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Investigadora

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Bárbara Gomes

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Quem é a Bárbara Gomes?

 

Ora bem, eu sou mulher, irmã, companheira, filha, mas profissionalmente sou investigadora. Licenciei-me em Psicologia e Saúde, no Porto, e, desde muito cedo, tive curiosidade sobre os cuidados paliativos. Escolhi estagiar na Unidade de Cuidados Paliativos do IPO do Porto, e percebi que tinha de sair de Portugal para aprender mais. Portanto, fui para Londres, estudei, trabalhei, fiz investigação, fiz mestrado e doutoramento nesta área. Estive cerca de dez anos em Londres, a trabalhar no King's College London, que é um centro de excelência e de referência em cuidados paliativos. E depois voltei para Portugal, o que sempre foi a minha ideia, para continuar a trabalhar e ajudar a fazer crescer esta área.

 

De onde veio o seu interesse e curiosidade pelos cuidados paliativos?

 

Retrospectivamente, porque se calhar na altura não pensei muito sobre o assunto, consigo eventualmente identificar algumas ligações. Sempre quis fazer alguma coisa com impacto nos outros, tive algumas experiências de doença na minha família, e tinha uma relação muito próxima com a minha avó, que era dona de uma mercearia, e sempre tive aquele espírito de ir com ela levar as compras às senhoras velhinhas que já não saíam de casa. Ela era uma pessoa muito bondosa. 

 

Depois houve coisas interessantes, por exemplo, os meus pais tinham uma biblioteca onde havia um livro que era o Pavilhão dos Cancerosos. E eu, não sei porquê, achei piada àquele livro, era adolescente e era um calhamaço, mas eu li-o e gostei bastante. E tinha que ver, obviamente, com a vivência do cancro. 

 

As compras que ia levar deviam ser para pessoas que, pela sua idade e pelas suas limitações, talvez já não tivessem autonomia para sair de casa.

 

Sim, eram, e algumas vezes também eram ditadas pelas próprias limitações das casas, com escadas íngremes, etc. A minha avó vivia numa rua do bairro da Bouça, era um bairro humilde, com as típicas ilhas do Porto. Havia muito aquele espírito de vizinhança, se alguém estivesse doente, o vizinho do lado ajudava. Ou seja, agora falamos muito de Comunidades Compassivas, e em Portugal temos nove, o que é óptimo de ver, mas naquela altura havia muito este espírito e, se calhar, isso já era compaixão pelos outros.

 

Como foi o seu estágio no IPO?

 

Bom, foi impactante. É uma unidade em que há quartos individuais, mas uma coisa que me marcou naquela altura foi que as pessoas estavam muito centradas no seu quarto. Estagiei com uma colega, que depois ficou muito minha amiga, e conseguimos fazer coisas interessantes. Um dos projectos que gostámos mesmo de fazer foi o de imagética guiada. Lembro-me de um casal, a senhora já estava acamada e nas últimas semanas de vida. Conversámos com eles e perguntámos se havia um lugar a que a senhora gostasse de regressar, e ela falou-nos de umas férias que fazia com o marido e os filhos, e de um rio onde nadava. Construímos um guião e depois fizemos com eles, juntos, um processo de imagética guiada, revisitando esse lugar, o que resulta em relaxamento e pode ajudar no controle de sintomas, na ansiedade, na dor, mas é também uma viagem a esse sítio e a essas memórias. E foi muito impactante para eles conseguirem fazer isso. Ainda éramos muito jovens, mas conseguimos fazer algumas coisas que penso que fizeram a diferença.

 

E como foi estar dez anos em Londres?

 

Foi uma experiência incrível. É uma cidade multicultural, de que sinto imensa falta, com um ritmo muito rápido e um grau de aprendizagem brutal. Foi um período muito rico, com muitas amizades. Aprender lá - tanto a parte da investigação, muito em ligação com o terreno e com a clínica, já que toda a investigação que era feita no Cicely Saunders Institute era muito ligada ao serviço de cuidados paliativos no King's College Hospital, que era mesmo ao lado; como fazer entrevistas aos doentes, trabalhar com uma equipa multidisciplinar, estar conectada com as redes de contactos noutros países - tudo isso, permitiu-me crescer e aprender imenso.

 

Em Portugal, o funcionamento dos serviços é muito diferente?

