mais em vulnerabilidade. Muitas das incursões que temos neste momento, como a criação do Estatuto do Idoso, os Conselhos de Idosos, a linha do Provedor de Justiça para o Idoso, tudo isto, são medidas idadistas, que fazem com que as pessoas sejam metidas num bolo, pessoas desde os 65 aos 110, que não têm nada em comum. E eu costumo dizer que nas idades avançadas somos ainda mais diferentes uns dos outros.

E há diferentes formas de ter 80, 90 ou 65 anos.

 

Sim, claro. Nós temos uma política completamente idadista e estereotipada. A partir dos 65 anos temos determinadas respostas, mas depois não temos respostas para adultos com perda de capacidade cognitiva, por exemplo. A nova lei da saúde mental mandou toda a gente para a comunidade e muitas pessoas estão a ser colocadas em estruturas de deficiência ou de idosos, porque não há respostas adequadas para essas pessoas.

Percebo que a maioria dos filhos têm dificuldade em lidar com o envelhecimento dos pais. Alguns recusam-se a ver as limitações que os pais começam a evidenciar, outros começam a querer decidir por eles.

 

E, a juntar a isso, temos uma enorme dificuldade em perspectivar o nosso próprio envelhecimento, custa-nos muito. E penso que esse devia ser o trabalho principal, devíamos consciencializar-nos de que, enfim, se tudo correr bem, vamos viver mais tempo do que os nossos antepassados. E devíamos preparar e rever uma educação para a longevidade, que não existe. Não estamos preparados para enfrentar o nosso envelhecimento e devemos ter a nossa própria percepção de como é envelhecer, do que queremos para a nossa idade avançada e preparar a nossa vida nesse sentido. Não temos a desculpa que os velhos de hoje tiveram, porque não sabiam que iam viver tanto tempo, não temos desculpa nenhuma para não preparar a velhice. E temos de a preparar pelo menos em quatro áreas.

A primeira área é o Regime do Maior Acompanhado, ou seja, nós tomarmos decisões sobre quem queremos que nos represente se perdermos a capacidade cognitiva. Devemos fazer isso a partir dos dezoito anos, porque podemos ter um acidente de viação, entrar em estado de coma, portanto, não tem nada que ver com a idade, mais uma vez; eu posso perder a capacidade cognitiva hoje. A segunda, é fazermos o testamento vital, tomar decisões antecipadas em matéria de saúde; também não o fazemos. A terceira, é prepararmos a nossa casa para a dependência, ou seja, termos uma casa sem barreiras arquitectónicas, que possa ser uma casa para toda a vida, se assim o entendermos. E a quarta, é semear relações pessoais. E estas quatro dimensões têm de ser tratadas cedo.

Gostava que a Paula explorasse um pouco mais o que referiu como educação para a longevidade.

Começa por ser um auto-conhecimento, não é? Eu sempre tive muita curiosidade pela idade avançada porque sempre vivi com pessoas mais velhas do que eu, tive a sorte de ter avós longevos e assisti a muitas maneiras diferentes de viver a idade avançada, com angústia, amargura, revolta, aceitação total, felicidade absoluta. E sempre pensei que tinha de preparar a minha, aceitar-me com as minhas perdas e com os meus ganhos, aceitar que vou ficar diferente fisicamente, que há coisas que vou deixar de fazer, mas que há coisas que vou ganhar. Eu não trocava os meus 59 anos de hoje pelos meus 25, gosto muito mais da minha vida hoje do que nessa altura, mas tenho a consciência de que fui fazendo esta análise racional ao longo da minha vida.

Depois, é termos a noção das prioridades, fazermos a análise do que é prioritário para o nosso bem-estar. Do que gostamos? De uma vida profissional cheia? Queremos ter uma vida relacional gratificante? Queremos o equilíbrio entre as duas coisas? E tentar caminhar e criar as condições para que aquilo que nos preenche mais e nos torna mais felizes venha ao de cima.

E é muito importante termos a noção de que todos seremos cuidadores e todos seremos pessoas cuidadas em determinada fase da nossa vida. Portanto, não é um assunto dos outros, é um assunto que nos diz respeito.

Estava a pensar que isso depende das famílias, não é assim em todas.

 

Nós podemos não ser cuidadores dos nossos familiares e não ser cuidados pelos nossos familiares, até podemos ser só cuidados por profissionais. O que é importante é a ideia de que estamos numa cadeia de interdependência, em que umas vezes iremos prestar cuidados, e outras vezes serão outros a prestar-nos a nós.

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Existe a ideia de que devem ser os familiares a cuidar dos seus, mas há situações nas quais eu entendo que o cuidar não faça sentido.

Acredito até que não deve ser uma obrigação. Uma das coisas que defendo é a alteração da obrigação de alimentos, tal como está no Código Civil. Ou seja, neste momento, os filhos e os pais têm o dever de auxílio e de assistência. Eu discordo disso, acho que deve haver uma dimensão de afecto que tem de ser o alicerce da prestação de cuidados. Se não há afecto na prestação de cuidados, pode até ser mau trato, muitas vezes a relação emocional fica estragada com a dimensão da prestação de cuidados. E concordo com a recente alteração ao Estatuto do Cuidador Informal que permite que possam ser cuidadores não familiares.

Quando dou formação, nomeadamente em serviço de apoio domiciliário, digo sempre que deve haver uma conversa com a pessoa cuidada para se saber se ela quer ser cuidada ou não pelos seus familiares, ela é que deve, em primeiro lugar, tomar essa decisão. Por outro lado, tem de haver aqui uma supervisão e uma mediação familiar para a prestação de cuidados. Por exemplo, não é adequado que um filho dê banho à mãe, isso pode ferir de morte a própria relação, a auto-estima da pessoa cuidada.

