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Emílio Salgueiro

Psicanalista, Lisboa

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Quem é o Emílio Salgueiro? 

 

Tenho mais idade do que gostaria, não vejo inconveniente em revelar que fiz 83 anos. Tive, portanto, uma vida longa, de certa maneira com sorte, várias sortes. Até aos 65 e aos 70 não me preocupava muito a morte, depois passei a ter um bocadinho mais de respeito… 

 

Eu gosto muito do Picasso, tenho imensos livros sobre ele. E houve uma altura em que o Picasso tinha, suponhamos, 70 anos; 70 naquela altura já era muito, depois fez 75 e depois fez 80. Pensei: “Se calhar o Picasso, com a sua capacidade e criatividade não vai morrer, vai escapar…”. Faz 85, 90 e eu digo: “Está confirmado!”. É claro que aos 93 morreu. Mas isto é só para falar um pouco sobre a minha relação com a morte e com a vida, isto de estar vivo é muito bom.

 

Estava a ouvi-lo e a pensar que também estava a falar da importância da criatividade na sua vida. 

 

Para já, eu gosto muito de ter livros e gosto muito de ler. Destes livros que tenho aqui no consultório, cerca de 85% são de psicanálise, mas há também muitos sobre neurociências, pintura … É claro que não é possível ler esses livros todos, nunca. Mas o que eu acho graça é que, de vez em quando, encontro um que nem me lembrava que tinha comprado. Puxo o livro, pelo menos folheio-o e depois, se for interessante, acabo por o ler. 

 

O meu pai era editor, tinha uma empresa chamada “Editorial Inquérito”, que era uma editora dos anos 40, 50, 60 até setenta e tal, que teve uma importância muito grande na cultura portuguesa e para a cultura portuguesa. Os primeiros autores, quer ingleses, como Dickens, quer franceses, como o Cocteau, mais os portugueses, o Manuel da Fonseca, o Fernando Namora, foram, em primeiro lugar, editados pela editora do meu pai. Teve livros apreendidos, mas isso é outra história. A minha relação com os livros… é uma paixão. 

 

Tenho várias paixões e esse é um problema porque tenho muitos livros também sobre poesia e filosofia. Tenho muitos livros do Edgar Morin, que é uma das referências importantes na minha vida. Eu acho que ele até diz coisas interessantes sobre a psicanálise; não é pessoa favorável à psicanálise, mas também não é opositor.

 

Enfim, há várias pessoas que têm importância, que eu considero que são importantes, mas em relação à psicanálise ou não falam, ou falam com um bocadinho de desconfiança. Eu acho que não tem grande importância. Mais, há pessoas que se mostram muito favoráveis e até cultores da psicanálise e que eu acho que entendem menos bem o que é a psicanálise. Há um psicanalista francês, que eu gosto muito e que é pouco falado cá, o J. B. Pontalis. Talvez em Portugal o seu livro mais conhecido seja o “Vocabulário da Psicanálise”, dele e do Laplanche.

 

 

 

Pode falar sobre o seu percurso até à Psiquiatria e depois à Psicanálise?

Quando vim de Angola, fui trabalhar como assistente do psiquiatra Barahona Fernandes, que era também professor de Psiquiatria. Havia um assistente dele que tinha ido para a Guiné e eu disse: “Enquanto ele estiver fora, quero o lugar.” Mas zanguei-me com o Barahona Fernandes quando regressou o tal colega, que era o Eugénio Cruz Filipe. O que aconteceu foi que me disseram na Secretaria da Faculdade que eu já não trabalhava lá, porque o colega já tinha voltado. Fiquei ofendidíssimo e desapareci, saí da Psiquiatria. Nessa altura, eu não falava muito, acho que é preferível falar, mas não falei, saí! É este um dos segredos da minha vida. 

 

E entretanto… bom, agora mais um segredo. Eu era anti-salazarista e, de vez em quando, havia uns abaixo-assinados para ele ir embora, que eu assinava. Ingenuidade, é evidente que nenhum abaixo-assinado levaria o Salazar a ir-se embora, pelo contrário, fiquei a ter uma ficha na PIDE. Resultado, quando já estava em África, concorri a um lugar de médico no Santa Maria e por causa da PIDE tive uma resposta negativa. 