 

Sim, bastante. Em Inglaterra, onde nasceram os cuidados paliativos, no final dos anos 1960, têm um modelo muito interessante que não sei se vingaria cá, o dos Hospices, que são unidades para pessoas com doença avançada terminal, são quase residências, mas com cuidados mais diferenciados, com um ambiente familiar e apoio de 24 horas, sete dias por semana. 

 

Aqui, em Portugal, as unidades de cuidados paliativos que existem, normalmente, são dentro de unidades hospitalares e têm aquele ambiente próprio de um hospital de agudos, não muito permeável a visitas. Portanto, penso que o modelo dos Hospices é muito interessante, porque se aproxima do ambiente familiar de uma casa, que é algo que as pessoas valorizam no final de vida.

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Isso lembra-me o seu trabalho actual, sobre a sincronia que há, ou não, entre o local onde a pessoa gostaria de morrer e onde, na realidade, morre. Gostava que me falasse um pouco de como é que passou da tese de doutoramento, mais ligada aos doentes terminais com cancro, para este projecto actual.

 

Uma das coisas que me motivou, logo no início, foi a  ideia de empowerment no fim de vida. E o interesse nesta questão dos locais veio da minha mentora dos cuidados paliativos, a Irene Higginson que, quando me contratou para o King's, me disse: “Estou num projecto sobre os locais de morte, que tem muito essa ideia que te interessa, a de empoderar as pessoas, as questões da autonomia e das preferências, e acho que é um projecto bom para ti”. E foi, de facto, uma boa aposta. E depois, obviamente, comecei a perceber as ramificações de uma coisa que parece simples, até objectiva, um local, mas que é muito mais do que isso, porque é muito simbólica, tem muitos significados associados, a presença da família, de objectos familiares; também nos dá um sentimento de controle de alguma coisa, quando tudo começa a fugir ao nosso controlo. 

 

Comecei depois a analisar dados de mortalidade dos diferentes países, entre eles Portugal, e a perceber que o local de morte é registado nas certidões de óbito de forma muito embrionária, quase dicotómica, casa – hospital. E depois percebi que os países registavam os locais de forma diferente e pensei que se todos registássemos a informação da mesma maneira e de uma forma mais refinada, não só seria melhor para conseguirmos ver se as pessoas estão a morrer onde querem, cruzando os dois pedaços do puzzle, mas também conseguiríamos gerar informação útil para desenvolver serviços. 

 

E foi o que me levou a pensar nesta ideia, um bocado megalómana, de começar a desenvolver uma classificação internacional de locais de morte. Essa ideia não encaixava em nenhum concurso de financiamento, e ter o Conselho Europeu de Investigação, que não fecha horizontes, onde qualquer domínio da ciência é possível, a dizer-nos que fizéssemos a proposta, foi muito bom. Fiz e fui seleccionada. 

 

Portanto, aqui estamos nós, mais ou menos a meio do projecto, a desenvolver essa tal classificação. Também consegui reunir uma equipa óptima, estamos a trabalhar em quatro países, Portugal, Holanda, Estados Unidos e Uganda, escolhidos exactamente porque são contrastantes. Já temos um esboço da classificação.

 

Neste momento, a classificação tem quantos itens?

 

Ela é hierárquica, portanto, tem locais dentro de locais. Há locais difíceis porque não sabemos se encaixam num lado ou no outro, dependendo dos países.

 

Numa casa, há um local dentro do local?

 

Há, porque depois começamos a perceber que morrer na nossa casa é diferente de morrer na casa dos nossos filhos, dos nossos pais, ou de um amigo. Há cada vez mais sítios, mesmo em residências ou comunidades até, onde as pessoas preservam o seu espaço, e que, se calhar, algumas delas vêem como a sua casa. 

 

O que é mais importante para as pessoas, para morrerem com o máximo de conforto possível?

 

Se perguntar às pessoas, é muito variável, mas nós conseguimos identificar algumas questões transversais. Obviamente, o controlo de sintomas é importantíssimo, morrer sem dor, sem sofrimento, sendo que o sofrimento pode ser de várias ordens, físico, psicológico, social, espiritual. Para muita gente, é importante despedirem-se das pessoas, fazer as pazes. A questão do morrer em paz, que toca no aspecto espiritual, é também importante para muitos. 

