with
Howard Levine, Ofra Eshel, Riccardo Lombardi
Joshua Durban, Anne Alvarez, Avner Bergstein
Judy K. Eekhoff, Robert Caper, Leopoldo Bleger
Sebastian Thrul, Steven Jaron
Teresa Abreu & Csongor Juhos
FREE ASSOCIATION LISBON
Afinal quem é o Filipe Sá? Não te expões muito.
Não sou assim muito exposto no campo profissional, é um facto, dei aulas e vou fazendo algumas coisas, mas isso é a parte menos interessante. Sou mais aberto e disponível nas relações de intimidade. A minha aproximação à psicanálise talvez possa trazer alguns dados sobre essa pergunta inicial, contar alguma coisa de mim.
Fiz umas leituras soltas na adolescência e na faculdade, sobre a Psicanálise, mas o meu percurso académico incidiu, todavia, na boémia Coimbra e, secundariamente, na psicologia social e do trabalho. Comecei por trabalhar em empresas. Queria independência rápida, acho eu. O problema é que não gosto nada de trabalhar. Quando iniciei a minha análise pessoal, aos 26 ou 27 anos, é que comecei, de alguma maneira, a sentir um interesse mais activo sobre o exercício da clínica. Mais profundamente, o meu desejo de ser psicanalista prendia-se com uma certa ilusão de que por esta via poderia perpetuar uma forma de condição infantil. Sempre tive muita dificuldade em ser adulto, acho que nasci criança, fui sempre criança e vou morrer criança, isto é assim uma condição.
Neste sentido, aproximei-me da psicanálise de uma forma bastante interesseira. Eu achei sempre que os psicanalistas não trabalhavam, que isto não é trabalho. Não no sentido da "profissão impossível" (Freud), mas em termos de esforço, obrigação, pôr a "mão na massa", ser um funcionário. Portanto, havia assim uma atracção que cruzava o interesse intelectual e a curiosidade que eu tinha desde muito cedo sobre a vida psíquica, com uma espécie de possibilidade de continuar, como quando era criança, a ler histórias, a ouvir histórias, a participar em histórias, com uns All Star nos pés. Claro que isto não é bem assim, embora trabalhemos de perna esticada, o que é um privilégio. Se não estivermos mortos, claro!
Portanto, é um bocado isso, esta criança continua ainda à procura de sensações, de descobertas e de estar com pessoas sentindo que não trabalha, sinto isto muitas vezes, tenho até um certo embaraço...
No presente estamos novamente a viver essa cultura do trabalho? O dinheiro em primeiro plano?
Isso horroriza-me imenso. A minha filha mais velha está perto de ter de escolher a sua formação e preocupa-se com as questões de dinheiro, fala-me em ter de "ganhar a vida" ... esta expressão é horrível... "ganhar a vida"? A vida está ganha à partida!
O que estás a dizer faz-me pensar que todos nós temos um mundo mais ligado à fantasia, à criatividade e um mundo mais ligado à realidade da vida quotidiana.
Na psicanálise sinto que consigo conjugar, emprestar com alguma utilidade essa liberdade e esse gozo infantil à condição responsável da função clínica. Talvez essa seja mesmo a minha maior virtude pessoal, digamos assim. Mas na verdade mantendo uma fantasia de que continuo a não ser um adulto a trabalhar, porque isso mantém-me a alegria. Se eu pensar que tenho de ir trabalhar, deprimo-me. Infelizmente há muitos dias em que me sinto um mineiro cumpridor.
A maioria das pessoas que nos procura estão em sofrimento?
Sim, acho que há sempre sofrimento e se não há, ou parece não haver, nós descobrimos com os pacientes por onde é que dói, não é? Há pessoas que expressam a dor das formas mais incríveis, queixando-se, por exemplo, de falta de dinheiro (doer na carteira), pode doer no corpo, no carro estragado, na casa abandonada, sei lá... Mas há sempre uma dor em qualquer lado.
