with
Howard Levine, Ofra Eshel, Riccardo Lombardi
Joshua Durban, Anne Alvarez, Avner Bergstein
Judy K. Eekhoff, Robert Caper, Leopoldo Bleger
Sebastian Thrul, Steven Jaron
Teresa Abreu & Csongor Juhos

FREE ASSOCIATION LISBON
Psicanalista

Manuel Matos
Quem é o Manuel Matos?
Ora bem, o Manuel Matos tem várias dimensões, de pai, de avô e de psicanalista. Dificilmente as separo.
Em primeiro lugar, não sei bem porque é que vim parar à psicanálise. Sei porque é que vim parar à psicologia. A complexidade do funcionamento mental foi qualquer coisa que me intrigou desde miúdo e me motivou a tentar perceber. Eu não sou de Lisboa, nasci em Porto de Mós, na época difícil do pós-guerra, com muitas privações, numa sociedade centrada e controlada pela religião e pela ditadura. Na minha infância, fui sempre muito revoltado e, portanto, procurei sempre tentar perceber as coisas. A revolta terá sido o meu escape anti-depressivo.
Acho que o passo decisivo na minha vida ocorreu quando fui para Paris, aí trabalhei, estudei e entrei em contacto com o meio académico. E fiz um início de primeira análise, que interrompi, porque se deu o 25 de Abril e as questões identitárias foram mais fortes do que o meu, soi-disant, bem-estar em Paris.
Depois, iniciei aqui uma análise que foi uma má análise, de três anos e pouco. Foi um grande transtorno na minha vida, mas ao mesmo tempo foi uma grande sorte, porque conheci, entretanto, um outro psicanalista, o doutor Mário Casimiro, que recordo com muito afecto e muita saudade. Essa segunda análise que fiz foi uma análise didáctica, depois entrei no Instituto de Psicanálise. Fiz toda a trajectória, candidato, membro associado, titular, etc. Bom, isto, digamos, na parte psicanalítica, que podemos retomar em seguida.
Mas há um acontecimento que cruza aqui a questão da psicanálise com a minha carreira académica. Eu fiz um mestrado, e estava num troisième cycle, em Paris, na Sorbonne, quando regressei a Portugal, mas antes de regressar conheci o Doutor João dos Santos, num Congresso, em 1977. Em Portugal, concorri para Assistente na Faculdade de Psicologia de Coimbra, onde estive um ano. Entretanto, concorri para Lisboa, fui o primeiro classificado e entrei como assistente de João dos Santos. Mas quem é que estava lá como assistente? Uma psicanalista, que eu não sabia quem era, mas a minha entrada retirou-a automaticamente da posição em que ela estava, porque eu entrei na carreira académica e essa pessoa estava lá como convidada. Acontece que ela era a minha psicanalista. Já imaginou?
Creio que isso contaminou completamente aquela análise que, ao fim de três anos e meio, terminou de um dia para o outro, com uma interrupção do género: “Terminamos a análise, hoje, aqui.” Há erros que se fazem na psicanálise que me ensinaram muito. Com ela, aprendi que há coisas que nunca se podem fazer a um analisando. Portanto, isto foi um trauma desorganizador, mas foi também a primeira vez que eu vi que tinha estrutura mental suficiente para não ter enlouquecido. Esperei um tempo, e fiz depois análise com o Mário Casimiro.
Mas voltemos então atrás. Na carreira académica percorri todos os escalões, assistente estagiário, assistente, professor auxiliar, professor associado, fui até à agregação e, entretanto, reformei-me. Foram coisas que fiz sempre com gosto, e isso é muito importante. Acho que sou um homem de sorte, porque nunca me levantei com aquele sentimento, “Que chatice, tenho de ir trabalhar”.
Casei pela segunda vez com muito gosto, porque me apaixonei pela minha mulher, que foi a única paixão, verdadeiramente, que eu tive. Tive a paixão pelo nascimento dos meus filhos. Tenho a paixão de ter uma filha que é psicanalista, nossa colega, doutorada em Paris.
Portanto, a minha vida foi assim, entre Paris, Lisboa, a cultura francesa, a academia francesa, a academia portuguesa, o Instituto de Psicanálise, a psicanálise, etc. Isto foi, talvez, a melhor maneira de falar de mim. Quanto ao resto, acho que é banal, sou um homem como todos os outros, que gosta da família. Gosto de chegar a quinta ou sexta-feira e desligar-me da cidade e ir com a família para o campo, onde tenho uma casa com todo o conforto. E passo a minha vida aqui, no consultório, junto dos meus livros, do meu divã e com o meu trabalho.
Falou de um aspecto de que quase ninguém fala: nem todo o trabalho que os psicanalistas fazem é igual e há trabalho que pode ajudar, como há trabalho que pode não ajudar.