 

Isto aconteceu em finais de 1960. Nessa altura fiz uma exposição dirigida ao Salazar, perguntando exatamente o seguinte: “Estou aqui em Angola como médico militar e não posso ser médico civil no Hospital de Santa Maria? A minha actividade política é praticamente nula, manifestei a minha opinião conforme previsto na constituição; não quero fazer política, quero apenas trabalhar aqui…”. E o Salazar autorizou que eu trabalhasse no Hospital de Santa Maria.

Mas, quando me zanguei com o Barahona Fernandes, verifiquei que podia concorrer ao internato de Neurologia e fiz o internato todo. De maneira que a minha primeira especialização foi essa, fiz o exame à Ordem e fiquei Neurologista. 

Só mais tarde resolvi fazer o exame à Ordem de Psiquiatria, porque tinha trabalhado em Psiquiatria. Isto embora trabalhasse em Neurologia, trabalho do qual gostei muito, muito!

 

Ainda hoje é o responsável pelo Seminário de Psicanálise e Neurociências na Sociedade Portuguesa de Psicanálise. 

 

Exatamente. A raiz vem daí. E, como referi, depois fiz o exame à Ordem de Psiquiatria. Entretanto ia fazendo formação em Psicanálise até que, em 1984, entrei na Sociedade, onde fiz trabalho de supervisão com o Francisco Alvim e com o Pedrosa Flores. 

Em 1967, comecei a fazer uma análise com o João dos Santos, a seguir fiz dois anos com o Francisco Alvim e depois ainda fiz mais cinco anos com o Pedro Luzes. Isto, ao longo de 14 anos.

 

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Fez análise com dois dos fundadores da psicanálise em Portugal.

 

Fiquei a conhecer todos, mas de quem eu aprendi mais foi do Santos e do Luzes, acho que foi com quem mais aprendi a ser pessoa. E fiquei um bocadinho contrariado quando o Luzes me disse: “Acho que já chega”. 

 

Aprendi muito com o João dos Santos, comecei a dedicar-me à psiquiatria e à psicanálise infantil. Aprendi não só com o seu saber, mas com ele, propriamente.  

 

Trabalhou com crianças durante muito tempo.

 

Sim, em privado e sem ser em privado. Eu trabalhei no Instituto Aurélio António da Costa Ferreira, que foi criado para tratar os indivíduos maltratados da Primeira Guerra Mundial, os amputados. Uns anos depois, passou a ser o Instituto onde se observavam as crianças que precisariam de ensino especial. Foi o primeiro sítio onde trabalhou o João dos Santos. Devo dizer que gostei muito do trabalho no Costa Ferreira, tinha uma equipa com psicólogos, com professores - eu era o único psiquiatra. Isto foi de 1981 a 1986. 

Depois o Costa Ferreira passou a ser o Centro de Educação e Desenvolvimento, ou seja, deixámos de ter lugar lá dentro. Mas eu continuei a ser médico escolar durante mais uns anos, já fora do Costa Ferreira e depois, enfim, houve várias peripécias, não é, em relação a ser médico escolar, de que também gostei. Eu, as coisas que faço, de modo geral, gosto.

Comecei a colaborar mais com o Instituto de Psicanálise, que não existia, foi criado a certa altura. O Barahona Fernandes queria que o Instituto de Psicanálise fosse um departamento da Ordem dos Médicos, o que encontrou fortíssima oposição das pessoas que lá estavam. Diziam que a psicanálise não é uma medicina, pode haver médicos com certeza, mas pode haver outras especialidades. Bom, isto foi ouvido pelo Marcelo Caetano, que não se opôs, e portanto o Instituto de Psicanálise começou a ter autonomia a vários níveis. 

 

Mas eu também trabalho em consultório desde 1967. Quando regressei de África, estive num consultório na Rua Augusto Gil e aqui, neste espaço, estamos há 21 ou 22 anos. Sinto-me bem aqui. Isto está cheio de amigos, e também considero os livros meus amigos.

 

Ainda faço bastante trabalho em psicoterapia, alguma psicanálise e supervisão. E o que faço, gosto, e acho que faço bem. Hoje em dia não tenho crianças, tenho alguns adolescentes, adultos e até idosos. E vou escrevendo, tenho muitos trabalhos inéditos, assim umas dezenas de trabalhos inéditos.

