with
Howard Levine, Ofra Eshel, Riccardo Lombardi
Joshua Durban, Anne Alvarez, Avner Bergstein
Judy K. Eekhoff, Robert Caper, Leopoldo Bleger
Sebastian Thrul, Steven Jaron
Teresa Abreu & Csongor Juhos
FREE ASSOCIATION LISBON
Maria José Vidigal
Psicanalista, Lisboa
Quem é a Maria José Vidigal?
Eu sou uma mulher, psicanalista, mãe e avó de sete netos maravilhosos, que são a minha grande alegria. Nasci em Angola e vim de lá com 14 anos e dez meses. Foi uma adaptação dificílima, posso dizer que só me adaptei quando entrei para a faculdade. Tive uma irmã gémea, que faleceu, tínhamos 56 anos.
Era a sua única irmã?
Era a única irmã. Embora tenha falecido há muitos anos, ainda me custa falar dela. Nascemos no Dundo, no extremo nordeste de Angola, onde o meu pai era secretário do quadro administrativo.
Primeiro nasceu a minha irmã, muito pequenina, e depois nasci eu, com mais peso. E o médico disse à minha mãe: «A menina não pode sobreviver, não temos nada aqui», não havia incubadora, nada, e a minha irmã não tinha reflexo de sucção. Não se pode dizer isso a uma mãe, abandone uma filha para ficar só com a outra. Na minha experiência, as mães que matam os recém-nascidos são doentes mentais graves. De modo que a minha mãe dava-lhe leite às colherinhas, para ela ir bebendo. Quando chegámos aos dois anos, era uma azougada rapariguinha, refilona, engraçada, mais viva e mais inteligente do que eu, demo-nos sempre muito bem, até ao fim da sua vida.
Deviam fazer muita companhia uma à outra.
Tínhamos brincadeiras diferentes, eu andava sempre metida com as galinhas (risos), lá os quintais eram muito grandes e as crianças tinham muita liberdade; em comum, brincávamos às escondidas, às corridas e a fazer casinhas com tijolos nos quintais.
Havia outras crianças?
Quando fomos para o sul de Angola, em Cuangar, nas margens do rio Cubango, as únicas crianças brancas éramos nós, e o que acontecia era que as outras crianças estavam nas sanzalas e não se aproximavam. De modo que nós brincávamos ali, fazíamos as tais casas com os tijolos, fazíamos jardinagem e gostávamos muito.
Eu também gostava muito de ir à horta, que era longe, íamos com os meus pais e havia um cheiro intenso a limão. É engraçado que ainda hoje, quando passo por um limoeiro, com aquele cheiro a limão, recuo 90 anos. Há sensações e odores da infância, memórias do passado, que nunca mais se esquecem. A partir de uma certa altura, as memórias mais antigas são quase fotográficas e as de há dez anos para cá vão-se embora, é assim…
E como é que começaram a vossa escolaridade?
Aos seis anos estávamos no Cuangar, onde não havia escola. Aliás, não havia uma loja, nem sequer tínhamos farmácia, quem nos tratava era o meu pai. A minha mãe preocupava-se muito com os nossos estudos e lá arranjou umas folhas de papel e começou a ensinar-nos. Lembro-me de estar sentada num banquinho pequenino, e a minha mãe, na cadeira, a ensinar-nos a ler. Eu queria muito saber ler…
Mais do que escrever.
Escrever não me interessava, eu queria era saber ler. E o nosso cozinheiro - o cozinheiro era o mestre nas famílias, só cozinhava, não fazia mais nada - dizia para a minha mãe, com o dedo no ar: «Senhora, esta menina vai ser doutora». É uma coisa curiosa, eu tinha na altura seis anos. Depois, o meu pai pediu ao Governador Geral para o transferir para uma vila que tivesse escola e fomos para Caála.
E aí começaram na escola?
