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Quem é Vasco Santos?

Eu diria uma coisa muito simples: vivente. Sou um vivente e também sou um outro … je est un autre. Se pudéssemos dizer quem somos não seríamos seres trágicos, porque quando dizemos que o sujeito é um ser trágico é porque ele nunca saberá toda a verdade sobre si próprio. Eu nunca me vi de frente, a Alexandra está a ver-me de frente, o Csongor está a ver-me de frente, mas eu nunca me vi de frente, portanto, eu preciso do outro para me ver. E esta questão “quem sou?” levanta a questão da própria psicanálise, porque a questão da psicanálise é a questão da verdade. Quando me perguntam: a psicanálise é necessária hoje? Bom, a psicanálise é necessária porque há a questão da verdade (Tirésias).

E da descoberta.

E de descoberta.

Os poetas falam melhor disso, do “quem sou”. Mário de Sá-Carneiro tem aquele poema: "Eu não sou eu nem sou o outro/ sou qualquer coisa de intermédio/ pilar da ponte de tédio que vai de mim para o outro". Portanto à pergunta “quem é?”, é evidente que eu poderia dar um dado biográfico, a idade, o local de nascimento, os pais, etc., mas parece-me que não é propriamente o que vos interessa mais!

 

As minhas paixões para além da psicanálise foram e são os livros. E isso levou-me inclusive a uma certa oscilação profissional. Eu tive uma época da vida em que era mais editor, digamos, do que psicoterapeuta e depois, com o tempo, a minha vocação para esta área foi aumentando. E hoje é o contrário, os livros são uma espécie de offshore amorosa do trabalho clínico.

 

A minha mãe pergunta-me muitas vezes: “ Consegues ganhar a vida como psicanalista?” Portugal é, infelizmente, um país pouco psicanalítico. Salazar opôs-se, tal como os países comunistas, à psicanálise. Foi Marcelo Caetano quem a autorizou em 1973. A filha, a Ana Maria Caetano, fazia psicanálise, creio que com o Pedro Luzes que tinha vindo da Suíça, o que motivou uma complacência paternal para que a Sociedade Portuguesa se constituísse tornando-se uma sucursal da Sociedade Espanhola de Psicanálise. Depois veio o 25 de Abril...que aprofundou tudo … e fez voar.

 

E como é que surgiu o seu gosto pelos livros?

Bom, eu era um miúdo muito tímido, ainda sou tímido, mas era muito tímido e portanto enquanto os outros miúdos brincavam, eu lia. Havia na família uma razoável tradição de leitura e tinha nomeadamente um tio que era um leitor omnívoro, e que me ia passando coisas. Na altura lia-se bastante, quer dizer é preciso ver que não tínhamos mais nada, ou jogávamos à bola ou líamos.

Agora não foi por causa das leituras que eu cheguei à psicanálise. O meu destino era ser psiquiatra. Só que naquela altura, a seguir ao 25 de Abril, estava no auge o movimento anti-psiquiátrico, com David Cooper, com Laing, com Thomas Szasz e em França com Michel Foucault, com Gilles Deleuze e Félix Guattari, com uma crítica a um modelo adaptativo que a psiquiatria biológica exercia. Em Coimbra havia uma figura que era bastante electrizante, Carlos Amaral Dias que foi meu professor e de quem sou amigo e portanto... criou-se um grupo de pessoas que passou a interessar-se pelas coisas freudianas.

É preciso ver também que na altura não víamos a psicanálise como uma profissionalização da psicanálise. Quer dizer a psicanálise não era propriamente a procura de um emprego, não é? Aliás de forma mais geral podemos dizer que o declínio da psicanálise tem a ver com a sua profissionalização.

A psicanálise a partir de Melanie Klein, vai criar toda uma orientação que leva muito, vocês podem contestar, mas leva muito quanto a mim, a considerar a palavra uma espécie equivalente da pílula.