Há uma dor típica dos nossos tempos?
Não sei bem, mas pensando sobre isso, sofre-se essencialmente de esquecimento. A Psicanálise, enquanto processo psicoterapêutico, tenta devolver o sujeito que nos procura ao reencontro com duas dimensões essenciais de si próprio. Propõe um reencontro com a infância, naquilo que ele quer esquecer, de bom e de mau. Outro eixo é a condição do reencontro com aquilo que quer esquecer de um humano mais ancestral. Ou seja, recuperar não só a história que o paciente pretende esquecer/recalcar de si próprio, que é importante, mas também recuperar este lado humano um bocado esquecido, que é o humano primitivo, trágico, feroz, delirante, poético, devaneante, quimérico ... recuperar um lugar mais livre para a vida inconsequente e inocente.
Eu tenho para mim um ideal do trabalho analítico. Há uma profissão pela qual tenho imensa admiração, a arquitectura. E no outro dia estava a ler sobre o Aravena, arquitecto chileno, que ganhou o Pritzker em 2016. É extraordinário, o que ele fez era o que eu gostaria de fazer como analista. Na linha da arquitectura social, junto da população carenciada e sem condições dignas de habitação, o Aravena trabalhou em parceria directa com as pessoas. Ele construiu meias casas, ou seja ele conseguiu participação do Estado para construir, com orçamentos limitados, a estrutura, o esqueleto, vá, de cada casa. Depois construiu na íntegra meia casa. Depois, quem foi para lá viver teve de construir o resto. Ou seja, aquilo que é uma necessidade, uma carência, uma pobreza, a miséria, transforma-se numa ferramenta do próprio a partir da proposta de um parceiro criativo. Aquele arquitecto, em vez de estar preocupado em discutir e em fazer coisas que interessem essencialmente a outros arquitectos, fez qualquer coisa que é dar vida a uma população.
E que permitiu àquela população que, cada um por si, modelasse a sua casa em função das suas necessidades.
Em função das suas necessidades, da sua arte, da sua inspiração, daquilo que foi aprendendo com a arquitectura, com a construção, e fez disso um projecto de vida, um "motor de busca" psicológico, anímico e com efeitos concretos de transformação, utilidade e melhoria da qualidade de vida. Extraordinário, não é? E essa parceria em que o arquitecto não faz tudo, mas mostra compaixão, verdadeira empatia e interesse sobre as necessidade reais daquela população, não querendo retirar as necessidades das pessoas, o que fez foi fazer dessas necessidades ferramentas para eles próprios se construírem também como pessoas. Mas é difícil exercer uma psicanálise nesta linha, ou seja, é difícil porque nós muitas vezes ouvimos dizer,“ ah, mas aquilo que tu queres discutir é psicoterapia não é psicanálise". Mantém-se uma postura de defesa da “chama sagrada” da psicanálise, como qualquer coisa que está para além da psicoterapia. Não me identifico nada com isso. Não me interessa nada a psicanálise como qualquer coisa divorciada da clínica ou da relação com cada um dos pacientes. Ou seja, eu quero ser o psicanalista-arquitecto que na relação com cada paciente consegue construir qualquer coisa em que ele queira participar para melhorar a sua vida, diminuir o seu sofrimento. Não estou nada preocupado em construir "obra" para outros psicanalistas.
Muitas vezes oiço dizer que a psicanálise é uma terapia desactualizada, que não tem pertinência hoje em dia.
Eu não sinto nada disso, não sinto na clínica, não sinto na sociedade, não sinto nas pessoas em geral. Quando dei aulas, por exemplo, senti sempre as pessoas interessadas.
Sinto que há vida na Psicanálise e com a Psicanálise, que há interesse. E haverá muito mais à medida que se for expandindo e assumindo na clínica esta linha do two-person psychology, onde o próprio analista é assumido como agente de transferências sobre o paciente.
Portanto, o psicanalista sente?