Exactamente.
Como disse, já estava com uma estrutura suficiente para não enlouquecer, mas às vezes as pessoas podem estar frágeis.
E eu fiquei bastante fragilizado. É coisa que não se faz. A Alexandra é colega e devo dizer-lhe que não deve haver nada mais rasgador de vida mental do que um psicanalista dizer: “A sua análise pára aqui.”, e você pergunta: “Mas pára, porquê? Mas quando então, vamos pensar?”. E ela dizia: “Não, não, pára aqui”. Só o Amaral Dias sabia e o Coimbra também, nunca falei disto a mais ninguém.
Às vezes, os psicanalistas deveriam pensar um bocadinho e, em vez de andarem a estudar o acting na perspectiva de A, B, C ou D, deviam ver aquilo que fazem. Mas foi óptimo, porque eu aprendi com tudo isso e aprendi aquilo que não se deve fazer. Eu não ouço pacientes em função de teorias que tenho na minha cabeça, sou suficientemente capaz de me abstrair e de privilegiar, sobretudo, a pessoa, a circunstância. E tenho sempre presente que a contratransferência pode muito bem preceder a transferência. E que, mesmo aquilo que ocorre na transferência, não ocorre simplesmente por causa da pessoa, ocorre por causa da relação. A psicologia, a psicoterapia, a psicanálise é assunto de duas pessoas. São duas pessoas que estão ali.
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Sem o dizer dessa forma, fala de a relação analítica, ou terapêutica, ser uma relação assimétrica, na qual se estabelece uma ligação emocional e a necessidade de termos cuidado com a pessoa que está connosco.
Obrigatoriamente assimétrica. E isso não pode ser negado, porque as correntes ditas democráticas, que tentam invadir um pouco o pensamento psicanalítico, querem negar a realidade e a necessidade da assimetria. Mas isso seria a mesma coisa que eu dizer ao meu neto que não sou avô dele ou dizer à minha filha que não sou o pai dela. Enfim. Há pessoas que gostam de ficar bem na fotografia, mas no fundo creio que têm receio de enfrentar a responsabilidade que têm na relação.
Ora, efectivamente o paciente espera da nossa parte essa assimetria, uma assimetria de respeito, de colaboração, sem autoritarismo, com a autoridade do conhecimento, com compreensão, com cabeça, com afecto, com emoção, com relação, com dúvida, E essa foi a grande vantagem e a grande aprendizagem que eu tive com o Mário Casimiro. Com a minha mãe, o meu pai, os meus irmãos, sempre tive um prazer muito grande em escutar. E depois pensava. Acho que isto teve muito que ver com o meu avô materno, que era um homem analfabeto, mas que eu ouvia com muita atenção. Saía com ele pelos campos fora quando era miúdo, era um prazer para mim, ia para a rega, ia a cavalo na burra, ficava encantado com ele. E ele gostava muito de mim.
Mas há um acontecimento, que eu vou publicar numa pequena autobiografia, numa colectânea de algumas conferências que fiz até agora. E esse acontecimento marcante na minha vida deve ter sido aquele que mais me empurrou para reflectir e tentar compreender as coisas da vida mental. Eu teria um ano, 14 meses, creio eu, quando faleceu um irmão meu, que tinha dois anos e pouco. Foi um drama gigantesco na minha família, uma catástrofe.
Só agora, depois de escrever sobre isso é que consigo falar, mas tenho uma certa dificuldade, porque me emociono e a voz fica embargada. Esse meu irmão chamava-se João. Não sei porque é que o João morreu aos dois anos e tal de idade, que era a idade que ele tinha. Quem me contava esta história era a minha avó materna, que me dizia que a ligação do meu pai a esse irmão era tão grande que, quando o menino morreu, tiraram o caixão para a rua e o meu pai, por duas vezes, foi buscar o caixão e pô-lo na sala. E diziam-lhe: “Então, Francisco, não chores, porque já tens ali outro menino.” O outro menino era eu, e creio que devo ter passado por um momento muito crítico, do qual não me lembro, mas se calhar também não me esqueço. Parece que fui baptizado à pressa, ou seja, deviam estar com medo que eu morresse também. Há aqui uma curiosidade: quando estávamos à mesa na hora das refeições eu contava as pessoas. Estavam lá todos e eu achava sempre que faltava alguém.
Quando o André Green escreveu sobre “la mère morte”, eu percebi o texto quase antes de o ler. Estava a ler e a ver o rosto da minha mãe cada vez que se falava do João, que tinha morrido. Portanto, eu creio que os dramas, o sofrimento, a experiência de vida obrigam-nos a questionarmos a nossa vida mental. Tudo isto contribuiu para eu querer saber o que se passa e para ter também, dentro de mim, um grau de tolerância muito grande em relação às pessoas, em relação aos erros. É mais ou menos isto. Enfim, já lhe contei uma coisa muito importante da minha vida e da terra onde nasci.