A palavra como equivalente da pílula, quer dizer, como um remédio e também a visão muito anglo-saxónica da psicanálise como uma espécie de clínica aristocrática para o sofrimento psíquico. Com a evolução química a partir dos anos 50, com a descoberta do primeiro antipsicótico, passamos a debater-nos com adversários poderosos e muito eficazes. Dito de uma maneira mais simples, quando a psicanálise quis tratar de todos os doentes psiquiátricos começou a perder terreno, e isso ficou a dever-se precisamente ao campo Kleiniano e pós-Kleiniano.

E faltam vozes!

Se ouvirmos os programas de Donald Winnicott na BBC, no pós-guerra, ele a falar às mães é genial, porque a mãe telefona e diz: ”Eu chego a casa com um saco de arroz, e o meu filho, sistematicamente , dá um pontapé no saco das compras. O que é que eu devo fazer?” Isto é uma pergunta dificílima, mas Winnicott dá respostas absolutamente assombrosas. O Amaral Dias tem essa capacidade, o João dos Santos também tinha uma capacidade de despentear as teorias porque no fundo as sabia muito bem. Quer dizer, isto de ser simples é difícil porque implica um conhecimento muito metabolizado.

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A psicanálise continua a ser necessária nos dias de hoje?

 

Há uma insatisfação estrutural do ser humano. Diria melhor se dissesse insatisfação do ego, decorrente do processo de individuação e da história. A psicanálise na minha modesta opinião será sempre necessária.

Será que é essa insatisfação que leva, como Freud disse muito claramente, a que algumas pessoas adoeçam quando triunfam?

Adoecem porque de alguma maneira não podem atingir os seus ideais, isto é, o combustível é a angústia. É como o sedutor, o D. Juan. Qual é o problema do D. Juan? É que o D. Juan não pode apaixonar-se. Quando D. Juan se apaixona pela Zerlina  vem a morte, simbolicamente, a morte. Porquê? Porque a máquina desliga-se, a máquina que o mantinha era a sedução. Eu quero seduzir mas não quero conquistar.

Tenho tido alguns casos destes: o indivíduo que está a lutar para chegar, por exemplo, a sócio numa sociedade, anda ali muito tipo Indiana Jones, chega lá acima e de repente começa a desenvolver mecanismos ou de pânico ou fóbicos; tem medo de ser atropelado, deixa de andar de avião, algo que precisa por causa dos negócios; chega à porta e não sai, quer dizer, volta para trás quando chega a administrador, porque o que o movia era exactamente não atingir os ideais. Atinjo os ideais e adoeço. Basta isto para justificar a permanência da psicanálise.

Sim, e não sou capaz de pensar noutros ideais.

VS - Pois não, porque os atingi. Acontece muito também nos divórcios. À pergunta: ”Mas divorcia-se porquê?”, a pessoa diz-me: “Porque a minha mulher não tem defeitos! É óptima mãe, é uma mulher fantástica, tem valores, gosto dos meus sogros, é linda, não aguento! ” (risos)

Esta descoberta de Freud “ adoeço quando triunfo” é uma das razões nucleares para que a psicanálise tenha justificação.

Eu posso tomar um anti-depressivo, tenho muitos pacientes que tomam, mas dizem-me: “Eu agora não tenho ansiedade mas não me sinto eu, estou insatisfeito, não me sinto eu”. Portanto, será ético querer tratar esta insatisfação do ego?

É evidente que há outras respostas: a resposta religiosa, a resposta mística, a resposta literária, a resposta até filosófica, há outras respostas, não devemos ser omnipotentes. Mas penso que a resposta psicanalítica nesse aspecto continuará.

A psicanálise surge num contexto histórico. Tínhamos o higienismo alemão que vai desembocar directamente na sexologia, no fundo são perspectivas morais, em termos quer da sociedade quer do indivíduo.

É no século XIX que emana a ambivalência corpo/mente.

Freud procura dar resposta a determinadas questões: o que era a loucura, mas sobretudo o que era a histeria.

