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Manuela Fleming

Psicanalista, Porto

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Quem é a Manuela Fleming?

Não é uma pergunta fácil. Tenho feito muitas coisas na vida e sou também a minha história. Bion, um dos meus mestres, deu uma resposta a essa pergunta que eu hoje considero interessante: «Não sou, estou sendo, porque me questiono de forma permanente acerca de quem sou». 

No fundo, de certa forma, todos nós somos sempre muitos…

 

Estamos em movimento. Começando pelo mais fácil, sou psicanalista, sua colega, membro da Sociedade Portuguesa de Psicanálise. Mas não sou só psicanalista, tenho também uma identidade de professora porque o fui na Universidade do Porto, durante muitos anos, e dediquei uma grande parte da minha vida a estes dois caminhos. 

Além da docência na universidade, mais concretamente no curso de Medicina do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, fiz investigação, quer clínica, quer empírica, no Instituto de Biologia Molecular e Celular do Porto; trabalhei durante muito tempo com médicos geneticistas, por exemplo. Posso igualmente dizer que sou escritora, porque escrevi muitos livros de que me orgulho e nos quais trabalhei muito. E penso que chega. 

Como conseguiu conciliar facetas tão diferentes na sua vida? 

 

Por gosto, porque quando se quer, penso que se consegue. Desde a adolescência, habituei-me a conciliar estudos e trabalho. Sou oriunda de uma família com algumas dificuldades, nasci numa aldeia, os meus pais não tiveram estudos e fui muito formada na disciplina do trabalho. Tive esse exemplo nos meus pais, que tiveram uma vida dura, nos meus irmãos, todos eles com histórias de vida com alguma dificuldade; eu sou a mais nova de oito irmãos. Gosto de trabalhar e fiz muitas coisas: fui babysitter, em Paris trabalhei numa cafétéria, onde era serveuse, dei explicações… Sempre tive em simultâneo, digamos, dois caminhos, um académico e outro como clínica, psicóloga clínica ou psicoterapeuta. E depois ainda ser mãe, claro, ter uma família, porque isso foi também uma parte muito importante na minha vida. Foi-se fazendo bem, não guardo um sentimento de esforço.

Trata-se de áreas muito diferentes, a psicologia, a docência, a investigação e a genética. 

 

Como professora universitária, nós tínhamos de necessariamente fazer investigação, fazia parte das nossas funções e atividades como docentes, assim como publicar artigos científicos, em revistas internacionais. Por conseguinte, fui convidada pelo Professor Jorge Sequeiros, geneticista, a colaborar em equipas pluridisciplinares, nomeadamente na área da paramiloidose, conhecida por «doença dos pezinhos». Coordenei nessa altura uma equipa de psicólogos que fazia um trabalho de investigação. Esse trabalho consistia em ver como as pessoas com o risco genético de  virem a apresentar na idade adulta essa doença, porque é uma doença hereditária, reagiam quando era anunciado o resultado do seu teste genético, que se fazia aos 18 anos; ver, portanto, se eram portadores ou não da doença e que impacto psicológico é que isso tinha na pessoa. Mediamos ansiedade, níveis de depressão, e acompanhávamos no início, em que era revelado o resultado, quer positivo, quer negativo, e depois ao fim de três meses, seis meses, enfim, acompanhávamos esses indicadores para vermos se havia necessidade de apoio, intervenção terapêutica ou clínica a essa pessoa e à sua família. 

Muito interessante.

Fiz investigação também na área da adolescência o que me permitiu escrever dois livros sobre a psicologia da adolescência.… Foi uma área em que sempre me senti uma investigadora a pôr hipóteses também no plano da psicanálise, não a dissociava da minha condição de psicanalista. 

Era nisso que estava a pensar, porque me pareciam caminhos distintos.

Não eram, porque eu dava aulas e introduzia a psicanálise aos meus alunos, adaptada a alunos de Medicina, portanto a psicanálise sempre esteve presente na minha vida, em tudo o que fazia.

Hoje temos cada vez menos psicanalistas nas universidades. Como transmitia a psicanálise aos seus alunos? 

Estava a referir-me, por exemplo, às teorias psicanalíticas do desenvolvimento. Autores como o John Bowlby, a Margaret Mahler são, do meu ponto de vista, muito importantes na formação dos médicos, com a criação dos vínculos, a importância do cuidar, a importância da confiança; tudo isso eram conhecimentos que eu ia buscar à minha condição de psicóloga e psicanalista e que introduzia nas minhas aulas. Aquela psicanálise que eu considero pura e dura dos grandes conceitos, nem tinha aplicação muito óbvia na prática médica generalista. 

