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Jaime Milheiro

Psicanalista

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Quem é o Jaime Milheiro?

É esta criatura aqui à sua frente (risos).
Psicanalista há muitos anos, sou Membro Titular da Sociedade Portuguesa de Psicanálise (SPP) desde 1981, altura em que apresentei um trabalho: “Orofobia… Uma Digressão Contra-fusional”, que mais tarde originou um livro. Didacta desde 1983, sou de longe o mais antigo membro da SPP, por isso me tornaram há pouco seu membro honorário. Mais antigo seria o meu amigo António Coimbra de Matos, mas ele deixou de pertencer à nossa Sociedade.


Tenho 85 anos de idade, continuo a trabalhar no consultório, escrevo todas as manhãs, nos últimos 20 anos publiquei dez livros, tenho mais dois em edição.

Descobri a Psicanálise relativamente cedo, quando fiz um estágio de Psiquiatria na Faculdade de Medicina de Paris em 1965 e 1966, com uma bolsa de estudo.
Quando terminei o curso de Medicina, em 1958, escolhi uma especialidade bastante obscura chamada Psiquiatria. Os psiquiatras seriam “todos malucos”, dizia-se. Ir para Psiquiatria colocava-nos de imediato num certo estigma. Mas decidi-me, impulsionado pela intensa curiosidade sobre a coisa psicológica que desde a adolescência me frequentava e também, certamente, por preocupações de ordem pessoal.
Sentia-me inibido, pouco seguro de mim, com várias dúvidas e conflitos, apesar de continuar muito bom aluno, cantar no Orfeão Universitário e de no poker ser ganhador. Tudo isso tinha sido acrescido na guerra de Angola, onde no mato assisti a gravíssimas loucuras, incorporado na primeira coluna militar que Salazar para lá mandou. Aquilo mostrava-me os seres humanos num terrível registo, noutra perturbação, noutro patológico desmando, noutra necessidade de tratamento.

Noutra dimensão?

Sim. Noutra dimensão e noutra exposição. Era a loucura em todo o seu mistério, encoberta de esplendorosos motivos. Escapei e sofri, mas ainda hoje frequentemente relembro.

 

 

Fui trabalhar para o Hospital Conde Ferreira, mas ao fim de dois anos já me encontrava profundamente decepcionado. A “miséria psiquiátrica” era muito pior do que havia sonhado, a degradação humana que por ali se vivia confrangia-me enormemente, ninguém cuidava da vertente nem do conhecimento psicológico que no “Crime e Castigo” e no “D. Quixote” na casa dos meus pais lera e relera. Aquilo não era mais do que uma nomenclatura botânica, que em nada correspondia ao que no início supusera e a mim próprio propusera.


Tive sorte nessa altura. Fui estudar psicofarmacologia para Paris, mas lá só se falava de Psicanálise.
Tive um bom encontro. Descobri.

É isto!

É isto! A Psicanálise correspondia por inteiro ao meu projecto. Conhecer melhor as pessoas, conhecer-me melhor a mim mesmo, fazer disso qualidade e profissão, eram a minha perspectiva e o meu profundo desejo.
Nos livros de Psiquiatria em que havia estudado (lembro-me do Mayer Gross, o tratado mais avançado da época), a Psicanálise era distorcida e reduzida a meia dúzia linhas, numa completa oposição. Nos anos sessenta, em Paris, desenrolava-se todo o seu imponente e sobrevalorizado brilhantismo.


O Professor Jean Delay, Membro da Academia Francesa, apesar de farmacologista de renome, nas reuniões de serviço nunca a esquecia e talvez 80% dos internos andavam pelos divans. Como assistente estrangeiro, frequentava regularmente as apresentações clínicas de psicanalistas eminentes, como Nacht, Pasche, Lacan e outros. E contactei com  o indivíduo mais brilhante que algum dia vi e ouvi neste terreno, o André Green, que fazia inesquecíveis sessões de três horas, todos os Sábados de manhã, no Hospital de Sainte-Anne.