O início do século XX é uma época de grande crise dos valores. Max Planck cria a teoria quântica. Freud publica “A interpretação dos sonhos”. Nietzsche morre em 1900 e Freud é um herdeiro de Nietzsche e de Schopenhauer. Portanto há todo um contexto que leva Freud a tentar encontrar um método para o tratamento do sofrimento mental.

 

 

No presente sinto que se confunde o sofrimento mental com ansiedade e tristeza e com outros afectos que fazem parte do Homem. Há uma ansiedade intrínseca ao ser humano, queremos mais, pensamos no futuro, temos dúvidas.

Vou pôr a questão de uma maneira simples: “Qual o futuro da psicanálise?” Eu digo, a psicanálise tem futuro porque existe a questão da verdade e, no consultório, o meu analista é um protector, com ele posso ser verdadeiro. Um espaço desses, por mais que a humanidade vá sofrer mutações, será sempre necessário.

O que eu penso é que a psicanálise terá cada vez menos força no tratamento generalizado daquilo a que chamamos a saúde mental. Aí perdemos terreno para as teorias cognitivistas, comportamentalistas e para a medicalização adaptativa. E há a dimensão política.

A dimensão política é que o capitalismo hoje vive da velocidade e da algebrose. Sempre houve angústia mas nunca houve tanta ansiedade como hoje. Porquê? Estamos a correr numa passadeira, mas a passadeira corre sempre mais depressa e é global. É uma douda correria!

O processo psicanalítico ainda é entendido como um processo muitíssimo longo cuja eficiência é problemática, digamos assim. Estamos num tempo do homem eficiente e a psicanálise é algo para o homem trágico, para o homem que sonha, que tem contradições. A medicalização, o cognitivismo, o comportamentalismo são para o homem eficiente. Hoje o homem que não trabalha já está a sentir culpa. A psicanálise, num certo sentido, é também um “perder tempo” e é uma forma de resistência a este movimento.

A modernidade tem duzentos e cinquenta anos, o mundo contemporâneo consideramo-lo a partir dos anos sessenta do século passado. O mundo contemporâneo é um mundo veloz, é um mundo de excesso, é um mundo de escolhas, muitas escolhas, há pois a angústia da escolha, não só dos objectos, como das pessoas. Há uma angústia da escolha e há outro aspecto, tudo tem de ser intenso! É aparentemente um mundo onde a psicanálise fica, como diria (?), enfraquecida porque é difícil manter o compromisso, até o compromisso terapêutico é muito mais difícil, tal qual os compromissos amorosos, tal como as relações, tudo se tornou de alguma maneira precário.

A psicanálise, é claro, tem de se repensar porque actualmente Narciso sobrepõe-se a Édipo, eu existo através do olhar do outro, tenho que postar no Facebook, no Instagram, ver. Mas atenção (!) este narcisismo não é só um narcisismo para o outro, é também um narcisismo para mim próprio e isto levanta questões.

A psicanálise foi uma resposta científica, uma criação do século XX, que teve condições para formar o paciente psicanalítico e hoje podemos perguntar se temos condições para manter o mesmo paciente freudiano?!... Ou teremos de repensar o modelo e fazer uma abertura.

O Antonino Ferro diz que a psicanálise é o que existe entre duas pessoas, o que se cria entre duas pessoas, e o trabalho que se faz entre o paciente e o analista.

Pois, isso assenta na ideia de que a verdade é uma verdade intersubjetiva. A perspectiva é essa, é que a verdade é a verdade intersubjetiva. Mas eu penso que temos que considerar que há também uma verdade objectiva. Há uma possibilidade de verdade objectiva. O sujeito é também um sujeito histórico.

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O que faz de um psicanalista um bom psicanalista?

É o estilo, diria o Herberto Hélder. O que faz um bom analista é a escuta e a pergunta. Aprender a escutar. Escutar é um trabalho, é muito difícil! Eu hoje ainda tenho alguma dificuldade em escutar e muitas vezes quero mostrar que estou a perceber o paciente e adianto-me. Também os países do sul são países culturalmente muito mais palavrosos. É muito interessante, num colóquio da FEP (Federação Europeia de Psicanálise), vermos a apresentação de um caso clínico feito por um inglês, um francês, um italiano ou um russo. Percebemos que aquilo tem a ver com a cultura e com a língua.