Eu lembro-me, por exemplo, que uma das minhas avós queria que fosse apenas a minha mãe a prestar cuidados, e a minha outra avó não queria que fosse nenhum familiar a prestar cuidados. As pessoas são diferentes umas das outras. A primeira coisa a valorizar é a vontade da pessoa cuidada, quando ela está em condições de a prestar ou comunicar. E depois, trabalhar todas essas dimensões, tendo sempre em conta o superior interesse da pessoa cuidada. 

Desconhecia a obrigatoriedade legal, sabia apenas que há uma pressão social que torna quase obrigatório o cuidado por familiares e de parecer mal que assim não seja. 

 

O art.º 2003 do Código Civil, sobre a obrigação de alimentos, obriga a que o familiar pague os cuidados, ou seja, garanta que há a prestação de cuidados. Não obriga a que seja o próprio a prestar os cuidados. É uma obrigação pecuniária, uma obrigação de assegurar que se faça, é um bocadinho diferente.

Mas as famílias estão em mudança e, portanto, mesmo que não se altere a lei, a própria circunstância da vida fará com que haja cada vez menos possibilidade de serem os familiares a prestar cuidados. E vamos ter de avançar para uma dupla linha, para o reforço dos cuidados profissionais e para a emergência de uma nova realidade que é a da sociedade compassiva, com uma lógica de rede, de trabalho colectivo, de vizinhança até, e que não passa necessariamente por laços de parentesco ou de afinidade, passa sobretudo por laços de solidariedade, de base social, de natureza espontânea.

E tudo isso tem de ser trabalhado, porque senão vamos ser muito mais idosos do que jovens e não vamos ter condições.

 

A Rita Valadas referiu a ideia de um prédio preparado para as pessoas mais velhas, em que houvesse, além da entreajuda entre vizinhos, serviços de apoio. Não estou a falar das residências.

 

Há pessoas que se identificam com a visão residencial e fazem essa opção, apesar de não serem muitas, e há pessoas interessadas no conceito mais recente de cohousing, uma espécie de cooperativa. Tem de haver um portefólio de respostas. Pessoalmente, penso que esse edifício é a resposta mais adequada. Em vez de estarmos a criar respostas de residenciais ou de habitação colectiva, é possível apetrechar os prédios com esse suporte logístico, que acompanha a pessoa ao longo da vida. Se há bebés pequeninos, há babysitting, mas se há pessoas mais velhas, há elder sitting, há alguém que apoia essas pessoas sem serem retiradas do seu meio. Preparar o nosso envelhecimento também é isso, é perceber onde gostaríamos mais de estar e tentar encontrar as soluções, quando possível, para que isso aconteça.

Sim, mas as pessoas permanecerem em casa, envelhecerem na sua própria casa, é algumas vezes limitativo e traz menos qualidade de vida do que outras alternativas.

Sem dúvida, até porque mesmo o apoio domiciliário lucrativo, de 24 horas sobre 24, nem sempre assegura, por exemplo, as dimensões do lazer, da socialização ou do acesso à cultura. A pessoa está na sua casa, mas muito só.

Por exemplo, a minha tia foi um caso paradigmático. Viveu sozinha até aos 98 anos. E quando teve um problema de saúde em que precisou de ter uma pessoa com ela, fez a experiência durante três meses. Não gostou, e foi ela que escolheu o lar para onde foi. Fez esse processo, andámos a visitar vários, escolheu um e foi residir por sua vontade para o lar onde viveu até aos 105. Portanto, escolheu bem, foi um caso bem tratado. Esse é o caminho certo, é sermos nós a escolher. Nem toda a gente pode fazê-lo, nem toda a gente tem dinheiro para poder tomar essas decisões. Mas é muito importante que a pessoa se conheça o suficiente para preparar as decisões que vai tomar.

 

Muitas vezes, acontece exactamente o contrário, as pessoas não querem ir para um lar, mas acabam por ser lá colocadas por um familiar.

 

Sim, sim. Isso, infelizmente, ainda é regra. Por isso é que a última lei veio proibir a colocação em equipamento sem a vontade da pessoa, colocar uma pessoa num equipamento contra a sua vontade consubstancia um crime. E, neste momento, a lei proíbe a colocação em equipamento, a não ser que a pessoa possa consentir e seja a própria a assinar o contrato. Quando isso não acontece, porque a pessoa não sabe, então tem de se fazer o outro caminho do Regime do Maior Acompanhado. A tentativa do legislador foi dificultar as colocações compulsivas das pessoas nos equipamentos pelos familiares sem legitimidade para tomar essa decisão.

E temos as pessoas que, de facto, vão ao engano, pensam que vão recuperar de uma fractura do colo do fémur e já não saem mais de lá, e isto é crime. Outra coisa é a pessoa não querer ir para o lar porque preferia ficar em sua casa, mas, objectivamente, sabe que não tem condições para ficar em casa. Portanto, vai triste, vai contrariada, mas não vai enganada. São situações diferentes, não podemos misturar esses dois casos.

Mas continuamos ainda a encontrar situações de pessoas que vão completamente ao engano, a chamada colocação guilhotina. A pessoa é operada, é colocada num equipamento que não escolheu e já não volta a casa, nem sequer vai despedir-se da sua vida anterior. É uma dor. Temos também imensos animais domésticos abandonados porque as pessoas nem sequer podem tomar decisões sobre o destino do seu animal, não fazem o luto da sua casa, não vão escolher as coisas que levam para o equipamento. É uma barbaridade o que se está a fazer ainda neste momento.

 

É uma violência. Estava também a pensar que a maioria dos lares não permite visitas de animais.

