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Psicoterapia e Mal-Estar: Eu Sempre Te Prometi Um Jardim de Rosas

Writer: Iuri ConceicaoIuri Conceicao

Updated: Mar 5

"Ai de nós! Aproxima-se o tempo em que o homem já não

dará à luz nenhuma estrela. Ai de nós! Aproxima-se o tempo

do homem mais desprezível, que já não sabe desprezar-se a si mesmo.

Vejam! Eu apresento-vos o último homem.

“O que é o amor? O que é a criação? O que é o anseio? O que é uma estrela?”

— assim pergunta o último homem, e pisca o olho...

Nós inventamos a felicidade” — dizem os últimos homens,

e piscam o olho."

― Friedrich Nietzsche, Assim Falou Zaratustra



No livro “Eu Nunca Te Prometi Um Jardim De Rosas”, a psicoterapeuta Dra. Fried confessa à sua paciente Deborah: “Eu nunca te prometi um jardim de rosas. Eu nunca te prometi a justiça perfeita […] e nunca te prometi a paz nem a felicidade. A minha ajuda serve para que possas ser livre para lutar por todas estas coisas. A única realidade que eu posso oferecer é o desafio, e o estar-se bem é ser-se livre para aceitar, ou não, os desafios da vida, e mediante a nossa capacidade. Eu nunca te prometi mentiras, e o mundo perfeito feito de rosas é uma mentira... e aborrecido também!”. Os objetivos psicoterapêuticos de alguns dos tratamentos psicológicos contemporâneos prometem transformar a vida num jardim de rosas, prometendo a felicidade absoluta, o aumento de produtividade, e a perfeita adaptação a uma sociedade de produção e consumo incansáveis. Estas práticas psicoterapêuticas baseiam-se na prescrição de intervenções como competências e ferramentas comportamentais práticas que advêm de uma mentalidade de mercado e que são superficiais, simplistas, impessoais, generalizadas e massificadas. De acordo com este modelo, o tratamento e o encontro terapêutico não requerem a implicação e presença subjetiva do psicoterapeuta nem do paciente. Mas mais importante, a existência do inconsciente e a necessidade de sentido são realidades desvalorizadas e anuladas.


Os serviços de saúde mental, a psicologia e a psicoterapia, são disciplinas contextualizadas em condições culturais, históricas, socioeconómicas e políticas específicas. Embora estas disciplinas tentem definir-se epistemologicamente enquanto "neutras e puramente científicas", devem no entanto ser consideradas enquanto discursos morais que valorizam determinados tipos de moral, em detrimento de outros. A psicologia moderna teve início durante a revolução industrial e com o auxílio da estatística e da experimentação laboratorial controlada, começou a estudar, isolar, medir, catalogar, categorizar e recolher dados psicológicos, demográficos e económicos. A avaliação dos indivíduos e do seu comportamento e características psicológicas permitiu ao estado e às organizações classificar os indivíduos de acordo com vários atributos como por exemplo a inteligência, a amabilidade, as atitudes, a abertura à mudança, a resiliência, a motivação, a personalidade, etc. À medida que a psicologia se separou da filosofia e se tornou numa disciplina independente, o objecto de estudo também mudou. Enquanto que a filosofia se interessava pela compreensão da natureza humana, a importância da busca de um sentido na vida, e da tentativa de entender o que é a vida que vale a pena ser vivida, a psicologia enquanto nova ciência focou-se na medição, categorização, classificação, controlo, vigilância, e patologização da vida humana. 


Esta mudança significativa de paradigma tornou-se mais explícita em 1913 quando John Watson, o pai do comportamentalismo Norte Americano, definiu a psicologia enquanto “… um ramo experimental puramente objetivo da ciência natural. O seu objetivo teórico é a previsão e o controlo do comportamento”. Ainda hoje a maioria dos professores e alunos dos cursos de psicologia nas universidades da América do Norte entendem a psicologia tal como esta foi definida por John Watson. Não admira então que John Watson tenha tido bastante sucesso profissional quando deixou a área da psicologia para trabalhar no marketing, moldando e estudando o comportamento dos consumidores. Seguindo uma abordagem positivista e científica do mundo, o objetivo da psicologia contemporânea é descobrir leis universais do comportamento, tratamento, e cura, que possam ser aplicadas a todos os indivíduos e em todas as circunstâncias. Daí o foco na investigação quantitativa, no empirismo, e no pragmatismo, ignorando realidades mais difíceis de operacionalizar e isolar como o contexto, a cultura, o pensamento sistémico, e a complexidade da vida. Com a redução do sujeito a um organismo mecânico caracterizado pelos comportamentos externos observáveis, quantitativos, e mensuráveis, que reage automaticamente e sem intencionalidade a estímulos do ambiente; Ou a redução do sujeito ao cogito enquanto módulo cognitivo que processa cognições de um modo computacional, a psicologia etimologicamente definida enquanto o logos da psique perdeu de facto a sua alma.