Não sei se consegue imaginar um grupo de 30 a 40 jovens médicos, de várias nacionalidades, metidos numa pequena sala no Inverno, todos a fumar, com as janelas fechadas. No fim nem nos descortinávamos uns aos outros. As sessões começavam com o André Green a falar cerca de uma hora com um doente que não conhecia, trazido pelo interno de serviço. Depois todos comentávamos, discutíamos e aprofundávamos o que tínhamos ouvido, terminando deslumbrados com o que a sua perspicácia e inteligência descobria no funcionamento psicológico daquele doente e nos comunicava na meia hora final. Assisti longos meses a essas sessões, num irreprimível fascínio.
 

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Sessões inspiradoras.

Eram a descoberta, a “revolução da Psicanálise” como então se dizia, o fascínio do inconsciente, a comunicação, a harmonia da partilha do saber.

Encontra na Psicanálise a resposta ao desejo que lhe vinha da adolescência de conhecer as pessoas e traz a Psicanálise consigo quando regressa ao Porto.

Mal cheguei ao Porto falei com o meu director, que era um indivíduo excelente, anunciando-lhe esta coisa estranhíssima: já sabia tudo sobre Psicofarmacologia, queria fazer formação em Psicanálise, só possível em Lisboa. Ele facilitou-me muitíssimo o processo, concedendo-me até benefícios na deslocação. Estou-lhe eternamente grato. Morreu poucos anos depois. Durante oito anos passei a estar dois dias por semana em Lisboa.

É muito exigente. Ia a Lisboa fazer seminários?!

Fui fazer a minha Psicanálise pessoal, nos primeiros cinco anos, deitado no divã do Francisco Alvim como costumo dizer. Só depois vieram os seminários, os colóquios, as supervisões, as restantes parcelas da formação.

Como foi a sua experiência, o que é que lhe trouxe a sua Psicanálise?

Em que sentido?

As pessoas muitas vezes perguntam o que pode a Psicanálise trazer.

Cada um saberá de si, mas a minha Psicanálise trouxe-me um reencontro comigo mesmo e uma fluidez engrandecedora da profissão que havia escolhido. Reconstituiu-me, em ambos os sentidos.


Modificou-me para melhor no sentimento de mim, naquilo que sou, naquilo que poderia ser, no que ambicionava ser, na liberdade interna, no espaço de pensamento. Melhorou-me na liberdade em geral, se quisermos dizer, em dimensões particularmente significativas. Tudo isto serão apenas sentimentos, não comportamentos, nem externas manifestações, mas tratou-se de um primordial ajuste no sentir, no saber e no pensar. A Psicanálise alargou-me os campos de observação, reflexão e sensibilidade que há muito aspirava.

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Isso que está a dizer é muito significativo porque a Psicanálise é a possibilidade de liberdade interna ou seja, o encontro connosco, a liberdade que isso nos dá e o crescimento que nos permite naquilo que temos de melhor. Porque há muitas vezes a ideia de que a Psicanálise é um encontro com os traumas...

Também pode ser, de passagem...

Exacto, também pode ser!

Mas não será essa a sua essência.
A essência será algo de estrutural. Será uma nova fluidez, uma nova linguagem, uma nova proposição da misteriosidade, mais sentida e vivida do que esquematicamente desenhada.

A Psicanálise não é uma teoria. É um movimento. Um movimento interior, imparável depois de iniciado. É-o a tal ponto que, alguns anos volvidos, me apercebi que só poderia dela verdadeiramente falar com quem a pudesse entender. E que só poderia verdadeiramente entendê-la quem por ela tivesse passado, o que por vezes me criou, como a todos nós, inesperadas incomodidades. Isto pode parecer um tanto radical, mas não sendo completamente verdade, é essencialmente verdade.