Muito importante, e é isso que diz, não se lembra, mas também não se esquece.
Sim, não me lembro, mas não me esqueci. Emocionamo-nos porque não conseguimos pôr em palavras aquilo que sentimos. A palavra é o tradutor da mente.
Por vezes, é difícil para as pessoas perceberem que há memórias que podem ficar dentro de nós sem serem memórias. Nós, psicanalistas, entendemos isto bem. Às vezes, as pessoas dizem que têm essa dificuldade em perceber que houve acontecimentos dos quais não têm memória, mas que na realidade são uma marca, estão inscritos.
É verdade. Ficam inscritos no corpo. É uma coisa muito importante, esta dimensão sensorial. Proto-representativa, porque não acedeu ainda à representação, mas que governa muito mais a nossa vida do que aquilo que podemos imaginar. E tem, de facto, essa característica que é, nem nos conseguimos lembrar, nem nos conseguimos esquecer. Quando se fala do conceito de après-coup, é isso mesmo que aí está, não nos conseguimos lembrar, não nos conseguimos esquecer, nem tão-pouco, às vezes, conseguimos trazer à palavra. O après-coup surge quando aquilo que é pré-verbal, normalmente traumático, acede à palavra.
As coisas de que nós não nos lembramos e de que não nos conseguimos esquecer, são proto-representações, que à posteriori, vêm constituir todo o magma representacional. E a passagem, digamos, deste aspecto sensorial, proto-mental, para a mentalização e para as representações é algo que fazemos a vida toda. Mas é também o trabalho do psicanalista, com os seus analisandos, isto é, que os analisandos fazem com a nossa ajuda. Há coisas que eu não seria capaz de compreender nos pacientes se não tivesse passado por elas.
Sim. Por isso é que todos nós temos mais facilidade com algumas pessoas, até com algum tipo de pacientes, do que com outras, não é?
É mesmo isso. As patologias da depressão, as patologias limite são disso um exemplo. É um prazer trabalhar com tudo isso, não tenho qualquer dificuldade e são quase sempre pacientes nessa linha que me procuram. Acho que são pacientes que sentem que existe uma sintonia entre as suas vivências e as nossas vivências, muito mais do que sobre o nosso grau académico, ou o nosso estatuto dentro de uma associação de psicanálise.
Sim, nós precisamos de ter o saber, mas não de estar com o saber no gabinete.
Sim, o conceito “sem memória”, de Bion, é muito importante, e é difícil, porque temos de ouvir em função daquilo que é da escuta, que vem dali, em vez de estarmos a ouvir os nossos conhecimentos prévios que podem ser um entrave ao conhecimento verdadeiro da pessoa.

Teve mais irmãos?
Sim, tive um irmão mais velho do que eu, farmacêutico, que já faleceu, uma irmã mais velha, que se apaixonou e casou com um padre jesuíta, ambos já falecidos, e tenho duas irmãs mais novas. Cada um fez trajectos completamente diferentes. Nenhum deles foi para a psicologia, nem para a psicanálise. A minha mãe achava que eu tinha boa voz e que devia cantar, eu cá nunca pensei que podia cantar. Mas há uma coisa que não fiz na minha vida e que gostava muito de ter feito, gostava muito de ter aprendido música e de ter sido compositor, gosto muito de música clássica, ouço, envolve-me. Mas há sempre coisas que não conseguimos fazer na vida.
Ficam para trás. Como é que foi aceite familiarmente esse seu desejo, a sua vontade de ir para psicologia?
Não houve nenhuma oposição, nem nenhuma incitação, porque os meus pais estavam na aldeia e lá continuaram. Quem teve de fazer a vida a estudar sozinho, com orientação do meu irmão mais velho, ou com a minha própria orientação, fui eu, que tomei a iniciativa de fazer estudos secundários em Lisboa e de, um dia, partir para Paris e ir fazer a minha vida.
Como surgiu a ideia de ir para Paris?
Bom, eu não fui para Paris em circunstâncias normais. Cumpri serviço militar em África, na Marinha. Havia naquela altura bastantes pessoas que desertavam para não irem às Forças Armadas, mas eu fiz a guerra durante dois anos e, quando cheguei, queria entrar no ensino universitário. E não conseguia, não conseguia por limitações de tempo, de ser necessário ter um pai e uma mãe com dinheiro para mandarem os filhos para o ensino superior. Ora, não era essa a minha realidade. Eu fui para África com 24 anos, vim de lá com 26, já tinha família constituída, queria fazer estudos superiores e era extremamente difícil fazer aqui.