Nós estamos num tempo muito especial, quer dizer o smartphone, o iphone, vieram alterar muito a sociologia. Ele não é apenas uma ferramenta, alterou as relações sociais de uma maneira mais rápida do que ao longo da história. Em vinte anos nós mudámos imenso a sociologia amorosa, a sociologia relacional.... Isto é, o século XX foi um século da sublimação, o que é a sublimação? É um conceito difícil. Freud nunca escreveu um texto sobre ele, é um conceito que Freud usa em 1905 e é a afirmação de que a libido, a pulsão sexual, é deslocada para outros campos, seja o artístico, seja o trabalho, etc. Ora, o par sublimação/recalcamento caracteriza o século XX.

O que é que está a caracterizar estes últimos tempos, os últimos vinte anos? O virtual está a substituir o imaginário.

Passamos para um tempo de acting out, de agir, de gratificação imediata, portanto o desejo é substituído pelo prazer e pelo prazer imediato e os analistas estão também sujeitos a estas mudanças.

É preciso não ficar com a ideia que a psicanálise hoje é igual à psicanálise do tempo de Freud, não é, não é! Até porque algumas das patologias mudaram. No tempo do Freud havia muito a neurose obsessiva-compulsiva, hoje há muito menos, o que há muito é a ansiedade e o pânico. Aí os chamados antidepressivos, este nome foi cunhado pela indústria farmacêutica, foi uma operação de marketing porque eles não são só antidepressivos, têm muitos efeitos a outros níveis, mas funciona bem “antidepressivo”. O antidepressivo de facto reduz a ansiedade, mas digamos não a cura no sentido existencial, ontológico. E não cura porquê? Eu diria (muito à Nietzsche) porque vamos morrer e porque temos consciência disso. Os gatos, os cães, etc., não têm, logo passam o dia a dormir, não esperam nada. Estamos condenados à finitude e nesse sentido o espaço analítico é um espaço privilegiado para este tipo de encontro.

Podem perguntar: “Mas afinal para que serve a análise se eu tomando um ansiolítico ou um antidepressivo me sinto melhor?” Ou se eu faço ioga e me sinto melhor? Ou se eu sou vegan e me sinto melhor? É porque a psicanálise é quanto a mim a melhor maneira, o melhor modelo, para descobrirmos as riquezas que não sabíamos que tínhamos.

Muitas vezes as pessoas pensam que a psicanálise se destina a patologizar a pessoa e isso é uma coisa que leva a processos psicanalíticos perversos que criam dependências eternas, porque a pessoa está sempre doente só que ainda não sabe.

 

 

A psicanálise na minha perspectiva, na minha modesta perspectiva, não é uma reconstituição proustiana, busca do tempo perdido, não, ela destina-se à descoberta das riquezas interiores, inconscientes, que tenho e não sabia que tinha. Eu gosto muito da definição de Freud que diz: “O inconsciente não é perder a memória mas esquecer-se do que se sabe”.

Muitas vezes temos um entendimento da psicanálise como uma espécie de cura médica, cura quase cirúrgica do sofrimento do ser, ora isso não é possível. Eu só me transformo naquilo que já sou.

A maioria das pessoas procura-nos porque está em sofrimento, mas o que vem a seguir é o que o Vasco está a dizer, é a descoberta das nossas riquezas, da nossa singularidade. Esse é um aspecto muito importante.

Penso que sim. As pessoas procuram-nos porque estão com uma dificuldade. Eu não falo das pessoas que nos procuram porque querem ser futuros analistas, isso é uma população muito especial. O meu consultório é feito de pessoas, desses 99% de pessoas que não são psiquiatras, nem são psicólogos, são pessoas comuns, são bancários, são professores, são engenheiros, são pessoas que não têm cursos e que têm empregos de todo o género e portanto essas pessoas vêm com um problema qualquer, ou com um problema no casamento, ou um problema de pânico, que é hoje uma das narrativas mais frequentes e isso quer dizer também que os consultórios têm hoje narrativas mais pobres do que teriam no tempo do nosso Homem dos Lobos, ou do Homem dos Ratos ou da Dora.