 

Não há proibição por lei, a lei permite, nomeadamente a última portaria das ERPI, das estruturas residenciais para idosos, abre a porta para isso, saiu em Dezembro de 2023. Mas há uma proibição que tem que ver com a ASAE, ou seja, há equipamentos que não têm objectivamente condições para que as pessoas levem os seus animais domésticos. Encontramos muitos equipamentos, como no caso daquele onde a minha tia esteve, em que têm animais, cães ou gatos, mas que são da própria instituição e que interagem livremente com os residentes.

Neste momento, até nos estabelecimentos hospitalares isso é permitido, porque se considera e reconhece a intervenção terapêutica do animal.

 

Como a Paula estava a dizer, é importante despedirmo-nos da vida tal como ela foi até aquele momento e sermos capazes de perspectivar a vida que podemos vir a ter, fazer o luto de uma vida para podermos integrar-nos noutra.

 

Penso que isso tem que ver com quem gera as respostas e com a ausência de empatia que temos relativamente às etapas mais avançadas da vida. Não percebemos que isso não é um assunto dos outros, é um assunto nosso.

Faço muita formação a directores técnicos e o que eu costumo dizer é: «Se os senhores não querem ir viver para o sítio que estão a gerir, algo está mal. Este não é um assunto dos outros, é um assunto vosso, vão, inevitavelmente, viver num sítio parecido com aquele que estão a gerir. Gostavam de viver ali, naquelas circunstâncias? Se não, então têm de as mudar». Costumo dizer-lhes muitas vezes: «Imaginam o que deve ser a primeira noite de uma pessoa que viveu 60 anos na sua casa e é posta num lar, às vezes a partilhar quarto com uma pessoa que nunca viu? O que é que os senhores fazem para minorar o impacto de uma coisa dessas?».

Neste momento, grande número de instituições já têm protocolos de acolhimento onde essas questões são tratadas, mas há muitas que não têm um protocolo de admissão, acolhimento e integração.

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Não têm essa sensibilidade.

E depois, os próprios familiares. Nós, muitas vezes, estamos tão preocupados com a satisfação das necessidades básicas que esquecemos a necessidade de ser feliz, não é? Não me interessa nada ter um familiar que vive até aos 100 anos, se ele é profundamente infeliz.

A não ser que seja uma opção do próprio.

 

Claro, é óbvio. Mas tomarmos essas decisões na gestão de uma organização, ou enquanto familiares, só para dizermos: «Tenho o meu pai muito bem tratado, ele não faz nada do que quer, é profundamente infeliz, mas está muito bem tratado e está vivo», não é correcto. Há um direito que se sobrepõe a isso, que é o direito à felicidade individual e nós temos de o trabalhar. Damos mais espaço aos jovens, que ainda estão sob a nossa alçada, a correrem riscos do que às pessoas idosas.

 

Sinto que muitos filhos olham para os pais mais velhos como se estes, que sempre tomaram decisões e sempre foram autónomos, de repente, não fossem mais capazes, e impõem-lhes, ou querem impor, a sua própria visão como sendo a melhor.

 

Exactamente. E aí, sim, dou razão, às vezes há comportamentos discriminatórios, mas também há os mesmos comportamentos para com pessoas com problemas de saúde mental, com deficiência intelectual e até deficiência física.

Tive uma conversa muito interessante com pessoas com traumatismo crânio-encefálico, que são também potencialmente abrangidos pelo Regime do Maior Acompanhado quando a sua capacidade fica comprometida, mas em que, às vezes, fica só a parte da dependência física. Diziam-nos que muitos deles são tratados pelos pais - há uma grande taxa de divórcio nas pessoas com traumatismo crânio-encefálico -, regressam a casa dos pais e estes retomam o exercício do poder paternal, quando, na prática, estamos a falar de adultos, com uma vida para trás. Sentem que há um retrocesso na sua autodeterminação.

Mais uma vez, este sentido proteccionista que temos relativamente às pessoas que estão numa posição de fragilidade não tem só que ver com a idade, tem muito que ver com esta ideia de que temos de proteger as pessoas. As pessoas não precisam de protecção, precisam de empoderamento, é preciso ver aquilo que ainda conseguem fazer e decidir, e não o que deixaram de poder fazer. Mas isto é cultural.

Muitas vezes, pergunto às pessoas que trabalham na área do envelhecimento: «Já pensaram como vão querer envelhecer? Organizaram a vossa vida, tanto quanto é possível, anteciparam cenários?» E a maior parte das pessoas não pensa no assunto, pessoas que à partida deviam estar mais sensíveis do que as outras.

É difícil perspectivar isso internamente, do ponto de vista emocional, e as pessoas vão adiando, como se ainda tivessem muito tempo.

 

É capaz de ser isso, acredito que sim.

 

Às vezes, falta dinheiro, falta acesso a cuidados de saúde, há um grande isolamento social, mas também falta a perspectiva de como é que escolhemos envelhecer, dentro do que está nas nossas mãos decidir.

 

Sim, porque há imponderáveis, podemos dizer: «Quero ir viver com a minha família», e a família morre toda, ou: «Quero ir viver para um lar bom», mas não temos dinheiro… há muitas coisas que nos ultrapassam.

As pessoas não têm a noção de que num cenário de dez anos, um lar, por exemplo, com um quarto individual, que é o que todos gostariam provavelmente de ter, vai custar na ordem dos 3500 a 4000 euros por mês e as pessoas não estão a fazer poupanças, nem estão a preocupar-se. Muitas não têm margem de aforro, mas aquelas que têm não estão a planear.

Sim, e num país onde as reformas são maioritariamente baixas.