 

Há estudos muito interessantes nos Estados Unidos, em que perguntaram a pessoas com doenças avançadas quais eram os atributos mais importantes no fim de vida, entre 40, e um dos mais importantes era estar limpo. Outro era ter um médico e um enfermeiro em que confiassem. Lá para o meio, estava o preservar o sentido de humor, aliás, muito mais valorizado pelos doentes do que pelos médicos.

 

O sentido do humor permite-nos elaborar acerca do que estamos a passar.

 

É também uma forma de lidar com a vulnerabilidade. Uma das coisas que é dita aos profissionais que começam na área dos cuidados paliativos, é que uma das primeiras perguntas a fazer aos pacientes deve ser: ”O que é importante, hoje, para si?”, sem partir de pressupostos do que deveria ser. É centrar os cuidados na pessoa.

 

Imagino que nem sempre a pessoa e o resto da família estejam em sintonia.

 

Falávamos das prioridades das pessoas, e essa é uma preocupação muitas vezes vocalizada pelos doentes. Estou-me a lembrar de um caso, neste projecto de que falávamos, o EOLinPLACE, em que estamos a acabar de seguir um grupo muito restrito de famílias em cada um dos quatro países. Em Portugal, seguimos oito famílias de doentes, crianças e adultos. Todas as semanas, reunimos com a equipa para fazer um debriefing, porque algumas destas conversas são intensas. E eu lembro-me de um caso, e não é o único, de a pessoa dizer: “Eu quero estar em casa, mas não quero ser uma sobrecarga”. E esse é muitas vezes o limite, esbarra no sentimento de sobrecarga na família, do impacto na família.

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Isso quando a família aceita que as pessoas morram em casa, ou aceita que as pessoas falem da morte. Também é muito difícil para quem tem uma doença grave, e sabe que tem o tempo contado, querer falar com alguém e as pessoas não aceitarem. Mas isso já é outra coisa, não é?

 

É a conspiração do silêncio.

 

Porque penso que para as outras famílias que entrevistaram, está claro que esse será o fim, a morte.

 

Está mais claro, sim, porque é um requisito para elas falarem connosco. E sabem que nós vamos falar só de locais, locais de cuidados e locais de morte, mas claro que depois há diferentes níveis de consciência sobre esta realidade. Mas continua a haver esta conspiração do silêncio, centralizando a informação na família e sobre-protegendo o doente. Mas acho também que as gerações mais novas já são mais pró-activas e querem elas próprias saber um bocadinho mais.

 

Os profissionais estão mais sensíveis a isso, mais capazes de perceber esta dinâmica e de tentar criar essa sintonia entre o que sentem que a pessoa precisa e aquilo que a família quer ou não quer ver.

 

Sim. Um elemento importante nos cuidados paliativos é a conferência familiar, juntar não só diferentes profissionais de saúde que cuidam daquela família, mas juntar a família toda com o doente. São dinâmicas difíceis, e casar as preferências e as necessidades de todos não é fácil.

 

Quais são os maiores desafios para casar as necessidades?

 

Pensando um bocadinho na minha temática e no interesse sobre os locais, vemos que todas as visões destas pessoas são essenciais. A visão do doente é central, a visão do cuidador é essencial. E depois, obviamente, há os limites, porque se pode tentar fazer tudo, mas há coisas que vão desencadear, eventualmente, processos de culpa; é bom as pessoas terem, desde o início, a consciência de que podem acontecer situações que levam às urgências, porque tocam, obviamente, questões de segurança. Às vezes, mesmo dentro da família, há visões diferentes, dos familiares, dos cuidadores. Há uma dinâmica difícil, há padrões familiares que já estão muito estabelecidos e, portanto, é quase uma abordagem sistémica.

 

O que quer dizer com os padrões familiares estarem estabelecidos?

 

Uma família funciona de determinada maneira há muitos anos. Numa altura de crise, de confronto com a doença incurável de um deles, seria ideal alguns padrões serem um bocadinho mais adaptativos, mas são assim há muitos anos e não é naquela altura de crise que, de repente, tudo vai mudar. Esta visão sistémica também é outro aspecto muito interessante dos cuidados paliativos, não vemos só o doente, vemos a família como um todo e temos de a entender e responder às diferentes necessidades e às dinâmicas que já existem.