Louis Eysen  - Dead Bird and Two Roses on a Table Board, 1882
Louis Eysen  - Dead Bird and Two Roses on a Table Board, 1882


Enquanto que a filosofia se interessava pela compreensão da natureza humana, a importância da busca de um sentido na vida, e da tentativa de entender o que é a vida que vale a pena ser vivida, a psicologia enquanto nova ciência focou-se na medição, categorização, classificação, controlo, vigilância, e patologização da vida humana.


O capitalismo não é apenas um sistema económico, mas também um discurso com tipos específicos de subjetividade, laços sociais, e relações entre indivíduos. O indivíduo bem adaptado ao capitalismo possuí as seguintes características: Considera o bem ético enquanto tudo o que produz lucro; Está focado na produtividade e na realização pessoal enquanto objetivos de vida; Tem uma atitude geral de felicidade, empreendedorismo, e optimismo perante a vida; Valoriza a comunicação e a transparência e não gosta de segredos; Valoriza a autonomia e o individualismo acima da vida comunitária e da solidariedade; Tem um eu líquido e adaptável às mudanças causadas pelos mercados; Não está apegado a ideais, lugares, ou pessoas; Valoriza a hiper racionalidade; Prioritiza a acção e o fazer sobre o pensamento, a reflexão, ou a contemplação; Necessita de certeza e abomina toda a incerteza; Valoriza o realismo materialista em detrimento da fantasia, do mito, ou da narrativa, etc. Esta visão da subjetividade e das relações humanas contrasta com a noção psicanalítica da natureza humana definida pela importância do inconsciente, da interdependência, do infantil, da vida emocional, do desejo, e das fantasias, para a vida mental.


Para o psicanalista Jacques Lacan, a falta (manque) está no centro da existência. Não apenas uma falta de algo, mas uma falta do próprio ser, de tal forma que não há chão no qual o sujeito se sustente. Contudo, é porque nos falta algo que podemos desejar, pois o desejo é a consequência de sermos seres faltantes. E como temos um inconsciente, somos sujeitos barrados e divididos que sempre sentirão alienação, desconforto, dúvida, angústia, E em relação com algo diferente dentro de nós que escapa e desafia o controlo intencional e à compreensão plena do ego. Contudo, o capitalismo tenta convencer-nos de que a razão pela qual nós sofremos é porque estamos a falhar na vida, por sermos anormais, defeituosos, e porque ainda não encontrámos o produto certo no mercado, ou a solução mágica, que nos vão curar da nossa insatisfação. Deste modo, o capitalismo exige que nos esqueçamos que nunca conseguiremos realizar plenamente o nosso desejo. Consequentemente, o que o capitalismo nos promete é o preenchimento da nossa falta e a erradicação do nosso mal-estar, através da oferta ilusória de soluções 100% garantidas, generalizadas, massificadas e impessoais capazes de resolver todos os nossos problemas, mediante, é claro, que tenhamos o dinheiro para as adquirir no mercado livre.


Como é que a psicoterapia considera as questões do sofrimento e da cura em tempos do capitalismo? Exactamente da mesma forma que qualquer outro produto disponível no mercado que promete resultados garantidos. Algumas psicoterapias do século XXI estão alinhadas com o discurso do capitalismo porque adoptaram uma mentalidade de solução de mercado que promete a cura enquanto a felicidade completa, a productividade e o controlo, através da remoção do sofrimento, da falta, e do inconsciente. Por exemplo, nos Estados Unidos, é comum os psicoterapeutas publicitam os seus perfis e serviços a potenciais pacientes em directórios e sites de psicoterapia online (p.e. www.psychologytoday.com). Nestes sites, alguns psicoterapeutas descrevem os seus objectivos terapêuticos aos seus potenciais pacientes enquanto promessas de sucesso garantido: "Voçê irá mudar a sua vida", "Viverá uma vida feliz, saudável e bem-sucedida", "Viverá a vida ao máximo!", "Alcançará a paz interior", "Aprenderá novas competências de coping para lidar de forma mais eficaz com a vida", "Viverá a vida com a qual sempre sonhou!", "Alcançará todos os seus objetivos e sonhos na vida", "Visualizará uma vida livre da influência dos sintomas e da ansiedade", "Inicie a sua jornada de cura e mude a sua vida", "Tornar-se-á forte", "Alcançará a sua verdadeira natureza autêntica", "Assumirá o controlo total da sua vida", "Irá parar a procrastinação e tornar-se mais produtivo", etc. É fácil constactar que estas promessas que são oferecidas enquanto garantidas caso os pacientes iniciem psicoterapia com estes psicoterapeutas, sejam um pouco exageradas e duvidosas. Afinal, como pode alguém oferecer garantias em psicoterapia? E como é que alguém poderá viver sem sofrimento ou ansiedade? E para além disso, estas promessas estão focadas em fortalecer o narcisismo do ideal do ego e o seu controlo absoluto sobre o inconsciente, o desejo, e o outro, ou seja, prometem restaurar o ego a mestre na sua própria casa. E este objectivo é alcançado sem a exploração do mundo interno, do inconsciente, do desejo, ou do sentido. A verdade é que existem muito poucas garantias, quer na psicoterapia, quer na vida.