Eu ensino muito, faço muita formação, dou seminários, tenho uma atividade intensa aqui no Instituto de Psicanálise do Porto, e um dos meus desafios justamente é, ou era, conseguir transmitir aos alunos a dimensão clínica dos conceitos. Por exemplo, a identificação projetiva é um conceito difícil de compreender, mas eu pegava nos meus casos clínicos e mostrava-lhes clinicamente como podíamos identificar se o paciente estava a defender-se através da identificação projetiva, e como trabalhar isso.  

Esse é um conceito muito útil na clínica.

Com certeza. Ultimamente tenho feito sobretudo  seminários clínicos, como o da Teoria da Técnica Psicanalítica. É onde sinto que posso ser mais útil aos meus formandos - é nesta discussão do caso clínico, do material clínico, é justamente ao trazer para a clínica os conceitos teóricos e ao torná-los clinicamente úteis, eficazes.

 

Como surgiu o seu interesse pela psicanálise?

Vou destacar dois acontecimentos, ou duas situações, que eu sinto que me motivaram. Primeiro, quando fui estudar para Paris - por iniciativa própria, aos vinte anos - a psicanálise era qualquer coisa que estava muito presente, nos livros, nos congressos, na universidade, e tive lá contacto com a École Freudienne, mais concretamente com os célebres seminários de Lacan, que eram abertos ao público. Eu era uma jovem cheia de curiosidade, tinha muito entusiasmo por tudo e claro que Lacan me entusiasmava - depois decepcionou-me, e tenho hoje uma opinião muito crítica acerca dele. Mas, na altura, tudo era novo e interessante e ouvia aquilo que ele dizia, embora não percebesse a maior parte das coisas. [Risos]

Devia ser um excelente comunicador.

Claro que sim, e muito teatral. Fazia seminários abertos, todos os estudantes iam. 

Depois, e em segundo lugar, uma coisa mais pessoal: já em Portugal - onde regressei depois do 25 de Abril, porque antes não podia vir - havia um colega meu que fazia psicanálise. Ele contava-me algumas coisas, não muito, e eu ficava tão entusiasmada que dizia: «Eu preciso disto, preciso de falar da minha história, do meu passado». Tinha a sensação de que aquele trabalho que ele estava a fazer com ele próprio, também eu precisava de o fazer comigo mesma, foi o «clique». Nessa altura, ainda não sonhava ser psicanalista. Iniciei a minha análise e, claro, estava em pleno contacto com o que era a psicanálise clinicamente. E foi a minha análise que me consolidou a ideia de que «o que este senhor fez por mim, quero agora fazer por outros, quero ser psicanalista». 

Estava a dizer que não podia voltar antes do 25 de Abril. Ainda hoje, não se percebe a dimensão… 

…da importância que pode ter tido na vida das pessoas, numa certa geração. Sim. É preciso lembrar que o 25 de Abril pôs termo às questões da Guerra Colonial e, nesse caso concreto, eu tinha ido para Paris, onde conheci o meu primeiro marido, que não tinha aceite fazer a guerra colonial. E embora eu fosse muito entusiasmada pela ideologia de esquerda e comprometida politicamente com os ideais da liberdade, da democracia, dos valores humanitários e igualitários, vi-me na circunstância de, não propriamente por mim, mas por esse motivo, não poder voltar para Portugal. E estava a estudar lá, embora… bem, a minha vida não é muito tradicional, no sentido em que eu não fiz logo o curso de Psicologia. Eu comecei por engenharia, tenho o curso de Engenharia Química… [Risos]

Ainda em Portugal, tirei um curso médio porque os meus pais não tinham possibilidades económicas, fiz então o curso de Engenharia Química. Comecei a trabalhar em química, mas entretanto comecei a interessar-me… não sei explicar muito bem porquê, penso que o Maio de 68 foi o grande acontecimento que me despertou para as ciências humanas, a sociologia, a psicologia. E decidi-me: «Estou cansada de ser apenas uma pessoa que está todo o dia num laboratório a fazer análises químicas e quero fazer uma formação que me desperte para o mundo, com pessoas.»