Começámos na escola. Eu tinha muita vontade de ir para a escola e depois tive uma decepção profunda porque a professora gritava, batia com a régua na secretária, eu não sei o que imaginava sobre a escola, mas não imaginava aquilo. Depois eram os mais velhos, os da 4ª classe, que ensinavam os mais pequeninos, e eu só pensava: «Nunca mais vou aprender a ler, nunca vou aprender a ler». A senhora, felizmente, foi-se embora e veio uma nova professora da qual gostei e com quem aprendi.
Ora, e quem havia de encontrar na Caála, o José Fonseca e Costa, o cineasta, e a irmã, a Ana Maria Vieira de Almeida, éramos todos sensivelmente da mesma idade, entre os 6 e os 7 anos.
O mundo é pequeno.
Verdade Alexandra, o mundo é pequeno. E eles estavam lá, era a minha amiga Ana e o Zé, e havia mais irmãos. E faziam teatro, como se o Zé estivesse a preparar-se, é muito curioso isto. O estrado era dentro da garagem do pai, e cá fora o Zé punha as cadeiras, era uma festa para aquela criançada toda.
Entretanto, o meu pai, enquanto autoridade administrativa, tinha que fazer as inspecções aos trabalhadores, acompanhado de um médico, que ia como autoridade sanitária. E o que aconteceu foi que esses trabalhadores tinham péssimas condições, piolhos, má alimentação, tinham escorbuto - numa terra de tanta fruta - e havia multas, que o meu pai aplicava. Um deles tratava muito bem os trabalhadores, era o pai da Ana Maria, a quem o meu pai chamava Costinha.
Bom, e então surgiram as queixas; o meu pai era amigo do funcionário dos telefones, que lhe contava os telefonemas que faziam ao Governador Geral, em Luanda. E teve uma transferência compulsiva como se fosse um desgraçado, um ladrão e um miserável. Foi transferido para uma fronteira, para o extremo nordeste, onde não havia escola.
É claro que não podia ser, nós não tínhamos acabado a 2ª classe. De modo que o meu pai, que estava há uns dez anos sem usar a licença graciosa, pediu uma para vir para Portugal. Estivemos aqui cerca de nove meses, fizemos a 2ª classe e fomos fazer o exame da 3ª classe em Luanda. Entretanto, o meu pai foi transferido para Porto Alexandre, hoje Tômbwa, no sul de Angola, onde fizémos a 4ª classe. O professor batia desalmadamente nas crianças, eu vi-o dar sovas a colegas meus, que nem queira saber. Então o meu pai foi falar com ele: «Sr. Neves, o senhor não bate nas minhas filhas, quando tiver problemas eu falo com elas e castigo-as. O senhor não bate, eu é que bato”. O meu pai nunca nos tocou com um dedo.
Terminada a 4ª classe tínhamos de ir para Moçâmedes, para o colégio das freiras, porque não havia mais nada. E fomos, eram talvez menos de cem quilómetros desde casa, pelo deserto do Namibe, que é um prolongamento do Kalahari, mas esse percurso demorava horas a fazer. E eu não entendia como é que as pessoas se orientavam naquele deserto, mas depois percebi que os pontos de referência eram a welwitschia mirabilis, uma planta única no mundo, ou um poste, ou um odre, que era outra planta do deserto.
Em Moçâmedes fomos para uma pensão, mas a família Freitas, que lá vivia e que tinha sido amiga de um tio meu, decidiu acolher-nos. Era uma família verdadeiramente adorável. E sem o controlo da minha mãe, um bocado sufocante, senti-me livre, liberta. Adorei estar naquela casa. Fomos tratadas como filhas e fiquei eternamente grata àquela gente. Já todos morreram, entretanto. Estivemos lá três anos, o tempo de fazer do 1° ao 3° ano do liceu.
E qual era a finalidade? Irmos a seguir para o colégio, em Sá da Bandeira, hoje Lubango, mas o meu pai não tinha como pagar. Então a minha mãe telefonou para Luanda, onde tinha um irmão e perguntou-lhe: «Tu aceitas as minhas filhas em tua casa para fazerem o liceu?». Mas a mulher dele disse que não, que era muita responsabilidade ter duas adolescentes em casa. A minha mãe nunca mais lhes perdoou.