By Alex Nabaum - from The Wall Street Journal.
By Alex Nabaum - from The Wall Street Journal.


Como é que a psicoterapia considera as questões do sofrimento e da cura em tempos do capitalismo? Algumas psicoterapias do século XXI estão alinhadas com o discurso do capitalismo porque adoptaram uma mentalidade de solução de mercado que promete a cura enquanto a felicidade completa, a produtividade e o controlo, através da remoção do sofrimento, da falta, e do inconsciente.


Será que os psicoterapeutas se tornaram nos técnicos e engenheiros do comportamento e das cognições, ao invés de serem os especialistas da alma? Uma vez um psicoterapeuta disse-me com orgulho: “Eu tenho um cinto de ferramentas com um conjunto de ferramentas que utilizo para resolver qualquer diagnóstico que os meus clientes me tragam. Tenho ferramentas para curar a ansiedade, a depressão, a PHDA, os traumas, tudo!". Conselhos como “Pratique mindfulness três vezes por semana”, “Tenha uma boa higiene do sono”, “Escreva todos os dias no seu diário pessoal”, “Medite pelo menos uma vez por dia”, “Faça longas caminhadas”, “Vá ao ginásio três vezes por semana”, “Pratique zanga saudável”, são algumas das prescrições habituais de tratamento oferecidas pelos psicoterapeutas contemporâneos. Embora algumas destas sugestões possam ser úteis até certo ponto, é fácil perceber que têm muito pouco a ver com quaisquer princípios psicológicos. Além disso, a distinção entre um psicoterapeuta, um instructor de ioga, um nutricionista, ou um personal trainer esbatem-se. A verdade é que estas sugestões são concretas, superficiais, simplistas, generalistas e impessoais, e não promovem a exploração subjectiva nem o questionamento do próprio eu, nem dos sintomas. Além disso, também não se focam na relação entre o psicoterapeuta e o paciente enquanto locus de mudança. E mais, a subjetividade do psicoterapeuta, a sua história pessoal, os preconceitos, as expectativas, as emoções, a contratransferência, os estereótipos, os conflitos, etc., são frequentemente considerados enquanto variáveis externas que pode interferir negativamente na eficácia da terapia e que idealmente deve ser removidas do tratamento. A aliança terapêutica ideal para as psicoterapias de "mentalidade de caixa de ferramentas" e de "resultados garantidos" seria entre um psicoterapeuta morto que segue e aplica planos de tratamento padronizados fornecidos por protocolos e diretrizes, e um paciente morto que permanece um recetor passivo e dócil do conhecimento e perícia do psicoterapeuta. Mas como poderá existir cura na morte?


É compreensível que os psicoterapeutas vivam numa economia competitiva e que se tenham que adaptar ao mercado. Max Weber afirmou que quando se vive no capitalismo, é necessário obedecer à ética capitalista. Além disso, a competição para atrair pacientes é bastante significativa: colegas, outras disciplinas de saúde mental, a medicalização dos cuidados de saúde mental, life coaches, grandes corporações que recrutam psicoterapeutas em massa para oferecer psicoterapia à la carte e quando e com quem o paciente quiser (a uberização da psicoterapia) e, mais recentemente, os bots e chats da inteligência artificial, ou aplicações de telemóvel que oferecem psicoterapia gratuita e mais barata, etc. Talvez sob a regra da “sobrevivência do mais apto” de Spencer, os psicoterapeutas estejam sob pressão para adaptar as suas promessas de cura e métodos psicoterapêuticos às exigências e padrões do mercado, prometendo aos pacientes que o objectivo da psicoterapia é torná-los melhor adaptados a uma sociedade capitalista e competitiva. Quantos pacientes atrairía um psicoterapeuta ao descrever os objectivos do tratamento como Freud o fez, ao afirmar que o objectivo da psicanálise seria alcançar a infelicidade comum, ou melhor, a transformação da miséria neurótica em infelicidade comum? Certamente nenhum. 