Além disso, obviamente, eu nunca concordei com o salazarismo, nem com nada disso. Recordo-me de ser adolescente e ouvir a Rádio Moscovo. Ouvia as vozes daqui, do emissor de Salvaterra de Magos, da RARET, como se vê no filme “Glória do Ribatejo”, ouvia o Manuel Alegre, da Argélia. Lembro-me do avião da LUAR que andava aí pela cidade de Lisboa a espalhar panfletos. Recordo-me perfeitamente de ver os carros da polícia com bombas de água azul para nos marcar quando fazíamos manifestações, nomeadamente no Rossio. Não se podiam reunir três ou quatro pessoas, porque toda a gente desconfiava, pela paranóia, de que havia um que era da Pide. Portanto, não havia clima para estudar nem para nada, de modo que eu pensei que devia ir-me embora.
Nunca gostei de inglês e, na altura, o francês era a língua que se estudava em Portugal. Fiz o quinto ano da Alliance Française e em seguida entrei na universidade, e foi uma grande alegria para mim. Aliás, podia ter sido assistente do professor Oleron na Sorbonne. Mas digamos, a minha identidade falou mais alto e vim embora, quando chegou a altura, disse: “Portugal já é um país livre, houve o 25 de Abril, vou regressar”.
Como foi a sua experiência militar?
A minha experiência militar foi mais uma daquelas experiências em que pensei muito naquilo de que os homens são capazes. Eu estava num navio de guerra que tinha a função de impedir a passagem de material de guerra vindo do Senegal para o interior da Guiné através do rio Cacheu, que divide a Guiné em duas, e que é um rio sinuoso, grande, um rio lodoso, perigoso em termos de animais, de fauna. Foi dramático, porque eu vi lá morrer alguns colegas. Tive a sorte de não morrer, nem ser ferido, nem ter apanhado paludismo. Sentia que era uma guerra perfeitamente injusta.
Estive no navio onde estiveram o Alpoim Calvão e o General Spínola. Passávamos dias suficientemente bons, no navio, em Bissau, e depois eram 15 dias seguidos no Rio Cacheu, de vez em quando mais calmos, outras vezes a tocar a posto de combate.Tive a sorte de nenhuma bazuca me vir parar acima. Tive uma boa relação com o comando e com todas as pessoas de uma maneira geral.
Quando se fala de crime de guerra, os portugueses deviam estar calados, porque quando há guerra, a guerra já é um crime em si. E vi coisas e ouvi descrições que, às vezes, só mais tarde é que eu me lembrava delas. Recordo-me de uma senhora guineense, negra, que foi raptada pelos fuzileiros, trouxeram-na para bordo. A senhora vinha grávida, com o marido, e os fuzileiros não tiveram qualquer respeito. Começaram a exibir-se, a fazer-lhe carícias na barriga, a tirar fotografias como se tivessem ido à selva e tivessem encontrado um animal raro. Vi coisas horríveis. Houve guineenses que foram presos, levados para o porão e, oficialmente, os responsáveis pelo navio tinham a obrigação de cumprir os critérios de que, sendo prisioneiros, não se lhes devia tocar, mas os fuzileiros iam lá e martirizavam esses indivíduos.
Recordo-me de outra situação, num domingo de manhã, em que dois ou três fuzileiros saíram num bote Zebro e foram a uma clareira no rio, onde é mais perigoso. Devem ter matado um ou dois indivíduos e quando chegaram a bordo, fizeram uma descrição como se tivessem ido à caça. Eu insurgi-me com aquilo tudo, levantei a voz. E, houve um colega meu que disse: “Matos tem calma, porque se isto chega um pouco mais alto, tiram-te do navio e levam-te a Bissau e a Pide está lá, desfazem-te completamente”. Tive de me acalmar, porque não podia fazer justiça por mim próprio, mas tive um sentimento de vitória muito grande. Quando regressei e saí da Marinha, encontrei esse indivíduo no Arsenal do Alfeite. Quando ele me viu, retirou o olhar e fugiu, porque sabia bem que eu era testemunha daquilo que se pode chamar um crime de guerra, de uma atrocidade, qualquer coisa de inumano.
Portanto, está a ver, em cima do sofrimento da vida, apanhar estas coisas. Tudo isso contribuiu para pensar: “Vou desaparecer daqui para fora”. É um pouco isto.
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Passar por isso e a seguir arrumar tudo e continuar ligado às coisas boas e a acreditar nas pessoas não é simples. Esse sentimento de revolta, sente que o tem ajudado ao longo da vida?
Bom, tem trilhado a minha vida, tem ajudado e tem prejudicado. Quer dizer, se eu não tivesse um sentimento de revolta, seguramente não teria acreditado naquele movimento de criar uma certa organização dentro da Sociedade Portuguesa de Psicanálise [SPP], porque eu sentia que aquilo estava mal. E não teria criado esta associação, da qual fui o primeiro fundador e Presidente durante oito anos, a Associação de Psicanálise Relacional. Mas podia estar instalado comodamente, podia ter sido presidente da SPP, porque não, os outros foram, eu seria também.