 

Claro. Há uma ausência total de perspectiva e de planeamento e temos obrigação, efectivamente, de acautelar, dentro daquilo que está nas nossas mãos, para nós, e para não sermos um peso para os nossos. Não envelhecemos todos da mesma maneira e há coisas que algumas pessoas valorizam mais do que outras, isso será sempre assim. Mas as pessoas que eu conheço que envelheceram melhor e que foram mais felizes nas idades avançadas, foram pessoas que trabalharam muito a sua auto-estima. Envelhecer não é fácil, não é bonito, mas também ganhamos outras coisas, experiência, descontracção, ganhamos a incontinência verbal, a capacidade de dizermos o que pensamos, ganhamos em liberdade. Tudo isso são ganhos.

As relações sociais são fundamentais para as pessoas terem um envelhecimento mais satisfatório.

 

Não há regras. Há pessoas que resolvem retirar-se definitivamente das relações e são felizes, estão bem com elas próprias.

 

Posso escolher estar mais isolado, o que é diferente de estar entristecido porque me sinto isolado. Às vezes, nas pessoas mais velhas, o que pesa muito é sentir que não têm confidentes, que deixaram de ter alguém da mesma idade.

 

Deixaram de ter pares.

 

As pessoas mais velhas, com 90 anos, às vezes 100 anos, dizem exactamente isso: «aquilo de que eu sinto mais falta é de alguém que conheceu o mundo como eu o conheci, que partilhou uma série de coisas comigo».

 

É verdade, isso. Mas a possibilidade de podermos fazer as escolhas que entendemos, em todas as fases da vida, desde que possamos tomar essa decisão, é fundamental.  E não vivemos numa sociedade em que isso seja permitido, apela-se imenso ao individualismo, à capacidade de escolha, mas depois, ao mesmo tempo, somos muito massificadores nas decisões e nas respostas que damos e pensamos que as pessoas mais velhas são todas iguais, gostam todas das mesmas coisas, têm todas os mesmos hábitos.

Isso é profundamente falso e algumas das medidas que estão a emergir são contraproducentes, esta questão do Estatuto do Idoso, dos Conselhos para os Idosos, tudo isto são respostas que homogeneízam, que massificam, enfim, tornam as pessoas todas iguais e isso é um erro enorme. Com uma agravante, é que estamos a entrar numa linha de populismo, que é, por exemplo, dar descontos às pessoas mais velhas só porque são mais velhas.

Isso também é discriminatório, em última análise.

Completamente, porque o que tem de acontecer é haver descontos ou benesses de acordo com a condição de recursos. E, curiosamente, passamos a ideia de que as pessoas idosas são pobres. De facto, quando olhamos para as estatísticas da pobreza, há mais pessoas mais velhas, por força das pensões sociais, com indicadores de pobreza. Contudo, também existem mulheres e crianças quase equiparadas em matéria de indicadores de pobreza, portanto, não é só a idade, mais uma vez, que intervém na pobreza. E curiosamente, os maiores aforros, as maiores poupanças são de pessoas mais velhas, não são de pessoas mais jovens. A ideia de que a idade traz sempre pobreza não é verdadeira.

Criámos uma série de preconceitos em relação a certas idades, a certas populações, e isso não corresponde à verdade, corresponderá em algumas situações, mas noutras não. Efectivamente, temos uma população de mais velhos com pensões sociais, o que tem que ver com a nossa história, quando não era obrigatório o desconto para a segurança social, isso teve um impacto nos rendimentos das pessoas de idade.

Mas há sempre excepções. Não é um tema fácil, penso que Portugal não está preparado para enfrentar o que aí vem, de todo, não é com planos nacionais de envelhecimento activo e saudável que mudamos isso. É, efectivamente, a meu ver, através de três dimensões. Uma, é a necessidade de valorização das pessoas que trabalham com as pessoas mais velhas em situação de dependência, a valorização das organizações e dos profissionais, que ganham mal e são cada vez menos. Ninguém quer trabalhar nesta área, temos imensas instituições que neste momento não têm recursos humanos para prestar cuidados. A segunda dimensão é trabalhar a questão da educação, da formação e da preparação do planeamento para a longevidade das pessoas que têm hoje mais de 40 anos, porque esses vão ser o grande desafio que vamos ter pela frente. E a terceira dimensão é vermos políticas conjugadas com as várias áreas de intervenção e que dêem espaço às pessoas para tomarem decisões sozinhas.

 

O que acontece a uma pessoa sem recursos que não tem capacidade de continuar a viver sozinha?

O que vou dizer é muito duro, mas do ponto de vista jurídico, se a pessoa estiver cognitivamente bem, tem o direito a continuar como está, mesmo sem recursos. Temos muitos casos de pessoas a quem se oferece recursos, apoio domiciliário, alojamento em equipamento, e a pessoa não quer e sabe que se não quiser, vai morrer. E tem direito a isso, o suicídio já não é um crime, deixou de ser penalizado, portanto é uma coisa muito dolorosa, mas a pessoa tem direito a morrer sozinha em sua casa. Isto é algo muito difícil de entender e para os familiares ainda é mais difícil aceitar uma coisa destas.

Neste momento, conseguimos dar resposta a quase todas as situações de urgência grave que sejam sinalizadas e que queiram ter resposta. Pode não ser de um dia para o outro, mas conseguimos encontrar solução em todas as situações que normalmente são sinalizadas como de urgência ou de abandono.

O problema é que, muitas vezes, são as próprias pessoas que não querem a solução que lhes é oferecida. Nomeadamente na situação da doença mental, se não for dado início ao processo do Maior Acompanhado, ninguém as pode obrigar a sair de casa, não pode haver nenhuma intervenção compulsiva. Estas são as situações mais complicadas, as mais difíceis de intervir, neste momento, em que as pessoas ainda não foram diagnosticadas, ainda não foi resolvido o problema da legitimidade para a intervenção, e estão numa situação de negação.