 

 

Vai escrevendo e vai-se dedicando aos seus autores preferidos.

Exatamente, todos nós temos os nossos autores favoritos. Este senhor, o Edgar Morin, eu gosto muito dele, não é psicanalista, nem pouco mais ou menos, é sociólogo, psicólogo, filósofo. Eu gosto das pessoas que se interessam por muita coisa, acho que essa é uma das razões. Tem cem anos, ainda está vivo. Escreveu dois livros aos cem anos, um deles, que já li, chama-se “Leçons d’un siècle de vie“.

 

O Edgar Morin, embora não sendo psicanalista, é uma das pessoas que tem importância para si, o Pontalis é outra.

 

Mas o Pontalis é psicanalista, é um psicanalista especial, muito especial. Há também um filósofo austríaco, Karl Popper, que tem livros muito interessantes. Uma coisa que ele diz, e que é a crítica principal que faz à psicanálise, é que um conjunto de ideias tem que poder ser falsificável, isto é, se não é falsificável, desconfiamos muito sobre a validade. E ele diz: “A psicanálise não é falsificável, uma interpretação ou outra, ou outra, tudo serve”. Eu acho que não é bem assim e as pessoas, a psicanálise, não dirão a mesma coisa, mas andam no mesmo “aro”, e esse “aro” pode ser falsificável.

 

Aliás, as pessoas quando estão na formação inicial, quando não têm receio de falar livremente, dizem disparates, depois vão dizendo menos, e depois vão fingindo que nunca dirão disparates, o que não é verdade. 

 

Eu falava muito de Karl Popper quando dava aulas. E nas aulas que dei no ISPA (Instituto Universitário), durante 20 anos, citava muito esse senhor, que considero dizer coisas importantes para os psicanalistas.

 

Do seu ponto de vista, o que é que alguém pode ganhar com uma psicanálise? 

 

Uma pessoa pode responder a isso: seguramente vai passar a conhecer-se melhor. Se calhar há coisas que fica muito contente por conhecer melhor, outras que não fica tão contente por passar a conhecer, mas essas que não gosta muito vai integrá-las, portanto é só isto que eu posso garantir. Sinto-me melhor, provavelmente, não mais do que isso, provavelmente…

 

A psicanálise também nos ajuda a pensar melhor…

 

Isso com certeza, e a ser mais livres no pensamento. Por exemplo, a ligação forte que eu sinto com o Pontalis tem a ver com isso, mais ninguém fala no Pontalis em Portugal. Morreu com 90 anos, no ano passado, mas os livros que ele tem, tem para aí uma dúzia de livros fininhos, são um prazer de ler para os psicanalistas.

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Vou explorar. 

 

O Pontalis é um indivíduo que começou pela filosofia e pela política. Era amigo do Sartre e passou a colaborar na revista dele, a “Les Temps Modernes”. Comprei muitos exemplares da revista mas devo dizer que gostei mais de ler os livros do Pontalis do que ler a revista do Sartre. Mas ele colaborou na revista e teve um lugar na redacção.

 

O que é que faz de alguém um bom psicanalista?

 

(risos) Eu acho que não sei responder a essa pergunta. Volta e meia passam-se coisas à minha volta, de pessoas que eu conheço, pessoas amigas, sobre as quais automaticamente faço uma leitura e penso: “isto não é assim”. Mas é uma leitura que guardo para mim, e depois, passado um tempo, confirma-se que não deu bom resultado… Portanto, adquire-se um aspecto de personalidade psicanalítica. Eu diria, estar-se à vontade com este tipo de intuições, descobertas, que se fazem, mas que não se dizem.

Isso é verdade mesmo numa sessão. Muitas vezes pensamos em várias coisas que mantemos para nós.

 

É verdade mesmo numa sessão, sim, sim. Aprender a estar calado, é a melhor ajuda que podemos dar, é estar calado em determinadas alturas, isso, sem dúvida. Depois são precisos anos de prática, anos de supervisão, conversar com colegas, ler, enfim…

 

E ter uma vida para além da psicanálise.