Era também muito comum as meninas de Angola irem para Windhoek, a capital da Namíbia, onde aprendiam inglês e ficavam aptas a ganhar a sua vida. Eu estava apavorada com a ideia, porque era muito tímida. E a minha mãe não queria, dizia: «Elas têm que ir para Portugal, uma mulher tem que estudar, não pode ficar toda a vida dependente de um homem». Naquela altura, não era muito comum as mulheres pensarem desta maneira.
Foi então que resolvemos vir para Portugal, já tínhamos passado mais de um ano, quase dois, sem estudar. Chegámos em setembro, só com a minha mãe, porque o meu pai ficou ainda em Angola, e viemos no Guiné, um barco misto de carga e passageiros.
Mas eu adorava estar em Angola. E era, para a idade, uma miúda culta, podemos dizer, sempre li muito. Eu lia e identificava-me com as personagens. Li, por exemplo, o «David Copperfield», do Dickens, e passei a dormir como ele, com a cabeça em cima do braço. Eu lia tudo.
Lia tudo o que tinha à mão, todos os os livros que encontrava.
Os livros que encontrava, mas havia os livros proibidos que a minha mãe tinha e que, sem ela saber, eu lia. Um deles foi «A mãe», de Pearl S. Buck.
Em Portugal, a adaptação foi… primeiro era o frio.
E depois era outro mundo, outra realidade social.
Outra realidade, e o frio, eu levava uma botija pequenina na pasta porque sentia tanto frio. A adaptação foi tremenda na casa dos meus avós, eles tinham vindo da Índia, quer o meu pai, quer a minha mãe, nasceram na Índia. Eu e a minha irmã somos a primeira geração, em cinco, que não nasceu lá.
Foi triste, o frio, e as coisas no liceu… eu achava-me estúpida, havia palavras que não percebia, uma linguagem diferente, e o nosso sotaque também era diferente, perguntavam-me de onde é que nós tínhamos vindo e era como se tivéssemos vindo do fim do mundo.
Eu gostava muito de inglês, queria tirar germânicas, e inscrevi-me no Instituto Britânico. A minha irmã detestava línguas e a minha mãe dizia: «Tu tens que estudar Branca, tens que estudar!», e ela respondia: «Eu só quero ser gato para apanhar sol, mais nada». (risos) Mas tirou o curso do Magistério Primário.
Fiz o Britânico e traduzia já muito bem, mas acontece que me apaixonei por um estudante de medicina e decidi ir para medicina. Realmente, tudo o que fiz na vida foi por amor. E inscrevi-me, com muito medo, mas foi na faculdade que me adaptei e arranjei grandes amigos.
E como é que foi para psiquiatria?
O professor Barahona tinha um assistente que era o Mário Casimiro, que eu nem sabia que era psicanalista. O Mário Casimiro gostava de dar aulas no parque do Júlio de Matos, um parque lindíssimo, e eu ficava fascinada. Ele articulava a loucura com a pintura, e eu pensei: «É disto que eu gosto, é esta a especialidade que eu vou tirar, psiquiatria». Foi ele que me levou nitidamente à psiquiatria.
Fui, mas aquilo era horrível, era só distribuir medicamentos, não se aprendia nada, e estava num meio que era todo contra a psicanálise: no Bombarda havia muitos grupos de psicanalistas, no Júlio de Matos não havia. Eu fazia estágio com o Dr. António Esteves, de quem gostava muito, que sabia muito de fenomenologia psiquiátrica, mas psicanálise não era com ele. Ora, um dia, entra um sujeito no gabinete e ele diz-me o seguinte: «Você está interessada em psicologia infantil, ora está aqui uma pessoa com quem pode aprender, o João dos Santos». E o João dos Santos, como havia pouca gente, também estava interessado em ter médicos…
Que estivessem interessados.