As outras situações, desde que sejam sinalizadas, se quiserem as respostas que existem, têm apoio.

Como pensa que deve ser uma residência?

Em primeiro lugar, precisa de ser gerida por uma equipa directiva com competência, com formação especializada na prestação de cuidados de longa duração. Temos muitos directores técnicos sem formação adequada nesta matéria, inclusive a própria lei não exige experiência anterior para se ser director técnico de uma instituição.

Segundo, precisávamos de ter uma profunda alteração do modelo de governo das instituições de solidariedade social, que são o principal promotor de respostas sociais. Neste momento, sou completamente contra o dirigismo voluntário das instituições, a partir de determinada dimensão deve ser profissional. Se não se puder dar esse passo, outra coisa obrigatória é que os dirigentes voluntários façam formação, porque não têm e não são obrigados a ter formação nenhuma.

Um terceiro aspecto é a valorização dos profissionais na dimensão operacional. Nós não temos profissionais adequados ou com formação adequada, recebem muito mal, não têm nenhuma perspectiva de desenvolvimento da carreira.

Faz ainda falta haver transparência na gestão das organizações e informação para a comunidade. E temos uma taxa maior de procura do que de resposta, o que significa que, havendo desequilíbrio na regra de mercado, não há competição e a qualidade baixa. E a Misericórdia, ou a fundação, ou o centro paroquial, sabem que não há outras alternativas, portanto, não se esforçam a fazer a avaliação de impacto ou a certificação da qualidade, porque não precisam.

Conheço muitas instituições que trabalham muitíssimo bem e que não têm qualquer vantagem do ponto de vista do financiamento público por trabalharem bem. Neste momento, temos uma política e um modelo de cooperação em que se paga à cabeça e tanto faz trabalharem bem como mal, porque o valor é o mesmo. Isto só apela à mediocridade, não puxa pela qualidade das respostas. É preciso mudar o modelo de governo, o modelo de cooperação e, acima de tudo, perceber que este é um grande desafio para o país, é talvez o segundo maior desafio que teremos no futuro, a longevidade, e não estamos preparados para isso. E tentar manter as pessoas em casa o máximo de tempo possível, se for essa a sua opção, naturalmente.

O que podem as pessoas fazer para envelhecerem com mais qualidade?

 

Podem trabalhar a sua auto-estima, trabalhar as relações com as pessoas que lhes são próximas e criar uma teia de solidariedade informal. Fazer boas escolhas financeiras, quem tiver essa possibilidade, e trabalhar para a protecção social complementar, porque a protecção social pública não vai ser suficiente, isso é evidente.

Eu acrescentaria um outro aspecto: gerir a saúde.

 

Sim, também, porque se uma pessoa tiver cuidado com a sua saúde, pode viver com mais qualidade, é uma dimensão fundamental.

 

Como se lida com uma degradação cognitiva ou uma incapacidade que não é reconhecida pela própria pessoa?

 

Lida-se dando início ao processo do Maior Acompanhado. A melhor maneira é obter um relatório clínico, o que não é fácil, porque as próprias pessoas às vezes recusam ir a um neurologista ou a um psiquiatra. E, se forem problemas de demência, convém que o relatório clínico seja de um neurologista, se forem problemas de saúde mental, convém que seja de um psiquiatra. Nessas fases ainda borderline, é fundamental que a pessoa obtenha o seu diagnóstico clínico e se dê início ao processo. O processo demora, se houver rendimentos ainda demora mais, portanto, deve-se antecipar o mais possível, para dar legitimidade às pessoas para começarem a tomar decisões.

O que nos diz a lei é que, tanto quanto possível, deve ser o próprio a dar início ao processo. Se a própria pessoa não quiser tomar essa decisão, qualquer familiar o pode fazer com o seu consentimento.

E como se dá início ao processo?

 

O processo do Regime do Maior Acompanhado é feito juntamente com esse relatório clínico, o formulário pode ser descarregado da internet. Também é possível consultar o guia prático do projecto Inclusivamente, feito pela Fundação Vasco Vieira de Almeida e pela Rede Europeia Anti-Pobreza. Os formulários entregam-se no Tribunal da Comarca, depois o Ministério Público dá seguimento.

Quando há património, ou quando há mais do que um filho, recomendo que seja um advogado a tratar do processo, porque é mais rápido e há outro acompanhamento. Se for uma situação pacífica em que há um filho único, ou uma família que não tem nenhum tipo de quezília, ou o património é reduzido e não há lutas relativamente ao mesmo, basta sinalizar a situação ao Ministério Público, mesmo que demore mais tempo, não é um problema.

A partir do momento em que damos início ao processo, a pessoa que normalmente toma decisões, ou que ajuda, assume a função de gestor de negócios, que é uma figura prevista na lei, e passa a poder tomar mais algumas decisões relacionadas com a vida quotidiana da pessoa. E depois, esse gestor de negócios é muitas vezes transformado no próprio acompanhante que vai ser nomeado no tribunal.

O que é perigoso é termos situações em que não se deu início a esse processo, porque há decisões em matéria de saúde, de património, do próprio projecto de vida, que não se podem tomar. Na esfera da saúde - talvez a mais relevante - se a pessoa não está em condições de tomar decisões, só o médico é que pode decidir. Portanto, se não houver acompanhante e se a pessoa não tiver tomado antes a decisão de nomear um procurador para cuidar dessas questões de saúde enquanto estava bem, quem toma todas as decisões é o médico. À partida, o médico rege-se pelo princípio da beneficência e actua no sentido de salvar a vida, mas pode não ser essa a vontade da pessoa.