No entanto, o problema com estas promessas psicoterapêuticas de transformar a vida num roseiral sem sofrimento é que muitas vezes resulta em promessas não cumpridas, causando ainda mais decepção e frustração para clínicos e pacientes. Quando os tratamentos falham, os psicoterapeutas ou se culpam a si próprios, porque os resultados estão aquém das promessas oferecidas pelos estudos empíricos e pelos manuais de psicoterapia, ou culpam os pacientes, categorizando-os como demasiado desafiantes ou resistentes ao tratamento. E os pacientes tornam-se decepcionados e desiludidos, continuando em busca de um psicoterapeuta diferente ou de uma outra qualquer solução impessoal, apenas para que o mesmo ciclo se repita indefinidamente. De modo a minimizar o risco de insucesso, já é práctica comum alguns pacientes iniciarem psicoterapia com dois ou mais psicoterapeutas e decidirem continuar com o psicoterapeuta que garanta mais promessas de cura e método. Não será de admirar então que a depressão, os estados de vazio, a ansiedade crónica, e o esgotamento, sejam alguns dos problemas de saúde mental dominantes nos dias de hoje.



Rene Magritte - The Therapist (1937)
Rene Magritte - The Therapist (1937)


A aliança terapêutica ideal para as psicoterapias de "mentalidade de caixa de ferramentas" e de "resultados garantidos" seria entre um psicoterapeuta morto que segue e aplica planos de tratamento padronizados fornecidos por protocolos e diretrizes, e um paciente morto que permanece um recetor passivo e dócil do conhecimento e perícia do psicoterapeuta. Mas como poderá existir cura na morte?


A psicologia e as psicoterapias contemporâneas estão alinhadas com uma visão neoliberal e capitalista do eu enquanto hiper-racional, objetivo, mensurável, concreto, exteriorizado, individualista, mecânico, previsível, e controlável. É importante que as ciências psicológicas mantenham uma postura subversiva, disruptiva e crítica, em relação aos discursos dominantes e hegemónicos na sociedade, com as suas exigências de manutenção do status quo e de adaptação. As psicoterapias contemporâneas apresentam-se como naturais e científicas, contudo possuem valores como a clareza, a atividade, a rapidez, a concretude, as soluções, a practicalidade, o realismo, a eficiência, a sistematização, e o funcionamento adaptado. Sob este horizonte moral, o processo de psicoterapia parece ser um processo matemático, instrumental, eficiente, previsível, indolor, económico e descomplicado de remoção de sintomas e instauração da felicidade e produtividade. Talvez a psicologia e as psicoterapias pudessem recuperar algo mais da filosofia e de outras disciplinas das humanidades, ajudando-nos a compreender que a vida é de facto patológica e trágica. Por exemplo, Cushman e Gilford defendem que as psicoterapias devem adoptar uma perspectiva hermenêutica e compreender os humanos enquanto seres morais e históricos, ao invés de máquinas computacionais que são optimizadas, controladas, e actualizadas através de procedimentos técnicos terapêuticos. Esta perspectiva hermenêutica promoveria uma conversa autêntica entre clínicos e pacientes, convidando a um discurso moral que encorajasse um encontro com a mortalidade, e um exame da trajectória moral de vida de cada um de nós. Talvez esta mudança de paradigma pudesse trazer de volta um certo re encantamento à psicologia e às psicoterapias, que permitisse incluir o mistério, o sentido, a incerteza, o inconsciente, a complexidade, e a profundidade de volta às nossas mentes.


Nota: A psicologia e a psicoterapia são um campo diversificado de teorias e práticas. Esta crítica é aplicável às teorias e práticas de psicoterapia que estão mais alinhadas com o capitalismo e o neoliberalismo. Este artigo é a tradução Portuguesa do artigo anteriormente publicado no Blog com o título "Psychotherapy and its Discontents: I Have Always Promised You a Rose Garden".


Referências Bibliográficas:


Cushman, P., & Gilford, P. (2000). Will Managed Care Change Our Way of Being?. The American psychologist, 55(9), 985–996.

 Green, H. (1964). I Never Promised You a Rose Garden. Signet: New York.

 Lacan, J (1998). The Seminar Book II. The Ego in Freud’s Theory and in the Technique of

Psychoanalysis. New York: Norton; Cambridge: Cambridge University Press.

 Roberts, R. (2015). Psychology and Capitalism: The Manipulation of the Mind. Zero Books, Uk.

 Watson, J. B. (1913). Psychology As The Behaviorist Views It. Psychological Review, 20(2), 158–177.


 
 
 

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