Além disso, tinha vinte anos, a ideia de trabalhar a vida toda num laboratório, depois casar, ter filhos – é ótimo ter filhos, mas aqui falamos de outra coisa – a ideia de que tinha acabado não foi aceitável para mim e disse: «Quero continuar a estudar, quero ir para a Universidade». 

Foi um desejo, um sonho, ainda hoje não compreendo bem a menina que eu era nessa altura. Fui sozinha à Embaixada de França e perguntei: «Há alguma possibilidade de eu estudar em Paris?» E disseram-me: «Sim, pode ter uma bolsa de estudos e estudar em Paris, se houver alguma escola superior ou universidade que a aceite como aluna.» Passei um mês sentada na Embaixada, a folhear os «cardápios» de todas as universidades, a escrever cartas, e descobri uma École Supérieure de Physique, onde fui aceite como aluna e onde fiz o curso de Biophysique

Portanto, fui para Paris nessa condição. Fui sozinha, não conhecia lá ninguém, era menor de idade e tinha de ter a autorização do meu pai. O meu pai aceitou e a minha mãe foi uma mulher que - devo-lhe isso - acreditava e confiava nos filhos, sempre nos estimulou. 

E aconteceu que eu fui para Paris. E estudando biofísica numa escola, ao mesmo tempo inscrevi-me numa universidade, em psicologia. 

Fez a sua licenciatura em Paris.

Exatamente, fiz primeiro o curso de Biofísica e trabalhei no laboratório de Biologie Marine, um laboratório na Universidade de Paris 7. E ao mesmo tempo, estudava Psicologia na Universidade de Vincennes [atualmente Universidade de Paris 8], onde tinha aulas ao fim da tarde e à noite e onde fiz o curso de Psicologia. Quando acontece o 25 de Abril, eu estou a acabar a minha Maîtrise em Psychologie, que, já agora, uma pequena vaidade, acabei com uma nota excelente. E aí vim para Portugal, já podíamos regressar. Fui imediatamente convidada pelo ISPA para dar aulas, em 1974, e fui depois convidada pelo professor Nuno Grande para o Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, que tinha acabado de ser criado.      

Foi por isso que veio para o Porto.

Sim, e também porque o meu primeiro marido era do Porto.

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Os seus pais não eram do Norte?

Não, eu nasci numa aldeia ribatejana. Tinha nove anos quando os meus irmãos mais velhos decidiram que os mais novos precisavam de estudar. Então a minha irmã mais velha levou-nos para Santarém, onde alugámos uma casa junto ao Quartel, e mudámo-nos, os irmãos mais novos, para lá. Fiz o meu liceu todo em Santarém. 

Foi sempre uma pessoa polifacetada. A mensagem que passa é que estar quieta não é para si. 

Tenho uma vontade, quase uma sofreguidão, pelo conhecimento. Sou muito curiosa, ainda hoje estudo e leio livros de psicanálise com imensa paixão, com imenso gosto, é qualquer coisa que me mantém ativa intelectualmente, poder continuar a ler, a estudar, a trabalhar, a pensar.  

Como aparece a escrita? De uma necessidade, um entusiamo, ou mais ligada à sua experiência académica? 

Se calhar posso aí invocar algo da minha história mais pessoal. A Alexandra, como psicanalista, sabe como são importantes para nós as vivências que temos, nomeadamente as infantis. O gosto pela escrita, penso que vem da minha mãe que, não tendo estudado, sempre me disse: «Filha, a pena maior que eu tenho na minha vida é não ter ido estudar.» Porque ela adorava escrever, era uma espécie de escriba da família, sempre a vi escrever, assim uma espécie de crónicas acerca dos acontecimentos familiares. Penso que encontrei aí uma fonte de inspiração.  Além disso, a escrita está naturalmente na minha vida como uma possibilidade de parar, de me concentrar, de refletir… dá-me prazer também, muito mais do que estarmos aqui a falar. [Risos]

Tornou-se uma forma natural de expressão. Há um livro seu pelo qual tenho um carinho especial, é mesmo carinho…

Não me diga que é o «Dor Sem Nome» [Afrontamento, 2003]. 

Claro. Eu penso que é um livro muito pessoal, além de ser um livro de psicanálise. 