Hoje é como se houvesse um excesso de realidade que entra pelo consultório. Não são apenas os problemas do imaginário que vêm para o consultório, a psicanálise como uma espécie de autoconhecimento. Não! As pessoas trazem problemas concretos: estou desempregado, tenho uma cancro de mama, morreu-me um filho... As pessoas precisam de escuta que terá que ter em conta a dimensão de sonho, interpretação e pergunta, mas também a consciência dos limites, porque quando a narrativa é muito poderosa, muito real, o trabalho do psicanalista fica mais estreito e limitado.

O analista está sempre a lidar com o desconhecido, com o novo, e portanto tem de ter sempre uma tolerância ao seu não saber porque senão ele aplica um menu sobre a escuta do paciente, o menu muitas vezes tem a ver com o seu próprio narcisismo, e isso não! O analista lida com o novo e aprende com a pessoa.

Hoje temos um pânico que, no caso do meu consultório, vem muito da perda de ilusão, da falta de um horizonte de futuro. No presente estamos num tipo de capitalismo que vive do precário e da catástrofe, estamos num tempo em que não temos um telos, quer dizer, não podemos fazer um projecto. O ser humano está preparado para que se diga: o próximo ano vai ser melhor. Eu não posso dizer: bom para o ano vou ter um treco, porque isso vai ter um efeito absolutamente paralisante, de choque.

Isso faz-me pensar na diferença entre a angústia existencial e o pânico.

Sim, o pânico é uma coisa muito mais concreta, porque a doença de estar vivo, de estar triste, isso acompanha-nos. Mas hoje estamos num tempo que parece às vezes o Paleolítico onde o mais forte é que se safava. Estamos num tempo em que há uma naturalização da vida, isto é, eu deixo de ser sujeito para ser indivíduo, ora a psicanálise destina-se à construção do sujeito, mas dizem assim: “Não, mas você é um indivíduo e portanto como indivíduo você está em competição”. Eu estou na natureza, sou natureza e não sou cultura. Ora se sou natureza então a natureza é muito imprevisível. E portanto o pânico tem a ver com esta naturalização da vida, basta ver o canal do National Geographic para ver que a natureza é violentíssima.

 

 

Antes de terminarmos gostávamos que nos falasse do que é que acontece numa análise.

Na minha perspectiva, a análise permite o acesso às riquezas desconhecidas do sujeito. Isso obriga a que se crie um campo analítico, transferencial e contratransferencial, entre o analista e o paciente.

Ao mesmo tempo o analista também melhora com o seu paciente, com o que aprende com ele, neste aspecto é uma profissão muitíssimo privilegiada.

No entanto, é necessário uma psicanálise que se adapte ao mundo actual e assim caberá também às instituições psicanalíticas refletirem sobre isso, porque hoje é muito difícil uma pessoa fazer uma análise clássica, quer por razões económicas, quer por razões de tempo, quer mesmo por razões de atenção.

É preciso percebermos que estamos num mundo onde a economia é uma neo-religião, profundamente assimétrica e onde a globalização foi feita à custa da desvalorização do trabalho. A desvalorização do trabalho leva a que as pessoas já não tenham as condições, digamos quase aristocráticas, que tinham para fazer uma análise. A psicanálise tem, pois, de se democratizar!

O que levanta questões, não só da prática psicanalítica, mas também em termos de formação.

Levanta problemas ao nível da formação das sociedades que tutelam a formação dos psicanalistas. Estão, nalguns aspectos, no século XX e não no século XXI. Mas tenho esperança nas gerações mais novas e, pela minha experiência como formador no Instituto de Psicanálise, constato que há gente muito capaz, mais nova, muito inteligente, com vocação … talvez um pouco ortodoxos.