A pessoa pode, por exemplo, não querer estar ligada a uma máquina, pode não querer ter alimentação por sonda. Se a pessoa que perde a capacidade cognitiva vai para um hospital, o acompanhante tem todo o direito de entrar com a pessoa, acompanhar todo o processo, porque só ele pode decidir se a pessoa faz uma radiografia, se faz análises, se faz uma intervenção cirúrgica, tudo isso tem de ser consentido.

Se a pessoa tem Alzheimer e não tem acompanhante, aplica-se a regra de que está na posse das suas faculdades e mantém os seus direitos pessoais, até que haja uma sentença em contrário.

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E é assim na prática ou o regime vigente tem outras nuances?

Neste momento, os profissionais de saúde, os hospitais e os equipamentos sociais que estão por dentro da lei cumprem isto rigorosamente, até porque se não cumprirem estão a cometer uma infracção grave. Um médico que faça uma intervenção de saúde sem o consentimento da pessoa ou com o consentimento de um filho, o que é ilegal se o filho não for procurador, comete um crime de uma intervenção de saúde arbitrária. Os profissionais que sabem disto são cada vez mais rigorosos. Com os profissionais que não sabem, que ainda são muitos, continuamos a ter situações em que os consentimentos são pedidos aos familiares. Estamos a falar de um diploma que entrou em vigor em 2019, depois surgiu o Covid. Penso que é um caminho irreversível, dentro de algum tempo não se conseguirá entrar num hospital sem se ter esse assunto resolvido.

Por exemplo, ainda acontece muito um médico partilhar com o filho o diagnóstico de saúde do pai, sem o prévio consentimento do pai. É algo gravíssimo e ainda continuamos a assistir a isso, não se pode partilhar com o herdeiro informações sobre a situação de saúde.

 

Muitas vezes um familiar entra numa urgência e somos postos a par da situação.

 

Pois, mas é uma violação do direito à reserva da vida privada. Ninguém pode ter acesso à nossa informação clínica sem o nosso prévio consentimento, nenhum de nós pode fazer isso. O que acontece é que as pessoas têm direito, pela lei dos doentes do Serviço Nacional de Saúde, a ter uma pessoa de confiança ou de referência que entre consigo no hospital.

 

Estava a pensar no exemplo da minha mãe, foi levada para São José e o médico disse-me o diagnóstico, ele não o poderia ter dito?

 

Não devia. Por exemplo, o meu pai entrou no Hospital de São Francisco Xavier com um tumor nos pulmões, faleceu em dois meses, e o médico disse-lhe: «As notícias não são boas, quer saber ou não?» A pessoa tem direito a não saber o diagnóstico. «Não quero saber». «E quer que alguém saiba?». «Quero, quero que a minha mulher saiba». O meu pai saiu e entrou a minha mãe. Foi a minha mãe que recebeu o diagnóstico, que percebeu qual era a terapia, depois, é claro, o meu pai percebeu, para bom entendedor meia palavra basta, mandaram-no fazer quimioterapia, recusou-se e não fez, e foi tudo certinho, seguiu-se tudo tal e qual como deve ser.

A prática corrente seria chamarem-me a mim e à minha mãe e dizerem-nos: «O seu pai tem dois meses de vida». Isto não pode ser e continuamos a fazer assim, infelizmente. E não pode ser porque a pessoa tanto tem o direito de saber como de não saber, e tem ainda o direito de saber quem quer que esteja envolvido no processo.

 

Na realidade, o médico disse: «Despeçam-se», e foi realmente importante para mim poder despedir-me.

 

Por isso é muito importante tomarmos essas decisões e as deixarmos por escrito, porque a comunicação de uma situação dessas a um familiar, e o médico não pode saber, nem tem de saber, pode lesar a pessoa seriamente, em matéria dos seus direitos.

Dou um exemplo concreto de uma situação que acompanhei, de uma senhora de idade avançada que entrou no hospital para ser sujeita a uma operação. O médico disse à filha que havia um risco elevado de a senhora não sobreviver. Não falou com a senhora sobre isto. Moral da história, a filha levantou o dinheiro todo que havia na conta, a senhora recuperou e nunca mais viu o dinheiro.

É preciso termos a noção de que se olharmos para as estatísticas da APAV ou para as estatísticas da OMS, a maior parte dos crimes contra as pessoas mais velhas são perpetrados pelos familiares.

Há também o hábito de os pais fazerem contas conjuntas com os filhos.

 

Que é algo que não se deve fazer, mas o médico não sabe, nem lhe vai perguntar. Por exemplo, a minha mãe deu entrada no Hospital de São Francisco Xavier, estava cognitivamente bem, tiraram-lhe os anéis, o relógio. E a minha mãe, que era jurista, disse-me: «Se não te importas, vai levantar as minhas coisas, leva-as para casa e trazes-me aqui a declaração para eu assinar.»

Fui ao local e a senhora entregou-me tudo num saco, apenas com a fotocópia do meu cartão de cidadão. Mas não podem entregar os bens, só devem ser entregues com autorização do doente ou, em caso de morte, ao cabeça de casal com a habilitação de herdeiros, não podem ser entregues a outra pessoa.

 

Estamos a anos-luz disso.

 

Já não, porque isto já está na legislação, já está nos regulamentos dos hospitais. Não significa apelar à desconfiança dos familiares - e acredito que o que ainda nos vale em Portugal é a solidariedade intrafamiliar -, mas temos de perceber que há famílias e famílias, e temos de agir sempre na defesa do mais frágil. E a defesa do mais frágil diz-nos que temos de ter muito cuidado com o que dizemos e com a partilha de informação que fazemos, as nossas decisões têm consequências e podem ter consequências muito nefastas para a pessoa.