 

Na vossa equipa de investigação, são diferentes as formações de cada um?

 

Sim, sim, temos pessoas de enfermagem, medicina, psicologia, economia da saúde, antropologia, temos pessoas de diferentes backgrounds. E acho que isso é muito importante, às vezes um olhar diferente vê coisas diferentes numa mesma realidade.

 

E porquê o Uganda? 

 

Tinha de ser um país onde soubéssemos que tínhamos capacidade para fazer investigação. Eu conhecia uma das líderes mundiais em cuidados paliativos pediátricos que trabalha muito entre a Inglaterra e o Uganda, já há muitos anos, e sabia que tinha essa ponte. E o Uganda, dentro dos países africanos, é até um dos que estão mais desenvolvidos em termos de cuidados paliativos. Sabia que era contrastante, mas sabia que conseguia fazer investigação lá de uma forma sustentada.

 

Nos Estados Unidos trabalham em que estados?

 

Nós colaboramos com dois grupos de investigação, um em Rhode Island, perto de Nova Iorque, e outro no Kansas. Na verdade, são estados muito diferentes. E também está a funcionar muito bem. É muito interessante trabalhar juntamente com estas pessoas, porque todos nós somos culturalmente diferentes. 

 

A Holanda também é muito diferente em termos culturais, comparando com Portugal, muito forte em cuidados primários, por exemplo. A população na Holanda tem uma das preferências mais elevadas para morrer em casa, 84% diz que preferiria morrer em casa, em Portugal são 51%. Eles valorizam imenso a autonomia, têm uma rede de lares muito desenvolvida. Conhecendo realidades diferentes, vamos percebendo quão influente é a rede de apoio que a pessoa tem disponível, em relação a redes formais e informais.

 

A que chama redes informais e redes formais?

 

Normalmente, falamos de redes formais quando falamos de serviços profissionais, desde serviços de saúde a serviços de apoio social, portanto, algo profissionalizado. Nas redes informais, falamos da família, da comunidade.

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E dos amigos.

 

Dos amigos, das pessoas próximas, mas que prestam apoio não pago, por exemplo, voluntários. Estamos agora a fazer um projecto muito interessante, o EU Navigate, financiado pela Comissão Europeia, em que estamos a testar uma intervenção de apoio a pessoas mais velhas com doença oncológica, na área de Coimbra e arredores, e a intervenção é de âmbito psicossocial, informal, porque são voluntários da Liga Portuguesa Contra o Cancro - Região Centro, que nós formamos, acompanhamos com mentoria, e eles fazem depois o acompanhamento dos doentes em casa, fora do IPO. 

 

Este esclarecimento é importante porque eu diria que essa seria uma rede formal.

 

Nós vemos como informal. Se olharmos com a lente da economia da saúde, quando se fazem estudos sobre quanto é que custa cuidar de alguém em fim de vida, faz-se uma medição dos custos formais e dos custos informais. Talvez esta minha leitura venha um bocadinho daí, os custos formais seriam os serviços que são pagos, e portanto, este voluntariado cairia nos custos informais. 

 

Estava a dizer que ficou surpreendida com as diferenças entre Portugal e a Holanda.

 

Sim, por exemplo, a questão da valorização da autonomia é mesmo muito acentuada na Holanda, já nós, damos muita importância aos valores familiares. Por exemplo, esta rede de serviços que eles têm muito bem organizados, de apoio em casa, faz com que as pessoas estejam em casa até mais tarde, mesmo com demência avançada, relativamente independentes, só depois, quando já não podem de todo, vão para lares. Mas, de facto, a rede de apoio possibilita que haja uma escolha mais real.

 

Cá, a escolha seria equivalente ou considera que, mesmo havendo possibilidade, não seria igual? Ou seja, nós prezamos menos a autonomia no sentido em que partimos mais do princípio de que a família está lá?

 

É difícil, penso que há as duas realidades. Se a possibilidade de escolha estivesse lá, eventualmente, seria diferente. Por isso, é que estas entrevistas que estamos a fazer são importantes, porque não perguntamos só às pessoas o que é que preferem, tentamos perceber porquê; a pessoa foi ao serviço de urgências porquê, exactamente, e agora, pensando novamente, faria a mesma escolha? E ao aprofundar, vamos percebendo se é uma escolha condicionada ou uma escolha real. Acho que as escolhas ideais deveriam orientar a forma como planeamos e organizamos os cuidados que estão disponíveis. No mundo ideal, nós deveríamos possibilitar escolhas ideais, não é?