Nem sei que condição é que poderia ser um psicanalista que não sente, não é? Acho que também nos pagam para nós sentirmos, para nos afectarmos. Talvez não sempre no mesmo grau do paciente, mas cabe muita coisa na função analítica, para além da compreensão e da interpretação explicativa, esclarecedora. Tal como, sentir, sonhar, fantasiar, errar, confundir, ignorar...no fundo coloca-se em cena algum narcisismo do analista. Como é que se pode imaginar que se pode escapar a isto?
É isso que faz funcionar uma terapia?
Nunca sei muito bem o que é que está a funcionar numa análise, ou mesmo se está a funcionar...mas procuro sabê-lo, tenho essa preocupação. Procuro fazer esse exercício, ir percebendo se há transformações. Perceber se de facto há transformações no campo mental e da vida do paciente. Por exemplo, se o paciente antes não sonhava e se agora faz sonhos. Ou se coloca conteúdos de outro calibre na relação comigo, se há transformações nas relações com as pessoas da sua vida, na relação com a dor, se tem mais capacidade de ter prazer, de se emocionar. Estou sempre atento a isso. O que faz funcionar isso, ainda é um bocadinho difícil de perceber, não é?
O Bion diz que a psicanálise se articula sempre entre o desconhecido e o fanatismo. Todos falamos muito do desconhecido, mas falamos pouco do fanatismo e eu acho interessante a ideia do fanatismo, na medida em que valida a condição delirante do analista. Muitas vezes nós somos absolutamente delirantes, absolutamente concretos, absolutamente actuantes, absolutamente devaneantes. Criamos convicções fanáticas, dizemos com uma convicção enorme o que estamos a sentir e/ou a pensar em relação ao paciente ... é uma atitude bastante fanática, não é?
Nos lugares que são um bocado loucos de fanatismo, onde paciente e analista participam, é possível desenvolver a virtude psíquica da paixão. Sendo que, por outro lado, a paixão é um estado meio psicótico, quer dizer, meio de confusão, de projecção maciça. Mas é também condição de acesso e superação. Há pouco perguntavas isso, de que sofrem as pessoas hoje em dia...é um bocado isto, há um certo vazio disto, de fanatismo, de paixão, de crença absoluta em qualquer coisa, de entrega e rendição...as pessoas estão tão lúcidas que ficam depressivas, é uma desgraça.
Perdeu-se uma crença em algo maior, que dê sentido à vida... passou-se a procurar o sentido na vida quotidiana, no concreto...
Exacto, no próprio indivíduo...
Clique na seta para subir para o início da próxima coluna.
E as pessoas ficam perdidas, há um esvaziamento.
A psicanálise alinha um pouco, perigosamente, na ideia de que "é dentro de ti que está a riqueza". Mas, quer dizer, está dentro e está fora, ou seja, também o encontro com o que de fora é absolutamente irresistível, estonteante, belo, maior, como dizias, faz-nos sentir vivos, podendo criar em nós humanos uma condição de rendição. Na paixão nós rendemo-nos ao outro, o outro toma conta de nós embora possa ser um “outro” imaginário. Eu tenho muito interesse com os pacientes em recolocá-los perante absolutos. Por exemplo, interessam-me também muito as questões ligadas à angústia de morte. A morte é um outro absoluto que anda por vezes muito ausente, como se só estivesse presente nos doentes, nos hospitais, nos enterros...mas não é assim, está de facto sobre nós como um absoluto maior que nos propõe também uma rendição e, por isso mesmo, uma transcendência.
A nossa mortalidade.
Pode não ser assim tão mau, podemos render-nos com paixão, sofrimento, martírio mas isso não tem de ser uma fraqueza, um fracasso, uma falha do Eu. Isto também é uma tragédia do presente, tudo parece ser uma falha do Eu.
Alexandra: Até porque esse ideal do eu tão ligado ao presente, ao concreto, tão ligado ao que fazemos, conduz à depressão.