Conto-lhe outro caso, também de uma senhora que foi operada. Nessa altura, havia ainda o imposto sucessório e a senhora teve a iniciativa de passar o património dela para o nome da filha, caso a operação corresse mal. A senhora recuperou muito bem da operação, mas a filha morreu num acidente de viação. E quem herdou tudo foi o marido e os filhos, os netos da senhora, porque a senhora deixou de ser herdeira. A senhora nunca recuperou o património e acabou na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

É este tipo de situações que nós temos de acautelar, não podemos prestar informação clínica sem a prévia autorização do próprio ou do seu acompanhante. Por isso é que eu advogo que a pessoa faça o testamento vital e que tome essas decisões. E o testamento vital é um direito, não é uma obrigação.

 

Quer explicar um pouco melhor, Paula?

 

O testamento vital não me permite tomar decisões sobre a eutanásia ou sobre o fim de vida, mas sim sobre o encarniçamento terapêutico, ou seja, sobre não ficar artificialmente mantida viva, ou sobre o direito a não ser reanimada, a não ter alimentação por sonda, a não ter intervenções de saúde artificiais para me manterem viva, posso tomar todas essas decisões, é muito importante que se deixe tudo isso escrito.

E acima de tudo, o testamento vital tem a possibilidade da nomeação do procurador para os cuidados de saúde. Pode-se fazer só a parte da procuração para cuidados de saúde, ou seja, escolher alguém que tome decisões em meu nome na dimensão de saúde, alguém com quem eu tenha partilhado a minha informação, ou seja, em vez de fazer o testamento vital, nomeio uma pessoa como procurador para cuidados de saúde, é uma opção. O segredo é anteciparmos as decisões,

 

Não se trata de processos feitos de jurista para jurista?

 

Não, neste momento há 44 mil pessoas que já fizeram o testamento vital em Portugal. Parece-me muito pouco, falta-nos algo, que não é exactamente da minha área, mas penso que as pessoas se conhecem mal e não pensam nas coisas desagradáveis da vida, vejo que as pessoas nem sequer vivem o luto, têm um desgosto, tomam um medicamento para não sentir a dor. E é muito importante trabalhar esta dimensão, sofrer faz parte.

 

Falou de leis que têm uma burocracia associada, procedimentos, mas como é que uma pessoa comum sabe o que deve fazer ou como fazer?

 

Tem toda a razão, não trabalhamos a informação junto das pessoas, porque quem tem informação tem poder, e penso que não interessa que as pessoas saibam. De facto, não há campanhas para a salvaguarda dos direitos das pessoas e dos direitos humanos; uma pessoa que sabe os seus direitos, quando entra numa urgência, é completamente diferente de uma pessoa que não sabe. Há, claramente, uma intenção, uma dimensão, quase bipolar, que é por um lado, termos uma das legislações mais complexas e completas em matéria de direitos, nos últimos cinco anos saíram seis leis sobre direitos na esfera da saúde e, por outro, a maior parte dos doentes não as conhecer.

E os profissionais também não.

 

Há uma inércia dos serviços e das pessoas em matéria da promoção e da divulgação dos direitos, precisamente porque depois nem sempre há condições para os implementar na realidade.

 

Mas na internet e nas redes sociais, onde é possível saber mais sobre esses processos, perceber o que se deve fazer…

Além do guia Inclusivamente da Rede Europeia Anti-Pobreza, que já referi, a Procuradoria-Geral da República tem informação sobre o Regime do Maior Acompanhado e a Segurança Social tem um guia passo a passo do Estatuto do Cuidador Informal. É preciso ser proactivo e ir à procura. Depois há a Provedoria de Justiça, que tem três linhas directas gratuitas de apoio às pessoas, uma para a área dos direitos das crianças, outra para os direitos das pessoas com deficiência e outra para a área dos direitos das pessoas mais velhas e com capacidade diminuída.

A APAV também tem manuais e informação sobre o Regime do Maior Acompanhado, sobre o Estatuto do Cuidador Informal, sobre os sinais de alerta de violência ou de violação dos direitos das pessoas mais velhas. A APAV está a trabalhar muito bem, aliás, lançaram agora um projecto muito interessante, sobre os sinais de alerta de violência dentro das instituições.

Tenho feito muita formação nas Universidades de terceira idade, em Centros de Dia. Tive uma experiência muito interessante em Lavos, na Figueira da Foz, há uns meses, em que estavam 81 pessoas provenientes dos Centros de Dia e de várias instituições. Juntaram-nas todas para ouvir falar destas questões do cuidado com as procurações, com as vendas fictícias, as doações, as contas conjuntas. Enquanto tiverem o seu património, as pessoas mais velhas são mais autónomas e mais independentes, há que ter cuidado com as decisões antecipadas. Tudo isto deve ser falado e explicado. É um processo pedagógico de informação, de serviço público, que é fundamental.

 

As pessoas fizeram muitas perguntas?

 

Sim, sim, muitas. Uma coisa que é um bocadinho assustadora é que algumas das pessoas já tinham feito os disparates todos e depois estive também a desdramatizar essa dimensão, sempre na linha de que não é uma questão de desconfiarem dos filhos. Há aqui um processo de pedagogia muito interessante e muito necessário.

Estou convencida de que estamos numa fase de transição, aliás, é uma fase extraordinária, estamos a mudar os modelos familiares a uma grande velocidade e, portanto, estas questões, de que faz sentido falarmos hoje, dentro de dez anos não farão sentido, porque os filhos nem sequer estarão cá fisicamente, porque emigraram, ou não estarão do ponto de vista da disponibilidade.

 

Há uma migração da estrutura familiar tradicional do sul da Europa mediterrânica para uma estrutura mais característica do norte da Europa.