Que estivessem interessados. E o João dos Santos convidou-me a assistir a uma reunião. Fiquei fascinada, acho que ao longo da história da pedopsiquiatria em Portugal, não houve e não há ninguém que consiga observar uma criança como ele observava, não há. Uma colega apresentou um caso de mutismo, de uma miúda que não falava. Depois chamou-a, ela veio, assim caladinha, e o João dos Santos levantou-se, cumprimentou-a e disse-lhe: «Então, a que é que a gente vai brincar?» Ela estava sentadinha na cadeira, levanta-se, ajoelha-se no chão e começa a lamber a cadeira. E ele faz exatamente a mesma coisa: ajoelha-se no chão e começa a lamber a cadeira. Começam os dois a lamber a cadeira e ela diz assim: «Tu estás maluco». «Pois estou, tu estás maluca, e eu também estou, estamos os dois malucos». «Mas tu és doutor». Foi uma coisa fabulosa, eu fiquei maravilhada e pensei: «É disto que eu gosto».
É uma história extraordinária.
É extraordinária. Como é que aquele homem pôs aquela miúda a falar, ela que não falava com ninguém, um mutismo total. E foi assim que eu fui para psiquiatria infantil, comecei a trabalhar com o João dos Santos.
Entretanto eu tinha que fazer o concurso. Saíam dez pontos de psicopatologia e dez pontos de terapêutica. Tive dúvidas se seria capaz, mas arranjei um grupo e estivemos um ano a preparar-nos: a Ana Dinis, o Meneses, o Pólvora e o Luz e Silva. O que é certo é que nesse concurso éramos quarenta e um e eu fiquei em primeiro lugar; todos os do nosso grupo ficaram nos primeiros oito lugares.
Depois, a maior alegria que eu tive na minha vida foi o nascimento da minha primeira filha, e depois… a minha vida foi muito complicada.
Em 1961, como se sabe, houve a primeira revolta dos militares contra o sistema, a revolta de Beja, mas aquilo não deu em nada, acabou muito mal. O capitão Pedroso Marques apenas conseguiu chegar a Lisboa graças à solidariedade do taxista que o trouxe do Alentejo. Em Lisboa, encontrou por acaso o meu cunhado, único irmão do meu marido, ambos eram amigos do capitão, e o meu cunhado trouxe-o, à mulher e à filha para se esconderem em nossa casa. Recebi depois um telefonema, de uma cabine telefónica, a dizer o seguinte: «A PIDE foi a casa do capitão e a vizinha do lado denunciou-vos, tenham cautela, deu todas as vossas indicações».
Tirámos os livros proibidos de casa e o meu marido levou o capitão, a mulher e a filha para um sítio qualquer, não me disse para onde, e estávamos preparados para o que desse e viesse. Passados uns dias, o meu marido já tinha saído, batem à porta e aparecem os gorilas, da PIDE. Deitaram as estantes abaixo, foram aos quartos, às gavetas… Tenho três filhos, a mais velha era a Inês, tinha três anos, e eu estava grávida do segundo e a nossa Inês, que estava contentíssima com aquela barafunda, ria-se. Depois disseram-me: «A senhora acompanhe-nos», e a pessoa vai no carro sem saber o que vai acontecer.
E a sua Inês ficou?
A minha Inês ficou com a empregada. Vim a perceber mais tarde que o meu marido tinha sido apanhado pela PIDE à saída de casa, uma hora antes.
Estive em interrogatórios na rua António Maria Cardoso, desde as 10h00 até às 21h00, só me deram água, que eu pedi. Lembro-me que olhava para o céu azul e era a única esperança que tinha, porque não sabia o que é que me ia acontecer. Faziam interrogatórios, faziam roulement, era um era outro; «é uma estúpida, o seu marido é que é inteligente, ele já está na rua», diziam. O meu marido já tinha ficha na PIDE porque tinha pertencido ao MUD (Movimento de Unidade Democrática) e eu conhecia-o bem, não iria falar nunca.