Essa "opção" é já em si mesmo depressiva porque é solitária, é isolada, sozinhos somos muito pouco.
E quando não trabalhas, fazes o quê?
Como o que gostava mesmo era de não trabalhar nada, acabo por trabalhar mais do que devia. Também tenho o síndrome do retornado que veio de África sem nada, medo de voltar a esse lugar em que senti a angústia de ruína dos meus pais. Embora tenha esta consciência, tenho dificuldade em transformar isto. Mas de qualquer maneira, faço muita coisa. Por exemplo, toco bateria (salvo seja), faço ensaios com colegas. Por acaso, temos uma "banda" que é só psis (risos). A música é um universo muito próximo da minha vivência, em minha casa toda a gente toca e sabe música, eu sou claramente o amador wanna be. De resto, levo as filhas à praia, estou com amigos, vou ao cinema, viajo, a vida normal.
Então tens vida.
Sim, tenho vida mas não separo. Houve uma altura em que separava. Achava assim, há o trabalho e depois há outra vida e se eu não trabalhasse tinha outra vida.
Já percebi que isto também é um erro. Não há nada outra vida. É terrível. Isto é tudo vida, vir aqui, jogar à bola ou estar na praia. Já vou achando que isto é tudo mais ou menos vida. Eu tenho a bateria no consultório, um bocado escondida, mas está cá. Portanto, aqui eu também trago o lado "músico", trago o lado infantil, cada vez mais isso está presente, portanto acho que me vou pacificando e nem sei se me daria assim tão bem com essa coisa de não ter de vir ao consultório.
Quando somos procurados por pessoas com referências muito diferentes, valores muito diferentes, é um desafio para nós porque não reconhecemos, interrogamo-nos, temos mais dificuldade no sentir, em perceber o mesmo conceito...
É verdade mas, no fundo, cada pessoa é um mundo e pode surpreender-nos com questões radicalmente diversas das nossas próprias vivências. Independentemente da sua matriz cultural. Eu trabalho muito com o espírito do viajante, quer dizer eu tenho muito interesse em tornar-me um bocadinho aquela pessoa, aquele paciente. Por exemplo, estar com pessoas com uma forte religiosidade. Isso tem-me colocado questões absolutamente novas, ligadas à relação com o transcendente, com qualquer coisa mais espiritual se quiseres. Eu não conhecia Deus, posso dizer assim. Logo, não podia muito crer naquilo que não conheço. Aqui retorno a Freud. Acho mesmo que nós, no fundo, desejamos aquilo que conhecemos. Conhecendo Deus posso passar a ter uma relação com Ele. A psicanálise dá elementos a conhecer, emocionais mas não só, para que a pessoa deseje coisas novas, para que depois, havendo desejo, se inaugure então o campo do conflito. Porque sem desejo não há conflito nenhum, isso o Freud também nos ensinou, e o conflito é condição básica para a expansão da vida mental e emocional. Portanto, enquanto analista, também eu posso ser transformado. Eu não tive educação religiosa, não tive contacto praticamente nenhum com os textos religiosos, com a condição da prática religiosa. Mas há pessoas que ao trazer isso, de uma certa forma me tocam neste sentido. Activam em mim dimensões que eu sei que são da ordem da religiosidade e que me enriquecem bastante. Eu tenho muito cuidado, muito mesmo, até pudor, em fazer abordagens psicanalíticas à condição religiosa das pessoas. A não ser que sejam coisas muito extremadas, muito defensivas. Eu não conheço bem aquilo, é como estar com um estrangeiro que eu não conheço bem. E há estrangeiros muito interessantes. Se me perguntarem quem foram as pessoas, os teóricos, professores, ou os livros que mais me influenciaram... professores há um ou outro, mas foram sem dúvida nenhuma certos pacientes.
É uma boa maneira de terminarmos.
Ok, ficamos por aqui, como costumamos dizer.
Clique na seta para subir para o início da próxima coluna.