Sim, tenho-o como o «meu livro», o grande livro da minha vida, onde me vejo já como uma analista com alguma maturidade, a pensar, a falar em voz própria. Tinha já antes escrito um livro com o Amaral Dias, uma das pessoas que muito influenciou a minha formação em psicanálise. Ele desafiava-me para o trabalho em conjunto e fizemos um livro: «A Psicanálise em Tempo de Mudança» [Afrontamento, 1998]. 

Mais tarde, provavelmente senti que estava na altura de fazer um livro meu, de falar em nome próprio. [Dor Sem Nome] é um livro a que dediquei muita pesquisa clínica, e muita pesquisa no sentido académico, e depois dessa pesquisa fui investigar o conceito de dor mental. É um livro em que faço uma contribuição pessoal. Não sei até que ponto ela foi valorizada pelos colegas analistas em Portugal. No estrangeiro sim, publiquei muitos artigos científicos, com base nesse livro, acerca da diferença, que eu tentei teorizar, entre sofrimento psíquico e dor mental. 

Penso que essa contribuição não estava ainda na psicanálise, o distinguir conceptualmente entre quando é que estamos perante um paciente em sofrimento ou quando estamos perante um paciente que está em dor. São questões diferentes no meu ponto de vista, têm implicações clínicas e técnicas diferentes e penso que, com este meu livro, consegui propor uma distinção e uma definição do conceito de dor mental. Embora estando [o conceito] em Bion, ele nunca o tinha definido. Eu dou importância à definição dos conceitos porque penso que a psicanálise tem de caminhar para aí, para um conhecimento mais rigoroso, para criar uma conceptualização que seja a mais rigorosa e a mais próxima da clínica possível.

 

É um livro que teve muito bom acolhimento, foi distinguido pelo Centro Nacional de Cultura, foi bestseller e objeto de uma crónica muito interessante do Eduardo Prado Coelho, no Público. 

É um título impactante e, para além do interesse que tem para os psicanalistas, há vários capítulos que podem ser para o público em geral. 

Sim, são para o público em geral os capítulos acerca do valor antropológico da dor, a diferença entre dor física e dor mental, a questão do corpo simbólico…

 

A dor, por vezes, é mais do que a dor física, a perspetiva cultural e social da dor não é igual para todos.

É uma experiência universal mas também singular. No livro, no capítulo 1.3, descrevo um ritual em que o xamã trata as dores do parto nomeando entidades como o deus Mu, intervém e combate esse deus e, ao fazê-lo, é como se a parturiente encontrasse um sentido para a sua dor.  

Depois faz a comparação com o trabalho do psicanalista que dá um sentido à dor, não através do deus Mu, mas através do individual, porque a dor está presente em todas as pessoas e é um desafio lidar com ela. 

Faz parte da nossa condição de ser humano. A dor e o prazer. Mas [a dor] é uma dimensão que está presente na vida e que tem de ser transformada num sofrimento aceitável para a pessoa. A minha contribuição, penso, foi fazer perceber que a dor, não sendo inteligível, não encontrando palavras, não consegue ser sentida, gera apenas defesas contra ela, com analgésicos ou anestésicos, ou negando-a, ou agindo; se a dor for transformada num sofrimento, se se conseguir dar-lhe nome, então ela pode ser sentida. Deixa de ser uma coisa insuportável. 

Mas queria acentuar que este livro teve por base uma investigação clínica e esta é uma ideia que eu gostaria muito de transmitir: o psicanalista, no meu ponto de vista, tem de ser um investigador do funcionamento mental. 

Hoje, reli algumas coisas e cruzei-me com um texto escrito por Freud, em 1930. Ele escreveu o seguinte: «O trabalho da minha vida dirigiu-se a um só objetivo: observei os mais subtis distúrbios da função mental em pessoas saudáveis e doentes e procurei inferir, a partir desses sinais, como é que o aparelho que serve para essas funções é construído e quais as forças concorrentes e mutuamente oponentes que nele se encontram em ação.»

Para mim, este é o Freud investigador, que observa o funcionamento mental das pessoas saudáveis e doentes e, daí, constrói modelos de compreensão desse mesmo funcionamento, consegue teorizar - e nomeadamente neste caso, descobrir que forças se encontram e se opõem, como a pulsão de morte, a pulsão de vida. Isto é o que me inspira. Sou psicanalista, estou no meu trabalho, mas ao mesmo tempo posso estar a contribuir para o conhecimento, para que a psicanálise se mantenha viva e não seja apenas uma coisa que está nas prateleiras. E essa é a minha experiência. Penso que enquanto houver psicanalistas que se interessem por fazer este trabalho de investigar, estudar, tentar perceber o que se passa com os seus pacientes, continuam a pensar a psicanálise, criam conhecimento. Depende de nós, da nossa atividade. 