Saí, e fui depois ao advogado dos presos políticos que me disse que só dali a três meses é que poderíamos atuar, mas que fosse até lá todos os dias perguntar por ele. E eu fui todos os dias, com muito sacrifício. A resposta era sempre a mesma: «Não sabemos onde ele está.» Até que, ao fim de duas semanas, disseram-me que fosse ao Aljube, às 10h00 de terça-feira. Nessa noite nem dormi e às 10h00 estava lá. Havia duas redes, afastadas cerca de um metro, com um PIDE no meio, e não podíamos falar de nada. «Começa com essa conversa e a visita acaba», diziam, era sempre assim.
Nessa altura, uma coisa que me emocionava era ver os homens de idade que ao chegarem às paredes do Aljube tiravam o chapéu, e só o voltavam a colocar depois de passarem todo o passeio em frente. Uma homenagem simples, mas eu comovia-me com aquilo.
Um dia telefonaram-me, eram cinco da tarde: «Se a senhora aparecer aqui com 20 contos, o seu marido sai». Ora, naquela altura 20 contos era muito dinheiro, e eu não morri de fome, eu e a miúda, por causa dos amigos, porque eu não ganhava. Era emocionante a solidariedade que havia. Um amigo que vivia perto podia emprestar o dinheiro, mas os bancos já estavam fechados. Lembrou-se do padrinho dele, um dos sócios dos Pastéis de Belém. O meu cunhado deve ter «voado» até Belém para me trazer os 20 contos e, às seis horas, estávamos na rua António Maria Cardoso para o meu marido sair.
Foi uma luta tremenda, ele saiu, mas veio muito perturbado, sofreu a tortura do sono, sete dias e sete noites sem dormir. Tinha alucinações visuais, alucinações auditivas, foi muito, muito difícil… esteve meses e meses sem conseguir dormir e recusava qualquer medicação.
Entretanto nasceu o seu segundo filho?
Nasceu o meu segundo filho e é claro que, com estas tragédias todas, foi um parto muito difícil, como não podia deixar de ser. Foi com a Cesina Bermudes, que fazia o chamado parto sem dor. A certa altura ela veio dizer-me que ou salvava a mãe, ou salvava o filho. Eu pedi-lhe que salvasse o meu filho, mas acabámos por nos salvar os dois.
Depois toda a sua vida profissional foi com crianças.
Foi com crianças, foi.
Como é que foi esse percurso profissional e como foi parar à psicanálise?
Como fui parar à psicanálise... Obviamente, eu só podia fazer análise com um homem de esquerda, depois do que aconteceu com o meu marido. (risos) Andei a pensar, faço, não faço, porque de facto não tinha dinheiro, ainda levámos dois ou três anos a pagar as dívidas que contraímos.
Um dia, o Dr. João dos Santos perguntou-me: «Maria José, nunca pensou em fazer uma psicanálise?» Eu disse-lhe que sim e que tinha pensado no Dr. Flores. «Boa escolha, boa escolha», respondeu-me. Começar uma análise com ele foi a melhor escolha que fiz na vida, porque eu tinha muita ansiedade, era muito tímida, tudo me apavorava. A primeira vez que fui fazer uma comunicação, no Hospital D. Estefânia, estava no anfiteatro do hospital e só queria que o teto caísse. (risos)
Porque é que o teto não cai e me salva de ter de falar?
O teto caía e eu não falava, só pensava assim. (risos) E com a análise tudo isso desapareceu. Agora faço comunicações com a maior das facilidades, vou como se fosse para minha casa, o que é uma grande tranquilidade para mim.
E uma grande liberdade.
E uma liberdade, a análise deu-me sem dúvida uma grande liberdade. Se calhar, se não fosse isso, não estava aqui a falar com esta liberdade toda.
E o que é que uma pessoa ganha com uma análise?
Olhe, ganha a liberdade, acabámos agora de dizer, é a liberdade que se ganha. É a capacidade que se tem de fazer o que se quer e não aquilo que os outros querem, e isso é muitíssimo importante.
E outra coisa, passei a escrever, mas isso é também graças à Margarida Mendo, a primeira discípula do João dos Santos, que me ouviu numa conferência e me incitou a escrever sobre o tema de que tinha falado. Era uma pessoa muito generosa. Já escrevi alguns livros, uns são da especialidade, outros são mais abrangentes e tenho outros para publicar.