Verifiquei-o também de forma muitíssimo acentuada na prática psiquiátrica, com gente de qualidade. Com trinta e quatro anos já dirigia um serviço de Psiquiatria por mim iniciado, em Gaia. Tinha cinco internos comigo, mas a breve trecho me apercebi de quanto seria disparatado fazer-lhes sermões psicanalíticos ou desenrolar-lhes teorizações. Aprendi que a única maneira de estar como psicanalista num serviço público, mesmo sendo o seu director, era nunca falar disso. Mas quase todos os dias fazia reuniões clínicas onde e quando julgasse útil e adequado intervinha  como psicanalista, acrescentando aos profissionais o que não estudavam nos livros. Pelo exemplo prático a fui transmitindo, sem nunca cuidar de o fazer.
Vários internos que comigo trabalharam são hoje psicanalistas, jamais para isso os tendo empurrado.


Os psiquiatras que trabalhavam consigo percebiam que o seu olhar trazia uma compreensão diferente, que contribuía para uma melhor intervenção junto das pessoas.

Trazia sobretudo a compreensão da pessoa na doença e dos sintomas na pessoa e na circunstância psicossocial de cada um, através da procura do entendimento de si e das particularidades individualizadas de cada sofrimento.
Há sofrimentos que se reduzem através do que dizemos e na forma como o trabalhamos. Foi esse o caminho que os psicanalistas descobriram e que constituiu uma nova leitura e uma nova abordagem, ambas absolutamente essenciais para a História do conhecimento. Alicerçou a passagem da Psiquiatria de manicómio para a Psiquiatria Comunitária, depois para a Saúde Mental.

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Hoje toda a gente fala de Saúde Mental, mas nessa  altura o conceito nem sequer existia. Falava-se de doença, apenas de doença. Foram os psicanalistas que abriram as janelas.

Sim, há uma série de conceitos que há uns anos eram estranhos que passaram a fazer parte da linguagem corrente, nomeadamente o de inconsciente.

Sim, sim. Esse e muitos outros, por vezes até excessivamente caídos na vulgata comunicacional. Toda a gente neles fala, até as bruxas da televisão, muitas vezes nem lhe conhecendo o íntimo significado.

A Psicanálise sempre foi questionada, porquê?

Pela humana condição. Pela própria natureza da construção da identidade e da organização da interioridade psicológica.
Tentar trazer à superfície a coisa recalcada é perigoso só por si, porque desvenda subsolos e raízes. Há medos no horizonte, há defesas instituídas. O conceito de recalcamento é absolutamente fundamental para a compreensão do que chamamos inconsciente, mas falar disso às pessoas acarreta-lhes desassossegos, pelo que há uma resistência natural à Psicanálise, acrescida no exercício social de cada um. Quem não compreender isto não compreende nada. Mas isso constitui, também, o seu encanto e a sua eternidade.

A Psicanálise é a compreensão da pessoa na sua globalidade e a compreensão dessa globalidade no funcionamento do bem estar e mal estar. Repare que não estou a usar a palavra inconsciente, estou a utilizar o conceito de funcionamento global do ser humano, funcionamento que tem uma essencialidade organizativa e uma zona inconsciente que se repercute no corpo e no edifício da pessoa. É por isso que a Psicanálise se encontra em crise desde que nasceu.
Mas convirá também lembrar que a genial descoberta de Freud só se manteve porque desde o princípio ele teve consciência desse dinamismo e dessa contradição: quanto mais te defendes mais razão devo ter, mais me activas o desejo de entender.

 

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Nunca tinha pensado nisso assim…

Às vezes penso que se Freud tivesse sido acarinhado pelos detractores não sairia do zero. Na prática clínica, a Psicanálise também se perde quando galanteia sorrisos e se esquece do outro lado. Quando deixa de ser polémica ou se banaliza e transforma numa lição de anatomia psicológica, omitindo o desafio da subjectividade. Cada pessoa funciona sempre à sua maneira. Será esse, sempre, o ponto essencial da nossa tentativa de compreensão. Para nos compreendermos a nós, para compreendermos os outros, teremos de saber que a pessoa tem uma história, uma memória e um património emocional num labirinto escondido e de modo nenhum descartável. E que melhorá-la será a reorganizar o seu funcionamento sensível, em função de si e não em função de potenciais rebanhos superficiais e igualitários, coisa extremamente difícil de compreender pelos radicais do cérebro e das neurociências, que numa racionalidade soberba nos pretendem tornar computadores. É tão simples quanto isto: nada acontece em função de livros ou de informações tecnológicas. Será sempre algo pessoal.