Houve uma coisa que me revoltou muito, na Sociedade Portuguesa de Psicanálise. Gostaria de um dia falar com alguns colegas para lhes explicar coisas que eles não sabem. Ali, só os didactas é que podiam ser presidentes. Eu e o Rui Coelho, que fomos colegas de curso, estávamos à beira de passar de titulares a didactas e, se não estou em erro, havia outra colega, a Manuela Fleming. E quatro ou cinco dias antes de passarmos a didactas, o Presidente da Comissão de Ensino decidiu que agora não eram dois anos de espera para passarmos a didactas, eram quatro. Nós já tínhamos dois anos como titulares e já tínhamos dado, e continuávamos a dar, formação no Instituto.
Isto foi, digamos, a gota de água que fez transbordar aquelas guerras que apareceram ali assim, porque a questão era que se o Manuel Matos e o Rui Coelho fossem didactas, constituía-se uma lista alternativa, ou para a Comissão de Ensino, ou para a Direcção, e eles não queriam que existisse essa lista alternativa. Fui apanhado no meio disso tudo, por força das circunstâncias. Claro que me revoltei contra a situação, não podia ter ficado calado. Foi vantajoso na medida em que criei outra Associação de Psicanálise, e é preciso ter cuidado para que ela se mantenha e não aconteça ali aquilo que acontece muitas vezes nas associações, mas enfim, foi bom e foi mau, foi as duas coisas.
Foi difícil para os candidatos que tinham entrado nessa altura.
Pois, é muito importante que diga isso, porque quem fez esse movimento, esqueceu-se do sofrimento que tiveram esses candidatos. Vou dizer-lhe uma coisa que tenho em mente, eu sofri as consequências do pós-guerra, conheci a guerra e a dureza da guerra, conheci a imigração e a dureza da imigração, mas o que foi mais traumático para mim foi o Comité da IPA [International Psychoanalytical Association] que veio a Portugal, na altura, chefiado por Jaqueline Amati Mehler. Essa senhora não veio com o intuito de compreender nem a SPP, nem as pessoas que tinham pedido uma intervenção do Comité da IPA. Em meu entender, ouviu-se a ela própria, a quem a tinha informado mal. Houve ajuste de contas com pessoas que nada tinham que ver com a psicanálise ou com a SPP. A minha experiência com a IPA foi péssima, e digo-lhe, a IPA precisa de existir, é bom que exista, tem de haver normas de formação, respeitadas, porque se assim não for, as pessoas querem ser psicanalistas sem nunca terem feito uma análise, sem nunca terem feito formação. Mas quando o espírito de “seita” ou as ideologias predominam, a psicanálise está em risco.
Parece que temos uma dificuldade em pensar em termos institucionais, o que é melhor para a instituição, o que é melhor para as pessoas que fazem parte dela, como podemos crescer, construir, evoluir.
Sim, mas há um problema de base. Como sabe, há três modelos na formação psicanalítica. O modelo mais difícil e praticamente impossível de seguir é o modelo Eitingon, porque começar uma análise com um didacta, começar a fazer uma análise a um analisando e começar ao mesmo tempo uma supervisão, é impossível. Só era possível em tempos, para meia dúzia de pessoas que tinham muito dinheiro e que podiam dedicar-se a tudo isso. Portanto, o modelo de Eitingon está destinado a ser subvertido.
O modelo francês é, do meu ponto de vista, o mais exequível, porque não é preciso ser didacta para que o analisando venha a ser candidato. E depois também não são precisas quatro sessões por semana, são precisas três e, portanto, eu estava a tentar também que a Sociedade Portuguesa de Psicanálise fosse clara acerca do seu modelo, porque numas circunstâncias era um modelo de Eitingon que seguia, e noutras era o modelo francês. Houve uma vantagem para a Sociedade Portuguesa de Psicanálise quando nós fizemos isto, foi o que eu vi depois nos estatutos, e o que lá estava era o modelo francês, em que se a colega é psicanalista, então o seu analisando pode candidatar-se à Sociedade Portuguesa de Psicanálise.
Há dois extremos nas associações de Psicanálise que são maus. O primeiro é o de chamarem candidato a uma pessoa que entra na formação; há algum tempo, uma colega apresentou-me um candidato que era, nem mais nem menos, um homem doutorado, em vias de fazer a agregação e em vias de ser promovido a catedrático. O outro extremo é que uma vez que uma pessoa é titular - porque só há duas categorias depois do candidato, o associado e o titular - se tem depois uma função didáctica, então chamam-lhe didacta. Mas os didactas na Sociedade Portuguesa de Psicanálise, que eram sete quando eu vim de Paris, em 1979, eram nove, creio, em 1991. Ou seja, quem queria entrar na Sociedade Portuguesa de Psicanálise tinha de passar por um didacta. Os didactas estavam cheios de analisandos que queriam ser psicanalistas e os outros eram psicanalistas, mas os seus analisandos não entravam no Instituto de Psicanálise e, portanto, isto era qualquer coisa de revoltante.