Do seu ponto de vista, que ganha alguém que faz uma psicanálise?

Ganha saúde mental, se ganhar em saúde mental ganha em saúde física, porque há muitas questões de natureza psicossomática que se resolvem com a análise, eu própria fui testemunha disso. Ganha bem-estar, capacidade de se aceitar e de se humanizar. Não ganha no sentido em que fica anestesiado e feliz para toda a vida, e que nunca mais vai sofrer, não é esse o ganho.

Vivemos numa sociedade em que a ideia de felicidade como qualquer coisa de absoluto está muito presente social e culturalmente, quando é, na verdade, uma impossibilidade.

Sim, portanto, é mais uma aceitação dessa condição. É ganhar a liberdade de ser o próprio, de ser curioso acerca da sua vida mental, acerca das suas emoções, de questionar-se e não ficar imediatamente pelo «não quero sentir isto, não posso sentir isto»; portanto, é ganhar a liberdade para se identificar com o trabalho do analista e começar a fazê-lo consigo mesmo, um trabalho de reflexão interna. Penso que esse é um ganho muito importante.

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Aliás, há a questão de que uma análise nunca acaba,  termina o trabalho com o analista, termina o par analítico, mas há um trabalho individual… 

Que se mantém. Como as crianças que precisam de uma mãe sempre presente e depois há um momento em que já interiorizaram as funções maternas ou paternas e fazem o seu caminho. Mas também não gosto de idealizar excessivamente este processo, no sentido em que há pessoas que aderem bem à proposta analítica e a quem a psicanálise faz muito bem, as trata e resolve muitas das suas dificuldades pessoais, e há outras pessoas para quem a análise não é indicada. Tem de haver uma apetência natural da pessoa, de interrogar-se a si própria, ou não, porque há pessoas que logo à partida não querem. O próprio método, a proposta da associação livre não é uma coisa fácil, não é óbvia, não é evidente.

Por vezes, penso que há alguma rigidez na técnica e no método, por isso considero que o trabalho com a toxicodependência me deu alguma flexibilidade. 

Eu própria também tive essa experiência  de trabalhar com toxicodependentes, de percebermos o quanto temos que nos adaptar ao paciente, em vez de querermos que o paciente se adapte a nós. Não é ceder, é pensar o que é melhor para esta pessoa, neste momento, o que precisa e o que pode receber. 

Que é preciso para ser um bom psicanalista?

Antes de mais, o amor à humanidade, às pessoas. Outra coisa fundamental é o amor à verdade, sem isso… um sentido ético profundo, uma ética irrepreensível, uma ética psicanalítica absolutamente interiorizada, absolutamente irrepreensível. E depois, tem de ter uma grande capacidade de escuta, ser humilde. Ter a capacidade de aprender, a humildade de se abrir à diferença, ao novo, àquilo que o paciente traz. E ter aquilo que Bion designava por «capacidades negativas», ou seja, a capacidade de tolerar a dúvida, trabalhar e tolerar a incerteza, o desconhecido. E uma coisa muito importante para mim, que deriva do meu trabalho de investigação acerca da dor mental, é a capacidade de tolerar a dor mental do paciente. 

Não é fácil.

Não é fácil, põe à prova a nossa própria integridade mental, muitas vezes. Bion escreveu: «O analista que não estiver apto a suportar a dor não poderá psicanalisar.» É forte, não é? Mas faz muito sentido. Essa é uma das condições necessárias a um bom analista, porque ele vai ser o contentor das dores do paciente. 

A nossa capacidade de escuta e de estarmos atentos a nós próprios é fundamental. 

Sim, eu pertenço a esse par (paciente-analista), mas também não pertenço, também tenho de sair dele e analisar a minha contratransferência e interpretá-la. Temos este movimento de estar com o paciente, mas temos também de ser capazes de observar o que se está a passar e quase ter esta visão binocular, ver o que se passa com o paciente e ver o que se passa dentro do analista.

Nesse sentido, a supervisão, ou a intervisão, são fundamentais. 

Certamente, constituem um dos pilares a que eu  confiro uma importância fundamental. É um espaço de aprendizagem, é a possibilidade de ter alguém que está, justamente como um terceiro, a ver o que se passa e como é que estamos envolvidos no trabalho.

