Se bem me lembro, Karl Kraus, um contemporâneo, dizia que «o estado em que vivemos é o verdadeiro apocalipse: o apocalipse estável».
A epidemia de coronavírus ― epidemia oportunista da estação e da televisão ― reconduz-nos a um nocturno vulgar, reenviando-nos à experiência medieval da praga, sempre ligada à noção de poluição moral, procurando-se, ontem como hoje, um objecto contrafóbico oriental alheio às comunidades atingidas.
Estamos, como num pesadelo de repetição, em 25 de Maio de 1720, quando o navio Grand Saint Antoine, vindo da Síria, atracou em Marselha. Sete tripulantes doentes ficaram de quarentena, o que não impediu o furor pulmonar e cem mil mortos.
Wilhelm Reich, psicanalista, escreveu: «existe uma energia orgânica mortal. Ela está na atmosfera». Atmosfera esta hiperbárica, na voz de Rimbaud:
«O ar e o mundo já não demandados. A vida.»
E isto muito antes dos grandes aeroportos, dos aviões, da velocidade trágica.
A tese de que partilho é a de Paulo Varela Gomes (1981), que, acerca desta matéria, propõe que se ponha de parte a biologia.
«É evidente que o centro da questão não está nos factores biológicos da Peste, mas sim nos organismos sociais humanos que a contraem, a espalham (e a protegem?). Seguidamente, é necessário não procurar na infra-estrutura das formações económicas e sociais a inserção directa da doença; a Peste é, com efeito, um fenómeno ideológico e político, isto é, pertence ao Estado e aos seus Aparelhos.»
O que é dito é que a Peste, quer na Idade Média quer no Antigo Regime, foi uma doença das formas de dominação de classe, dos aparelhos de Estado e das ideologias.
Tal como no passado, o coronavírus serve para impor a ordem, higienizar o corpo e a cidade e relativizar o contrato social.
Ele permite controlar, vigiar e punir.
O coronavírus intensifica a biopolítica e o niilismo, a máscara e a assepsia.
Trata-se de um vírus, ou melhor, de uma estratégia higienista, antipsicanalítica pela acentuada diminuição da empatia, pela distância social legitimada e pela perda da poesia do real quotidiano.
Esta política espectacular acentua a ideologia da saúde (por falência da ideia de salvação) e forclui a morte, esse tabu excelentíssimo de agora.
Desinfectamos magicamente as mãos porque somos contra a morte.
Susan Sontag, no seu magnífico ensaio «A Doença como Metáfora», afirma:
«A doença é o lado sombrio da vida, uma espécie de cidadania mais onerosa. Todas as pessoas vivas têm dupla cidadania, uma no reino da saúde e outra no reino da doença. Embora todos prefiram usar somente o bom passaporte, mais cedo ou mais tarde cada um de nós será obrigado, pelo menos por um curto período, a identificar-se como um cidadão do outro país.»
Sim. Última palavra «sim».
Com o avanço das disciplinas médicas, a vacinação, os remédios, tínhamos pensado que a Peste tinha acabado.
E mal se aquietou a ideia de dilúvio, ela voltou.
E voltou Paulo, porque «cada vez que a existência de um sistema e das suas racionalidades ideológicas cimentadoras é posta em causa, a "Peste" volta a emergir. No descontrolo, na exuberância gestual, no barulho, no furor. A Peste, a música, a dança, o álcool, a droga, a violência sem discurso de razão».
E é ainda e sempre Kraus: pois tudo o que não foi destruído pela peste sê-lo-á pela imprensa.
LAUS DEO.