A Sociedade Portuguesa de Psicanálise também não soube naquela altura parar e pensar o modelo. Claro que esse modelo depois foi instaurado, depois do Visiting Committee, mas houve muitos erros. Olhe, a começar pelo Presidente da IPA, que nos disse o seguinte: “Vocês, que são um grupo que se opõe à Direcção, demitem-se da Sociedade Portuguesa de Psicanálise”. Isto não era possível porque se a pessoa se demitisse da Sociedade, saía da IPA. Foi a Manuela Fleming que enviou uma carta ao Presidente dizendo que nós não nos podíamos demitir, tínhamos de nos retirar, simplesmente. E eu enviei uma carta na qual, primeiro, não me demiti de membro da Sociedade Portuguesa de Psicanálise e, segundo, em função disso, me retirava. Depois é que o Presidente da IPA emendou a palavra e veio a escrever que nós nos devíamos retirar e não nos devíamos demitir. Mas a Direcção da altura entendeu que nos tínhamos demitido e assim, apesar de pagar quotas à SPP, à FEP [Federação Europeia de Psicanálise] e à IPA, fui excluído da IPA. Já pensou? Quem estava na Direcção da SPP na altura sabe bem de tudo isto. E não houve inocentes nesta história. Um dia escreverei tudo isto mais em detalhe, como contributo à história da psicanálise no nosso país.

Ser psicanalista e ser um bom gestor não é equivalente.
É um grande problema, efectivamente. Enquanto psicanalistas, as pessoas entendem-se, têm ética entre si, mas quando chega a gestão das associações de psicanálise, está tudo estragado. Sabe que reuni 11 pessoas à volta de uma mesa para formarmos a Associação de Psicanálise Relacional e houve uma coisa que lhes disse: “Se alguém quiser ajustar contas com colegas, é melhor não aderir”.
É esta dificuldade que os psicanalistas têm quando chegam às questões administrativas, acabam por ser iguais, ainda, às outras pessoas. Começa a haver influências, quem é que está de acordo com quem, e por mais que não queiramos, acabamos por repetir atitudes um bocado centradas na clivagem. Ou sim ou não, amigo ou inimigo. E as ideologias apropriam-se da teoria e da técnica.
Quase como uma fidelidade ao analista ou ao supervisor, quando eu posso dizer que gostei imenso do meu analista ou do meu supervisor e não estar de acordo com ele do ponto de vista institucional, e isso não é uma traição, nem é ter achado menos importante o trabalho que fiz com essa pessoa.
Há também, ao nível das associações, correntes de pensamento que, às vezes, começam a contaminar ou começam a ser o início de clivagens, De uma maneira geral, não há grande rivalidade, as associações integram perfeitamente o modelo kleiniano, o modelo freudiano etc., mas ultimamente há um risco, no meu ponto de vista, na psicanálise no nosso país, e que vem, não da psicanálise clássica, mas justamente da psicanálise relacional, e que é uma tendência a esquecer aquilo por onde começámos: o inconsciente, a pulsionalidade. Depois, em vez de uma atitude crítica sobre a obra de Freud, tende-se mais a uma atitude de desconstrutividade. E depois começam a ser envolvidas questões de ideologia misturadas com a psicanálise. Entra-se numa indiferenciação entre psicoterapia e psicanálise, como se não houvesse diferença de grau de profundidade. Todos são iguais a todos, a diferença não é suportável e, portanto, há correntes de pensamento que depois também vêm prejudicar, digamos, a psicanálise.
Fala-se, há muito, da crise da psicanálise, sempre se falou da crise da psicanálise, verdade seja dita, já no tempo de Freud. Qual é a sua opinião sobre isso?
Crise na psicanálise? Sim, eu sempre senti que existia essa crise na psicanálise. O problema é quando já não há crise, quando o diálogo acabou. Vamos lá ver, de um ponto de vista interno, das associações, é necessário que essa crise exista, que exista um diálogo, que exista uma adaptação dos modelos que são seguidos, das teorias que vão acontecendo. Penso que esses movimentos telúricos, que às vezes acontecem, são úteis. Agora, a psicanálise também não pode existir independentemente das pessoas que a procuram.