Criei e coordenei durante muito tempo, aqui no Instituto de Psicanálise do Porto, um grupo que se designa a «Escuta da Escuta» no qual os colegas, analistas como nós, se encontram para falar, trazemos o material clínico e debatemos. 

A solidão e a exigência do nosso trabalho, implicam termos cuidado connosco, ter uma vida familiar, social, cultural, no fundo, áreas nas quais aprendemos também imenso sobre o nosso trabalho. 

Querer continuar a estudar e a ler na nossa profissão é muito importante. Sou grande leitora, amante de cinema, viajo muito, tento manter a minha vida num plano em que há este trabalho difícil, mas que… 


Tirando o «Dor Sem Nome», que outro livro considera mais relevante?

Gosto muito deste livro, «Psicanálise e Mudança Psíquica - Cartografias para uma Viagem» [Afrontamento, 2010]. Foi escrito com a Celeste Malpique, penso que é um livro acessível, de leitura  fácil, que divulga e apresenta muito bem a psicanálise. 

E dá a dimensão do que se ganha com a psicanálise. 

Pretendemos justamente responder a essa questão. E apresentar a psicanálise com a metáfora da viagem também me parece muito rico. Uma viagem que conhece obstáculos, que pode ficar bloqueada.

Os seus livros são sempre muito claros. 

Que bom! Esse é um grande elogio. Muito obrigada. Eu tento. É um desafio que coloco a mim própria, porque é uma das críticas que faço muitas vezes, a nós, como Sociedade. Tenho essa preocupação e penso que devíamos progredir aí. 

Quando se fala da crise da psicanálise pode ter que ver com a forma como comunicamos enquanto grupo. 

Exatamente, como comunicamos entre nós. E se queremos difundir a psicanálise, torná-la útil para a cultura, para o conhecimento e para a ciência em geral, precisamos saber falar com outras disciplinas ou com os colegas que, não sendo psicanalistas, também contribuem tal como nós para a saúde mental. 

A sua experiência enquanto professora e a sua formação inicial em engenharia ajudaram-na a ter esta dimensão da necessidade da clareza?

Eu penso que sim. Porque uma das consequências de ter uma formação inicial nas ciências exatas, na química, foi o reforço da importância da análise e do rigor. Além disso, o facto de ser professora implica uma clareza na transmissão de conhecimento. Se estou a trabalhar com alunos que estão no início de uma formação, tenho de ser capaz de comunicar adequadamente com quem está à minha frente. 

Mas eu não partilho do pessimismo de alguns colegas que dizem que a psicanálise está em crise. Do meu ponto de vista, a psicanálise mantém-se viva, dinâmica, continua a interessar a muitas pessoas, não só psicanalistas, mas pessoas de outras áreas, das artes, da cultura, da história, da antropologia. Continuo a acreditar que a psicanálise, com o seu método, inventado por Freud, tem o seu lugar, continua a ser importante, útil. Não vejo a psicanálise apenas como um corpo teórico, mas também como uma terapia.

Uma terapia sustentada por um corpo teórico.

Exatamente. Em primeiro lugar, está a capacidade de resposta à dor, ao sofrimento das pessoas que nos consultam , e elas procuram-nos porque vêm em sofrimento. 

Pensa que o sofrimento das pessoas que a procuraram ao longo dos anos mudou?

Sim, talvez agora, mais do que nunca, eu encontre os traços e a patologia narcísica de uma maneira que me impacta. Teria tendência a dizer que o narcisismo, hoje, é uma grande questão, o desejo/necessidade de ser visto, o desejo de ser admirado, «sou visto, logo existo», mais do que «penso, logo existo», isso é qualquer coisa que para mim é preocupante. Há mais patologias borderline, não é tanto sofrimento neurótico, é um sofrimento mais da ordem da área neurótica, mas também da área psicótica, talvez casos mais graves, eu diria.  

Sinto que as inovações tecnológicas vão num certo sentido em que promovem ou estimulam aspetos que já estão no ser humano, porque nós temos obviamente o nosso narcisismo, e ele é saudável, em certa medida, mas podemos estar a assistir a fenómenos de natureza social ou cultural que podem estar a estimular certas dimensões do ser humano e a não valorizar tanto outras dimensões. 

 

Janeiro de 2024, Porto

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