 

Sim, penso até que vamos ter de rever o nosso sistema sucessório e passar para a sucessão testamentária, para a pessoa poder dispor livremente do seu património. Neste momento, estamos limitados na decisão sobre o nosso património post mortem. Isto não faz sentido nenhum. Quer dizer, eu não posso deixar o meu património a quem quero? Isto só acontece nos países do Sul, em Itália, Grécia, França. Nos outros países, o património é meu e disponho dele livremente. Temos anacronismos do ponto de vista sucessório, como por exemplo, quem tem um filho deficiente não o pode beneficiar relativamente aos outros, sem o consentimento deles. Isto não faz sentido nenhum.

 

O pressuposto é de que a relação com os filhos é toda ela igual.

 

O pressuposto é o da defesa do património e não o da defesa do interesse das pessoas, o património familiar é que tem de ser acautelado, esta ideia da família como uma pessoa colectiva. Não faz sentido, independentemente de se ter um filho deficiente ou não, ter um património colossal e não o poder deixar a quem se quiser. O direito de família e o direito sucessório estão feitos para uma realidade de família e de sociedade que já não existe. Seria bom que o direito fosse à frente, ou pelo menos a par da sociedade.

 

Temos estado a falar da perda cognitiva pela idade, mas na realidade, como disse há pouco a Paula, a perda cognitiva pode acontecer em qualquer altura, com um AVC, um acidente, não acontece apenas com as pessoas mais velhas.

 

Há também a situação dos comportamentos aditivos… As pessoas ficam muito surpreendidas porque um jogador pode ser alvo de uma medida de acompanhamento. Ou um acumulador, estas pessoas podem até ter um discurso completamente racional, mas basta terem a casa cheia de lixo e isso é sinal de que não têm a noção completa da gestão do seu projecto de vida e podem ser objecto de uma acção de acompanhamento.

 

E o motivo pode ser uma queixa apresentada no Ministério Público?

 

Nem é uma queixa, a não ser nos casos da toxicodependência. No caso da acumulação pode ser uma denúncia, que pode dar depois origem a uma intervenção do delegado de saúde e a uma sinalização ao Ministério Público de que alguém precisa de apoio para a tomada de decisões. E a sinalização ao Ministério Público, qualquer um de nós pode fazer.

 

Há uma pergunta pela qual começo sempre e que ficou para o fim: quem é a Paula Guimarães?

 

[Risos] Bem, eu sou uma uma pessoa com 59 anos, que fez um curso de direito, mas sou, sobretudo, uma pessoa que gosta de trabalhar na área social, na intervenção social, gosto de trabalhar com pessoas de outras formações, em equipa. Neste momento, o assunto que mais me interessa é precisamente a questão da salvaguarda dos direitos das pessoas em situação de capacidade cognitiva afectada ou diminuída e o Estatuto do Cuidador Informal. Isto na dimensão profissional.

Estou ansiosa por chegar à reforma, para não ter estas cruzadas, estou ansiosa por ser ainda mais velha e poder dedicar-me àquilo de que gosto e com quem gosto, que é viajar, escrever, ler, estar com o meu marido e com os amigos. Enfim, penso que sou uma pessoa feliz e penso que isso é importante.

 

Do ponto de vista profissional, quais são para si os projectos que lhe deram maior satisfação?

 

Ter tido responsabilidades na área dos centros de intervenção para jovens delinquentes, nos centros educativos, foi uma experiência muito rica, em que aprendi muito.

E depois, talvez, este projecto em que estou neste momento, porque há uma necessidade social muito intensa e há muita coisa por fazer. Diria que trabalhar com os cuidadores informais, e com o cuidar, talvez seja uma das fases mais interessantes. Sobretudo, porque trabalhei em grandes organizações e descobri que não gosto, prefiro trabalhar de forma independente, em equipa e em articulação, sem ter cadeias hierárquicas, não gosto de ser chefiada, confesso.

 

Há quanto tempo não está numa grande organização?

 

Desde 2022. Em 2019, fiz uma licença sabática. E descobri que era mais feliz assim [Risos].

 

Imaginava e comprovou.

 

Exactamente, imaginava e comprovei. É interessante perceber que os referentes são muito importantes, fiz muitas coisas na minha vida por causa dos referentes. Quando a minha mãe morreu, percebi que já não havia o risco de a desiludir e que podia correr riscos, riscos que nunca correria enquanto ela fosse viva, porque não a queria angustiar.

 

Ter um pai vivo ou ter ambos os pais mortos faz uma grande diferença.

 

Faz, faz. O confronto com a orfandade é um confronto muito interessante, pensando agora, com alguma distância, porque é simultaneamente um grande vazio e uma grande liberdade. Eu adorei os meus pais e gostaria imenso que eles continuassem vivos, mas esta ideia de que subitamente eu já não tenho de provar nada e só tenho de provar a mim mesma é, ao mesmo tempo, uma situação muito libertadora.

Acima de tudo, tive uns pais que não me castraram em nada, portanto, se eu tivesse tomado essas decisões durante a sua vida, teria sido possível, mas eu sabia que os angustiava e quis poupá-los a essa angústia de deixar de estar empregada. Penso que foi um processo de auto-castração para os poupar, é um processo diferente. Mas os referentes têm muita importância, nenhuma pessoa tem a noção de como os referentes nos marcam, para fazer o mesmo, ou para fazer o contrário.

 

E às vezes fazer o contrário é uma forma de fazer o mesmo.

 

Pois acredito que sim.

 

Posso repetir porque faço igual, ou posso repetir porque não me dou a liberdade de fazer um caminho próprio e, portanto, fazer exactamente o oposto pode ser uma forma de repetição, não percebendo que estou a repetir.

 

É verdade.

 

Espinhal, 28 de Julho de 2024

Entrevista realizada por Alexandra Coimbra

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