Nós éramos muito mais procurados por questões neuróticas e questões depressivas há umas décadas atrás, hoje, quem nos procura são pessoas que tiveram relações precoces, interrompidas, descontinuadas, pessoas que têm uma vinculação insegura, dentro das patologias limite, se não são, andam lá próximo. E isso altera o modo de intervenção, ou seja, não posso propor o divã a uma pessoa com uma patologia limite, a pessoa precisa de uma relação frente-a-frente e, de certo modo, em função dessas patologias, a psicoterapia toma a dianteira em relação à psicanálise. Portanto, não se pode pensar a crise na psicanálise independentemente de quem a procura, das pessoas que a procuram.
Quem procura uma psicoterapia quer resolver muitas vezes problemas pontuais, e a compreensão das causas que levaram a esses problemas é resolúvel facilmente no face-a-face, a duas sessões por semana, durante dois ou três anos. Mas quem quiser fazer verdadeiramente uma investigação da mente tem de passar para o divã, porque no face-a-face as defesas estão muito mais vivas e, portanto, a pessoa não consegue ser autêntica com ela própria.
Sob esse ponto de vista, o divã é um dispositivo, digamos, insubstituível. Porque a pessoa entrega-se a ela própria e vai buscar muita, muita coisa, e vai investigar sobre a própria mente. E é isso que uma psicanálise permite, e nisso, a psicanálise é insubstituível. E é diferente da psicoterapia, ainda que de inspiração psicanalítica; até porque exige conhecimento e manejo de aspectos transfero-contratransferenciais. Mas quem não sabe lidar com a diferença nega-a. E ver psicanalistas a negar a realidade é um bocado triste.
Na Associação de Psicanálise Relacional, eu insisto, pela minha identidade de psicanalista, que a psicanálise é uma coisa e a psicoterapia é outra e há pessoas que acham que é a mesmíssima coisa, e há diferença. Aqui está um ponto difícil, que pode ter consequências, porque as pessoas começam a dizer, é, não é, e criam-se clivagens e separações e rupturas. O que vale é que a psicanálise resiste aos psicanalistas.
Muitas vezes as pessoas procuram uma psicoterapia para resolver um problema e a seguir são também capazes de perceber no processo que querem ir mais longe.
E é muito frequente, passam do face-a-face ao divã.
Como diz, as razões que levam as pessoas a procurar-nos na actualidade mudaram. Hoje, cada vez mais, as pessoas procuram-nos, não por questões relacionais com a família, filhos, maridos, etc, mas por questões laborais.
É que hoje as pessoas são postas na rua de um dia para o outro, há hoje uma prepotência por parte das empresas, admitem uma pessoa, mas depois, de um momento para o outro, despedem-na, São empresas sem rosto, anónimas. Isso pode acontecer a qualquer pessoa, que obviamente, precisa de alguém que a ajude. E se nós estivermos a pensar na neurose ou na depressão, ou na perspectiva da A, B ou C, sem termos esta escuta sobre a realidade atroz que está a acontecer com aquela pessoa, não percebemos nada e nem percebemos quanto essa angústia a pode destruir completamente, a ela e à família.
Pensamos na vida mental e no funcionamento psíquico, mas a realidade externa tem de estar presente.
Absolutamente, sempre, sempre.
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Alguns colegas não concordam.
Alguns não concordam. Eu situo-me sempre nesta tripla realidade, sempre, e nisto o tradutor das obras de Freud, James Strachey, ensinou-me muito num trabalho dele, de cerca de 1930, ensinou-me a ter sempre presentes três realidades, a realidade do passado, a realidade actual e a realidade transferencial. Sempre, é uma constante. Numa análise, é relativamente fácil apanhar isto, numa psicoterapia é mais difícil, porque o dispositivo é diferente e porque a análise da transferência e a análise da contratransferência precisa de uma distância que o face-a-face não permite.
Estou a lembrar-me de uma pessoa que me consultou, um bocado depressiva, tinha acabado de separar-se e durante o processo psicoterapêutico percebe que casou com uma pessoa retirada da relação e apercebe-se que a mãe era, também ela, uma mulher retirada da relação. E disse: “Doutor, não me diga que tem alguma coisa a ver, o casamento que eu fiz, com a relação que tive com a minha mãe”. Respondi-lhe o seguinte: “há modelos, há vínculos, há estilos, há coisas que nos marcam. Não fez de propósito, fez aquilo que foi possível fazer, mas a sua história talvez tenha falado mais alto do que você”.
Faz-me lembrar uma pessoa que segui durante anos, começou por ser um apoio pedagógico, passou para uma psicoterapia e terminou numa psicanálise. E esta pessoa fez realmente mudanças extraordinárias a vários níveis, mas as relações amorosas falhavam sempre, e o meu supervisor disse-me uma coisa de que nunca me esqueci: “a ruína narcísica é tão grande, que não é capaz de escolher um bom objecto”.