Gostava de saber mais sobre a sua experiência de trabalho no Centro de Saúde Mental Infanto-juvenil de Lisboa, foi uma experiência de muitos anos, riquíssima.
Foi uma experiência de muitos anos e de muita alegria ao mesmo tempo. Tinha um grupo de técnicos fabuloso, a filha do João dos Santos, que era pedagoga, a Manuela Cruz, que também era professora, o psicomotricista João Costa… tinha uma equipa muito grande e nós íamos para o trabalho felizes, contentes.
Mas começaram com a estatística, queriam números, porque nós não fazíamos consultas de cinco ou dez minutos, eu levava o mesmo tempo no serviço público que levava no consultório, cerca de uma hora com uma criança e uma família. Ora para os serviços isso não dá. Nós, nessa hora, falávamos com a mãe, com o pai, às vezes com os avós, com as amas, quando eram as únicas cuidadoras da criança. Começámos a pôr isto na estatística.
Em vez de pôr só a criança, punham a mãe, o pai e as outras pessoas com quem tivessem que falar.
Claro que a estatística aumentou brutalmente. Mas, como isso não chegava, passámos a fazer grupos. Chegámos a ter onze grupos no Centro de Saúde Mental Infanto-juvenil de Lisboa - depois chamado Clínica da Encarnação. Primeiro, foi por uma questão burocrática, depois considerámos que era muito útil para os problemas de comportamento. Nós fizemos uma coisa que raramente se fazia, um follow up dos problemas de comportamento. Fui eu que contactei com as famílias, e fui insultada por algumas mães… Alguns, já tinham 20, 30 anos, estavam na prisão, outros na droga, outros tinham fugido, enfim uma desgraça. Fiquei muito deprimida, só pensava: «Tivemos tantos anos aqui e não fizemos nada por estes jovens».
Cheguei à conclusão que tínhamos que mudar a metodologia. Na reunião teórica da equipa, escolhemos estudar os problemas de comportamento, perceber como se fazia nos países anglo-saxónicos e nos Estados Unidos. A melhor intervenção era em grupo, nós já o fazíamos para aumentar a estatística e depois passámos a fazê-lo para os problemas de comportamento. Posteriormente, fizemos um novo follow up, não foi tão avançado no tempo como o anterior, mas desta vez os miúdos adaptaram-se, foi óptimo, foi muito bom. Passámos a fazer grupos com o professor João Costa, iam para o ténis, jogavam à bola… tinha um grupo formidável de terapeutas, trabalhávamos com gosto. Eu fazia a supervisão de todos os grupos.
Mas os meus técnicos eram muito reivindicativos, e ainda bem, porque me estimulavam: «Maria José, os médicos não vêem as avós, tragam as avós». Reuni um grupo de onze ou doze avós, à volta de uma mesa, com a assistente social e os estagiários. As avós, primeiro, começavam nas desgraças, os filhos estavam emigrados, presos, todas elas eram educadoras únicas, portanto era uma carga muito pesada. E depois da lamentação, era o grupo mais divertido.
Trabalhei muitos anos num CAT (Centro de Atendimento a Toxicodependentes) e havia muitas avós educadoras únicas, quando já não tinham força nem idade para serem novamente as principais cuidadoras.
Eu fiz esse grupo de avós. A minha função ali, porque eu não sou terapeuta de grupo, era evitar que uma monopolizasse o grupo, ou então quando uma contava uma história passava a outra.
E um dia o que é que eu resolvi fazer? Levá-las à Gulbenkian, porque havia um encontro da nossa associação, a APPIA (Associação de Pedopsiquiatria da Infância e da Adolescência), com o tema «A Pedopsiquiatria no Século XXI». Eram temas leves, perspectivas de futuro, enfim, sem patologias. Às 9h00 as avós estavam todas lá, sentaram-se, era uma fila de avós e eu estava ao pé delas. Diziam-me que nunca tinham ali estado, que era tão confortável, pediram pastas, enfim, uma ternura. Portanto, não foi uma intervenção psicoterapêutica mas teve um efeito psicoterapêutico extraordinário, porque se sentiram bem tratadas, foi excelente para as avós. Nunca mais houve queixas dos técnicos porque elas nunca mais foram as mesmas, foram tratadas como pessoas.