 

As entrevistas que faz com as famílias, são várias ou apenas uma? 

 

São várias, seguimos as famílias ao longo do tempo.

 

Fazem alguma entrevista depois de a pessoa que estava a ser acompanhada morrer?

 

Fazemos, se as famílias quiserem, obviamente. E agora vamos, muito em breve, iniciar um inquérito a enlutados, online, também nos quatro países, em que vamos pedir às pessoas que perderam alguém nos últimos dois anos - do grupo de doenças que estamos a estudar, oncológicas, neuromusculares, cardíacas e, no caso dos adultos, demência -, e vamos tentar perceber o que aconteceu no último mês de vida dessa pessoa. Acho que esta visão retrospectiva é altamente importante, porque vivenciar a doença é muito exigente.

 

Sim, não há muito tempo para pensar e elaborar, não é?

 

Mas é muito interessante. Nós seguimos uma criança que, na verdade, acabou por morrer em casa, com a família, e estávamos a tentar não ser intrusivos, a nossa investigadora pediu várias vezes à mãe que nos dissesse se estivéssemos a perturbar. E a mãe, chegou a uma altura e disse assim: “Vocês agora estão aqui, vão seguir-nos até ao fim”. E isso, para nós, foi bastante importante, porque era o que nós sentíamos, era um dever. 

 

Nesse caso, essa família também vos integrou como parte do processo. 

 

E essa família sempre nos disse: “Queremos que aprendam connosco, porque nós queremos ajudar outras pessoas no futuro”.

 

A vossa equipa é multicultural o que imagino que terá aspectos positivos, mas também desafios.

 

É, também tem. Temos formas de trabalhar diferentes, mas é muito interessante. Nós agora fazemos retiros, reunimo-nos, passamos uns dias a trabalhar todas juntas, e são momentos extremamente importantes para a equipa.

 

Disse todas, porque são só mulheres?

 

Somos todas mulheres, porque, de facto, nesta área trabalham quase só mulheres. Quando abrimos um concurso, é raro termos homens a concorrer para uma posição de investigador em cuidados paliativos. 

 

Somos cerca de 15 no projecto EOLinPLACE, e depois no meu grupo, na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, somos um bocadinho mais, somos uns 20, e aí há dois homens, ambos médicos. Nesta equipa grande, que trabalha na área dos cuidados paliativos, um dos colegas, o Carlos, é médico de família e a paixão dele é trazer os cuidados paliativos para os cuidados primários. A Cândida, por exemplo, é coordenadora da equipa de Cuidados Paliativos Pediátricos do Hospital de Coimbra, a única equipa pediátrica de paliativos no país que oferece apoio em casa às famílias, todos os dias da semana. Ou seja, gerou-se ali um grupo muito envolvido com os cuidados paliativos nas várias vertentes, interdisciplinar e muito dinâmico. Estou muito contente.

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Todos os dias tem a morte na sua vida, através do seu trabalho. Como é isso, para si?

 

Nunca foi pesado. Há dias mais pesados, obviamente, há casos que nos tocam mais, mas também tenho muita consciência da presença e da inevitabilidade. O que eu sinto é uma extrema realização pessoal. Algumas coisas que, se calhar, são simples conquistas, coisas em que eu sinto que podemos fazer a diferença, já têm um significado muito grande e um retorno muito grande.

 

Sim, percebo o que diz, a questão do retorno. Em Portugal, qual a percentagem de pessoas que morrem no sítio que escolhem? 

 

É difícil estimar, o problema é que não conseguimos cruzar as duas fontes de informação. Sabemos, por exemplo, que 51% da população diz que preferiria morrer em casa, e que cerca de um quarto das mortes ocorrem em casa. Mas não sabemos como é que isto cruza, no fundo. Sabemos, por exemplo, que cerca de 27% da população diz que preferiria morrer numa unidade de cuidados paliativos, mas muito pouca gente morre em unidades de cuidados paliativos. O que estamos a tentar fazer, e neste inquérito de enlutados vamos conseguir, é cruzar as duas fontes de informação para Portugal. Onde é que a pessoa queria morrer e onde é que morreu? De momento, não sabemos muito bem. 