 

Ai, isso tem que se ter, tem que se ter. Eu tenho em minha casa uma biblioteca do tamanho desta aqui, que não é nada de psicanálise, é de literatura, é de política, é de filosofia, é de história, romances, poesia… Aliás, eu acho que a psicanálise tem muito a ver com poesia. Há um respeito que se tem que ter em relação à poesia, e uma maneira cautelosa de nos aproximarmos da poesia, enriquecedora, que tem grandes parecenças com uma boa intuição psicanalítica.

 

Penso que a psicanálise tem também a ver com os policiais, não com todos os policiais, mas com a Agatha Christie claramente (risos)…

 

(risos) Um dos prazeres da minha vida é ler livros policiais. Já li uns 25 livros da Agatha Christie, também gostava muito do Ellery Queen, hoje em dia gosto menos, não acho o Ellery Queen tão profundo como a Agatha Christie era. Eu gosto muito de ler policiais.

O policial tem muito a ver com a intuição, com a descoberta. Há um colega nosso brasileiro, entretanto falecido, que escreveu uma série de policiais, o Luiz Alfredo Garcia Roza.

 

Não conheço. Mas uma das coisas que tenho recomendado aos psicanalistas é que leiam poesia, e recomendo, por exemplo, o livro de poesia da Sophia Mello Breyner, do qual saiu uma segunda edição com mais alguns poemas dela e ao mesmo tempo um livro de prosa. Eu tenho uma fraqueza pela Sophia de Mello Breyner, uma fraqueza não, é uma força! Um gosto muito grande.

 

 

Ainda hoje se mantém a ideia de que a psicanálise é igual à psicanálise do tempo de Freud… A psicanálise foi sempre muito criticada, mas a crítica vem desde a sua criação, não é invulgar. Qual é a pertinência da psicanálise nos dias de hoje? 

 

Isso só revela a ignorância das pessoas e podemos dizer isso às pessoas. A psicanálise não é uma fotografia, é um vídeo, está sempre em continuidade. Já quem parou no Freud, é uma fotografia, portanto não é psicanálise. 

No presente, sinto que se confunde sofrimento mental com ansiedade e tristeza, e com outros afetos que fazem parte do Homem. Haverá aqui, às vezes, uma confusão entre o ser Homem e o não ter nenhum sentimento negativo….

 

Mas isso faz parte daquilo que eu estava a dizer há um bocado, em relação às fantasias iniciais que se tem quando se inicia uma análise, que vai sair uma pessoa perfeita, sem defeitos, sem sofrimentos, sem angústia, sem depressão. É tudo mentira, é tudo fantasias; tudo faz parte, tudo faz parte do homem e da mulher, é evidente. Uma pessoa talvez se mova melhor. Eu era um indivíduo… com facilidade angustiado e passei a saber entender-me melhor com a angústia. Não é deixar de ter períodos de angústia, mas durante um tempo tudo fica composto.

 

Sente que mudou o que traz as pessoas ao consultório ao longo dos anos? 

 

Só se vem cá se se tem sofrimento. Um sofrimento que uma pessoa não consegue arrumar sozinha.

 

Mas esta queixa do sofrimento, sente que mudou?

 

Não, acho que não. Não há grande mudança, não. Pergunta-se muito se o Covid modificou as pessoas. Sim, talvez tenha modificado, mas o sofrimento que trazem não é do Covid, é de outra coisa. O Covid pode aparecer no meio da conversa, mas acho que as pessoas percebem, a certa altura, que não é daí.

 

Nestes últimos dez anos houve também muitas mudanças na forma como as pessoas se relacionam.

 

Ah sim, houve mudanças sociais importantes, a facilidade com que os casais se separam, por exemplo. Nem há comparação, se não se entendem separam-se, não se esforçam por muito mais, dão um tempo, normalmente nascem os filhos, mas quando os filhos têm três, quatro anos, é a altura. É bom ou é mau, não sei. As pessoas não podem ficar juntas por obrigação. Isso aí houve um aumento de liberdade em relação a antigamente, em que as pessoas iam aguentando muito tempo péssimos casamentos. Essa é uma mudança, sim.

 

E para finalizar, também gosta de ler entrevistas?

 

Gosto, gosto, de boas entrevistas, sim.

 

Esperemos que fique satisfeito com a nossa.

 

Eu posso ficar satisfeito se a Alexandra ficar contente com esta conversa. Imagino que, se calhar, de algumas coisas gostou, de outras nem tanto assim, mas pronto, ficamos por aqui (risos).

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