Sabe, disse aí uma coisa que para mim é muito importante, quando as pessoas não são capazes de uma relação sexual, primeiro, as pessoas não são capazes de uma relação, e eu poria ponto e vírgula, nomeadamente sexual. Encontro isto todos os dias, são problemas relacionais que estão a montante, que vêm contaminar a genitalidade e a relação funcional, para onde remete a sexualidade. Porque a relação sexual é uma relação de uma intimidade e de uma relação tamanhamente fusional que, ou a relação a montante foi estruturante e a pessoa pode perder o limite sem que isso represente perigo, ou então o medo de perder o limite faz com que a pessoa se defenda, ou seja, a ruína, aí, está a nível relacional. E nisto, tanto na SPP como na Associação de Psicanálise Relacional, ou noutra, a perspectiva relacional, a tónica na relação e na vinculação primária é fundamental. Se nós não compreendermos isso, estamos um bocado a leste do paraíso. E nesta relação, obviamente a relação primária é incontornável.
O que é que eu transportei para a Associação de Psicanálise Relacional? Sou o responsável pela formação, pus os seminários todos de pé, tanto os clínicos como os de psicopatologia psicanalítica, como a teoria técnica. Transportei tudo o que sabia na linha da psicologia do desenvolvimento, da psicologia das relações de objecto, da psicanálise, está tudo ali, nos programas e nos autores.
As pessoas têm muita dificuldade em entrar em contacto com as coisas mais remotas, mais pulsionais e, às vezes, arranjam assim subterfúgios mais superficiais, coisas mais interactivas, chamam subjectividade ao inconsciente e assim sucessivamente. Ou acham que as coisas inconscientes são apenas aquelas que se recalcaram. Esse é um ponto muito negativo da psicanálise relacional, imaginar que o inconsciente é banal, que a pulsionalidade não existe ou que a vida libidinal é secundária na relação, ou que ela não governa, pelo menos em grande parte, a vida mental.
Não há nenhuma teoria que explique tudo, elas são complementares, mesmo a teoria da pulsão é extremamente mal compreendida, entendem a pulsão enquanto impulso sexual em direcção a, e esquecem-se da dimensão drive, que é a dimensão de movimento em relação a, portanto, tem de haver uma atitude integradora das diferentes correntes do desenvolvimento e daquilo que se criou a partir daí.
E nisto, acho que a Psicanálise francesa está mais perto de nós e muito mais perto do humano. A psicanálise americana, do meu ponto de vista, tem muito medo de tocar na sexualidade, de tocar nas emoções. Às vezes, ouço os americanos, perante uma situação traumática, dizerem “Oh, my God”, mas nem tão pouco lacrimejam, parecem ter medo de que a lágrima venha à superfície. [Risos]
O que pensa que se pode ganhar com uma psicanálise?
Olhe, eu vou dar-lhe uma resposta muito curta, eu acho que uma psicanálise é muito cara. Só há uma coisa mais cara que a psicanálise, que é não a fazer. [Risos]
Penso que uma pessoa que faz uma análise está mais avisada para não cometer determinados erros e para perder a mania da omnipotência. Somos empurrados pelo icebergue do nosso inconsciente, pelo icebergue do nosso passado, que não conseguimos nem esquecer, nem lembrar, e isso é mais determinante do que qualquer outra coisa. Se calhar, sou psicanalista porque perdi o meu irmão quando tinha 14 meses. Não me admirava nada. E tenho uma dor imensa de ele cá não estar para lho poder dizer.
Gosto muito de ouvir uma história e depois ver o que ela representa, o que está por trás. E aqui há uma grande diferença, na psicoterapia, as pessoas agarram-se muito à história no concreto, na psicanálise, agarramo-nos muito mais àquilo que ela representa. E a representação está muito mais perto da verdade e muito mais perto da nossa vida mental. Quem não põe o pensamento em palavra adoece, como o psicossomático, age para dentro, é o acting in. Outras vezes prevalece a acção, é o acting out. E, às vezes, é a alternância entre um ou outro modo de não pensar.
E quando não fica doente, tem uma vida pior do que poderia ter, com menos liberdade.
A liberdade da relação dá colorido à vida, dá ímpeto, dá vontade de viver. Eu costumo dizer que já tenho idade, mas não me sinto velho. Idade, para mim, não é igual a velhice. Tenho hoje um prazer de pensar e de articular o meu pensamento de uma maneira cada vez melhor, talvez melhor hoje do que ontem. E isso pelo prazer que eu tenho nestas coisas. Às vezes, vou daqui para o campo, pego na tesoura de podar e ando lá a podar as árvores, ou uma coisa qualquer, e vou pensando nas coisas que acontecem por aqui, neste gabinete, vou pensando no prazer que tenho do prazer, no prazer do prazer. [Risos]
É uma boa forma de terminar, no prazer do prazer.
Lisboa, 22 de Fevereiro de 2025
Entrevista realizada por Alexandra Coimbra
