Quando menos se esperava, chega-nos Provas Irrefutáveis da Minha Inferioridade Mental, de Diogo Paiva, publicado pela afiadíssima editora Cutelo. (1)
Diogo Paiva é um grande tradutor e abissólogo.
Não sendo a sua primeira obra, é nestas Provas, quanto a mim, que ele se apresenta como autor, com autoritas, com autoridade.
É um livro de aforismos, de poemas, biográfico e transcendental, num trespasse demorado do cérebro.
A arte aforística é dificílima, de Nietzsche a Kraus, de Cioran a Mário Quintana. É, portanto, um livro corajoso.
Escrito entre o dia e os medos nocturnos, nesse espaço intermediário e pulsional, há nele uma inquietante estranheza, um unheimlich.
Quando Freud escreveu esse famoso ensaio Das Unheimliche, em 1919, quis pensar o estranho familiar, o assombroso.
Lê-se Provas e é um livro familiar, mas estranho. Como se uma infância textual retornasse.
Também confirma nas suas intuições que são os escritores os grandes clínicos. Destaco algumas:
— A poesia requer pensamento.
— A loucura (diríamos vermelha) não é produtora de obra.
[Veja-se Nietzsche, Artaud, Ângelo de Lima ou João Damasceno.]
— Não há vida sem simbolização.
— A neurose obsessiva é uma barreira à psicose, isto é, à desagregação do pensamento.
O pensamento, sendo a produção de um órgão (social), do cérebro, pode adoecer. A mente fugir.
Esta sobrevivência do pensamento à real (não poética, não hölderliniana) desagregação neuronal de um órgão é central em muitas páginas deste livro. Analogamente, o coração, essa máquina sanguínea e metafísica.
No fundo, é a procura de uma cura da realidade pela palavra, uma salvação potencial, e não pela medicalização primária.
Há neste livro de Diogo Paiva uma oscilação nobre entre a secura do aforismo e a plena entrega à dor. A uma dor nietzschiana de quem vai morrer.
Este livro evocou-me muito Sérgio Solmi. (2)
E em 1925, hoje, o que nos diz ele?
«Fazer poesia, no fundo, significa reconhecer-se.» Ou:
«A decadência da poesia, ou melhor, do reino da poesia, teve início com a invenção da escrita, quando se começou a distinguir uma alma e um corpo no poema, a separar a figura rítmica do verso do respiro corpóreo que lhe dá vida, do movimento lesto da dicção, eminente mágico e evocatório.»
Nesta escrita, pois, tal como como diz Solmi, o corpo está na vanguarda.
Atente-se neste poema (p. 50):
«Aprendi que o corpo está contra a cabeça, a cabeça
contra o corpo, o sexo junto ao peito, a língua
na brecha dos dentes, e pensar é que é o osso, e o osso
também se desfaz, como tudo, depois paira,
suspende a respiração como uma ideia
à procura de uma palavra e morre, o corpo pegado
à cabeça, e a cabeça ainda pensa mais um bocado,
depois o osso não é mais do que leite azedo e fica
tudo estragado por já não possuir um pensamento:
fica tudo líquido e gasoso:
um pensamento sem origem nem objecto,
uma ideia que ninguém compreende.»
Blanchot tinha razão: pensar é sofrer.
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(1) Paiva, Diogo, Provas irrefutáveis da minha inferioridade mental, Cutelo Edições, Guimarães, 2023.
(2) Solmi, Sérgio, Meditações sobre o escorpião, Barco Bêbado, Lisboa, 2022.
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