Foram ouvidas e validadas.
É verdade. Uma delas disse-me: «Senhora Doutora, só falam dos pais, não falam dos avós». Eu é que fazia o encerramento da sessão e nessa altura falei dos avós, no papel violento e doloroso que era para as avós serem educadoras únicas das crianças.
É bom que os avós possam ser avós, no fundo, àquelas avós foi-lhes tirado esse papel e atribuído outro, que não foi escolhido.
Foi muito engraçada essa intervenção.
E em maio de 1992 começou a falar-se da perda de autonomia administrativa, a degradação do serviço começou aí. Nós ficaríamos ligados ao Hospital D. Estefânia e a todos os centros de saúde. Houve uma reunião geral sobre os centros de saúde mental na Assembleia da República, onde estavam directores de todos os centros do país, de norte a sul. Eu fui a única pedopsiquiatra a lá ir, com uma estagiária minha. Quando ia acabar a sessão - porque ia acabar a sessão e a psiquiatria infantil não tinha voz - levantei o braço e disse aquilo que tinha a dizer. Mas estava tão emocionada que nem me lembro de nada, só sei que um colega veio ter comigo e comentou simplesmente: «Maria José, eu só tenho pena que o João dos Santos não esteja aqui para ouvir aquilo que você disse sobre a psiquiatria infantil».
Eu trabalho só com adultos, mas efetivamente acho que existe pouca resposta para as necessidades das crianças.
Nunca medicámos miúdos hiperactivos, agora há a ritalina, com graves riscos, porque tem o mesmo mecanismo de acção e de habituação da cocaína. Aqui, em Portugal, dão ritalina a torto e a direito, há crianças de três anos a tomarem ritalina, quando a indicação é a partir dos cinco.
Aconteceu outra coisa em 1992, quando já sabíamos que íamos perder a autonomia: veio a Lisboa um grupo francês, de Villejuif. Eram 30 técnicos, psiquiatras, pedagogos, psicólogos, terapeutas de todas as qualidades. O Coimbra de Matos telefona-me e fala-me deste grupo que vinha visitar hospitais psiquiátricos e desejava ver um serviço infantil, e diz-me que se tinha lembrado da minha equipa. Eu concordei, chegavam na semana seguinte.
Nós estávamos numa reunião, e quando o comuniquei à equipa ficou tudo a refilar e depois de estar tudo mais calmo, - isto era muito à João dos Santos, aprendi muito com ele - disse-lhes: «Bom, quem é que quer participar nisto? Eu comprometi-me com o Coimbra. Conheço as instituições francesas para crianças, são lindas, com parques lindíssimos, por isso não vamos apresentar a casa, mas podemos apresentar a forma como funcionamos».
Todos colaboraram. A assistente social com um grande mapa, o João Costa filmou um fragmento de exame psicológico e de vários grupos, a Magda, que é filha da Margarida Mendo, fez a tradução toda para francês. O grupo veio, mostrámos as instalações, depois fomos fazer a apresentação, e de facto aquilo correu muito bem. A assistente social mostrou os mapas - tínhamos todo o sul, uma parte dos Açores e da Madeira e as ex-colónias - e todos os técnicos falavam do que faziam, enquanto o João passava o filme. A seguir houve uma salva de palmas, nós ficámos todos contentes. Então disseram-nos que era a primeira vez que visitavam um serviço com aquela metodologia de apresentação, que era um exemplo a seguir.
Grande elogio.
Grande elogio. E depois, o Coimbra de Matos mandou uma ordem de serviço dizendo que tinha sido uma apresentação exemplar.
Ele foi sempre uma pessoa generosa.
Era generoso, era. Não se inibia de dar elogios. Quando gostava, dizia que gostava. O que algumas pessoas não fazem, dar elogios. Era assim. E é tudo.