 

Em nenhum dos sítios onde estão? Nem na Holanda? 

 

No Reino Unido, víamos que a maior parte das pessoas já conseguia morrer onde queria, mais de 50% dos doentes, por exemplo, no estudo que fiz, morreu onde quis. Em Portugal, eu diria que seria provavelmente menos, mas não sei. Vamos ver o que é que os resultados nos vão dizer. 

 

Há diferenças significativas entre os locais escolhidos para morrer para adultos e para pediátricos?

 

Sabemos muito, muito menos sobre pediátricos e, normalmente, o que sabemos é a preferência dos pais e não tanto a das crianças, porque obviamente é difícil de perguntar. Antes dos seis anos apenas perguntamos sobre o local onde estão a ser cuidados, nunca chegamos ao local de morte. Nos adolescentes, se eles quiserem, de acordo com a forma como a conversa evolui, se partir deles abordarem isso, nós abordamos. Mas estudos sobre as preferências em pediatria são muito mais raros. Os que existem, dizem que a preferência seria por morrer em casa, condicionada, por exemplo, à presença de irmãos porque há famílias que querem proteger os irmãos dessa vivência. Mas sabemos menos, muito menos.

 

E há diferenças de acordo com a expectativa de longevidade? Ou seja, há doenças com expectativa de vida de um ano, dois anos ou de apenas meses, isso muda aquilo que é a preferência? 

 

De acordo com a fase da doença e a doença em si, há variabilidade. É difícil perceberem-se exactamente os padrões. Essa é uma questão em aberto e foi uma das razões para eu fazer o estudo longitudinal neste projecto, porque há pouca investigação que siga os doentes ao longo do tempo para podermos ver essas mudanças.

 

Os profissionais de saúde influenciam esse processo de decisão? 

 

Imagino que conversar com os profissionais de saúde tenha potencial para modificar, porque as pessoas conseguem perceber melhor as ramificações das suas decisões. Houve um trabalho em que fizemos uma meta-análise dos factores que influenciam, ou não, o morrer em casa. Quando falávamos com profissionais de saúde que estavam a fazer formação sobre este tópico, mostrávamos um modelo que tinha 17 factores, em que alguns desses factores eram barreiras a morrer em casa, e outros facilitadores. Dizíamos aos médicos que quando estivessem a falar com as famílias sobre esse tipo de decisões, era importante identificarem que barreiras e facilitadores é que aquela família tinha, naquele quadro, e passarem essa informação, pesando na balança as barreiras e os facilitadores. Portanto, uma conversa com os profissionais pode tornar mais consciente, mais informada, a decisão sobre um local.

 

Falou de 17 factores. Quais são os factores facilitadores e quais as barreiras?

 

Eu conheço melhor o caso do cancro. São três grupos de factores, mas entre eles, temos factores relacionados com a doença, como a sua duração e toda a parte sintomática; na parte dos factores individuais temos as preferências, obviamente; temos factores sociodemográficos - as minorias étnicas, por exemplo, normalmente morrem mais em hospital do que em casa. Depois temos um grande grupo que são os factores ambientais, que inclui cuidados de saúde, frequência de apoio domiciliário, proximidade de hospitais; também inclui toda a parte do apoio familiar, ser casado, morar com alguém, é facilitador. E depois, factores macro-sociais, que têm que ver com a cultura e as tendências dentro de uma sociedade, por exemplo, na sociedade portuguesa vemos uma tendência para a morte hospitalar já há muitos anos, é das mais acentuadas a nível mundial, e cada vez mais.

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Como é que explica isso?

 

Penso que muito tem que ver com o facto de o sistema de saúde estar muito centrado nos hospitais e a rede de cuidados primários e de apoio domiciliário não estar tão bem desenvolvida, apesar de haver já algumas mudanças, e, portanto, as pessoas sentem muito os hospitais como referência. Acaba por não ser o sistema de saúde a girar à volta do doente, é o doente a girar à volta do hospital.

 

Culturalmente e socialmente, somos ainda um país onde a família está muito presente e parece-me contraditório isso que acabou de dizer, não tinha essa ideia.