Sinto às vezes uma grande ortodoxia, por exemplo a ortodoxia Kleiniana que pode ser um fechamento a novas maneiras de olhar porque o miúdo de hoje já não é o miúdo que a Klein estudava. Ele começa a ver pornografia aos sete anos ou antes, no telemóvel. Os pais não são os mesmos, o mundo perceptivo não é o mesmo. No entanto, a inteligência actual não é muito diferente da inteligência dos gregos, é a mesma inteligência.

Dessa maneira as coisas que afectam o homem são sempre as mesmas: o amor, a perda, a morte, quer dizer que é isso que afecta desde a antiguidade o homem... Eu penso que mau grado toda a tecnologia, etc., perder será sempre pior do que não ter, que as questões do amor se continuarão a pôr, que a questão da morte é inultrapassável .

 

 

A tragédia humana continua.

 

A tragédia humana continua.

Quando falámos no futuro da psicanálise temos que ter em atenção que num mundo onde a economia se sobrepõe a tudo, onde as pessoas trocaram as bibliotecas pelos ginásios, a alimentação espiritual pela alimentação e pelos super alimentos, os grandes concorrentes dos psicanalistas, não são os psiquiatras, os psiquiatras também estão muito aflitos porque a medicação não lhes resolve os problemas dos seus pacientes, quer dizer, modulam a ansiedade, modulam a psicose, sim senhor, modulam, mas não resolvem.

A psiquiatria abandonou a fenomenologia e para sobreviver terá que regressar a ela. Mas hoje os nossos grandes concorrentes são os nutricionistas porque de alguma maneira esta operação de pôr no corpo, de pôr tudo no corpo e instagramar narcisicamente o corpo, faz com que a parte mais intelectual, ou como antes se dizia a psicologia das profundidades, seja substituída por uma psicologia da aparência e hoje somos todos afetados por isso.

Como se cuidar de mim fosse cuidar do meu corpo, apesar de obviamente também ser.

Obviamente que é cuidar do corpo, mas uma coisa é o corpo e outra a carne. Hoje liga-se a televisão e não há um psicanalista a falar. Se fizéssemos uma análise de conteúdo dos programas televisivos já não deve ir um psicanalista à televisão há quantos anos? Mas os nutricionistas estão lá todos os dias e as tarólogas também (mesmo no serviço público!) e os médicos e os padres e os economistas também!

 

Sim, mas também temos alguma responsabilidade nisso porque se por acaso temos um convite da rádio ou da televisão, os media esperam uma resposta muito rápida e nós não respondemos com esse imediatismo e portanto não temos lugar.

A psicanálise em Portugal teve o seu apogeu nos anos noventa do século passado. Publicaram-se livros, os psicanalistas estavam na rádio e nos jornais. O Expresso inaugurava a sua revista com a crónica de Carlos Amaral Dias: Um Psicanalista no Expresso do Ocidente.

E hoje?

Hoje temos a Clara e a sua banal retrosaria. A psicanálise é forcluída do espaço público, das universidades, e recolhe hoje a um limitado redil clínico. É mais, e só, uma das terapias disponíveis do insalubre mercado das psicoterapias.

 

E porquê? Porque chegamos a aqui?

Não tenho uma resposta. É curioso, porém, que uma regressão a uma psicanálise meramente clínica (mas institucionalmente promovida e ilusoriamente exercida no conforto dos consultórios privados) seja concomitante da monetarização do mundo. É já evidente para todos que o fechamento clínico-financeiro será fatal.

Em Portugal, ao contrário de França, por exemplo, perderam-se as vozes! Algo começa a agitar-se, porém, como no mar: a ondular, a renascer, a advir. Exemplos, entre outros, é a celebração internacional do nascimento e da obra de Freud pela Free Association, ou a edição da revista de psicanálise e cultura Dora em 2020 pela VS. Revista de vozes comunicantes. Revista que terá uma redacção e circulação internacionais de Lisboa, a S. Paulo, a Zurique, a Nova Iorque.

EDOI LELIA DORA!

Âncora 4
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