 

Ainda durante a pandemia, analisámos dados de 32 países. E na maioria destes países, nos primeiros dois anos da pandemia, vimos um aumento de morte em casa, o que faz sentido, dadas as restrições na pandemia de visitas ao hospital, mas em Portugal isso não aconteceu, continuou a tendência de morte hospitalar e decrescente de morte em casa. Mesmo nessas circunstâncias, as pessoas recorriam ao hospital, cada vez mais. Não no cancro, porque no cancro vimos uma inversão.

 

As pessoas necessitam dos cuidados domiciliários disponíveis de domingo a sábado. 

 

E fora de horas. É quando acontecem algumas crises. E mesmo que não aconteça uma crise, as pessoas não sentem segurança se não souberem que podem telefonar a alguém que dê apoio, mesmo que seja à distância. Com a pandemia, já estamos muito mais habituados a isso, portanto, eu tenho esperança de que as coisas comecem a mudar. Por exemplo, desde 2018, a Fundação la Caixa tem investido nesta área, tem o Programa Humaniza, com 11 equipas de apoio psicossocial e mais 5 equipas domiciliárias de cuidados paliativos no país, a apoiar pessoas com doença avançada. A par do investimento público, que tem sido pouco, também é bom ver outras formas de dinamizar e fazer crescer o apoio nesta área. A Gulbenkian é também muito importante, há uns anos, por exemplo, financiou, durante três anos, dez equipas de cuidados paliativos domiciliárias.

 

O que falta, em Portugal, para tornar viável o desejo de as pessoas morrerem em casa, como pelo menos 51% da população desejaria?

 

A tipologia de apoio que está mais carente é a do apoio domiciliário, de forma sustentada, e teria de ser feito com equipas disponíveis 24 horas, sete dias por semana, porque isso é fundamental para que as pessoas sintam confiança e segurança. Também importante, é haver alternativas integradas que estejam acessíveis às pessoas, com percursos organizados para lhes serem prestados os melhores cuidados possíveis. Isso pode ser feito com esta nova organização em unidades locais de saúde; se os serviços funcionarem de forma mais integrada, será uma enorme mais-valia para as pessoas em fim de vida, porque é quando as crises mais acontecem. 

 

Há diferenças entre os cuidados paliativos de um fim de vida por velhice e um fim de vida associado a uma doença mortal, como o cancro? 

 

Sim, eu acho que a morte por cancro é uma morte muito caracterizada. Hoje em dia, penso eu, cada vez mais vai ser, com as possibilidades e os novos tratamentos a surgirem, muitos deles com efeitos secundários bastante agressivos. É uma morte mais sofrida por causa disso, é algo que me preocupa e que tenho também estudado, a agressividade dos cuidados oncológicos em fim de vida, químicos até às últimas semanas de vida, cirurgias. 

 

Sim, para salvar o impossível. 

 

Salvar o impossível, com grande impacto na qualidade de vida. Portugal tem um nível muito elevado de agressividade dos cuidados oncológicos em fim de vida. Nós fizemos um estudo nacional e vimos que 71% dos doentes oncológicos em final de vida passa por algum tipo de agressividade de cuidados nos últimos meses. E isto é muito elevado. E, portanto, esta ponderação é extremamente importante porque as pessoas, no fundo, morrem pior.

 

Mas nem sempre é bem aceite pela família ou pela equipa médica, quando um paciente diz, chega, não quero mais. 

 

Vamos começar a ver mais pessoas com mais informação e a querer decidir mais por elas próprias, mas ainda temos uma cultura muito centrada em “o médico sabe”. Mas também é difícil para as pessoas assimilarem toda a informação e decidirem por elas próprias. Tem de ser uma decisão apoiada, é difícil sabermos quando é que devemos parar de investir.

 

Somos um dos países onde as pessoas menos fazem o testamento vital e para o fazer é preciso pensar no que se quer. Isso poderia mudar o prolongamento destes tratamentos?

 

É difícil pensar nessas questões, acho que a forma mais fácil de pensar nisso, de facto, é quando não estamos doentes, mas depois também não temos a realidade à nossa frente. Mas penso que sim, falando e digerindo a informação, vamos fazendo algumas mudanças culturais importantes.

Porto, 4 de Abril de 2025

Entrevista realizada por Alexandra Coimbra

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