Cada um terá sempre de funcionar com o seu próprio conjunto e com a sua própria emocionalidade, para se regularizar consigo mesmo e se relacionar com a vida e com os outros. Poderá dizer-se, até, que a Saúde Mental dessa forma se define.

A maioria do feedback que tivemos até hoje sobre as entrevistas já publicadas foram de pessoas, arquitectos, engenheiros, que não têm qualquer ligação à Psicanálise. É engraçado porque as pessoas dizem “gostei muito da entrevista mas não fiquei a perceber melhor o que é a Psicanálise”, mas alguma coisa fica.

Há uma coisa que também nunca poderemos esquecer. Tal como numa boa interpretação psicanalítica, em que aparentemente nada se passa, a pessoa vai para casa e leva-a. Mesmo sem querer, nela pensa. Muitas vezes dizemos coisas que as pessoas não entendem, mas que de alguma forma transportam e verificam mais tarde. Algo lhes fica.

Uma vez, há anos, puseram-me uma interrogação idêntica à que levanta. Jantávamos, uma série de amigos, eu era o psicanalista, pessoa sempre um tanto alvejada, mesmo no grupo conhecido. Respondi: não sentes que tens coisas  escondidas dentro de ti e que lhes colocas patilhas em cima para elas não saírem? … é isso a Psicanálise (risos).
Os meus amigos sorriram e calaram. Nem retorquiram. Ficaram certamente a pensar.

 

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Voltando à Psicanálise no Porto, de alguma forma trouxe a Psicanálise consigo de Paris para o Porto. Como foi a evolução desde que regressou, até à criação do Instituto e ao presente.

Pouco a pouco, a divulgação foi acontecendo. A Celeste Malpique esteve sempre próxima, outros foram aparecendo, ainda com a formação em Lisboa. Não queria deixar de realçar a figura maior, a pessoa com quem mais aprendi, o João dos Santos. Costumo dizer que o João dos Santos nunca me ensinou nada, nem nunca disse nada para eu aprender. Mas “ensinou-me” grande parte do que sei.
Fiz supervisão com ele durante quatro anos. Curiosamente, no dia 25 de Abril de 1974, ele não apareceu na sessão habitual das 8h da manhã. Faltou, já tinha ido participar na revolução. Eu viajava no comboio da noite, dormia, tinha chegado a Santa Apolónia às 7 da manhã, era uma quinta-feira, havia no ar um certo zunzum…
Quando passei a Membro Associado da SPP, em 1977, comecei a dirigir seminários em Lisboa. Na década de 80, com o Carlos Amaral Dias, a Celeste Malpique e o Eurico Figueiredo, começámos a organizar colóquios, práticas clínicas e sessões públicas no Porto. Outros profissionais foram-se interessando. Entretanto passei a Didacta e a possibilidade de análise formativa iniciou-se nesta cidade. Anos depois a Celeste Malpique e o Eurico Figueiredo também o foram, o número de candidatos foi crescendo.
Comecei a desenvolver o projecto de um Instituto de Psicanálise no Porto quando fui Presidente da SPP em 1990-92. Mas houve dificuldades. Alguns elementos da toda poderosa Comissão de Ensino da altura, constituída por Pedro Luzes, Mário Casimiro, Eduardo Cortesão, Coimbra de Matos, Jaime Milheiro e Amaral Dias, não apoiavam a ideia. Temiam, no fundo, uma secessão. Diziam-me, sorrindo, que eu pretenderia ser o Vice-Rei do Norte, invocando as alegorias políticas de momento.
Tivemos de adiar, de esperar novos elementos e novas circunstâncias

Resistências, digamos.

Resistências que o tempo ultrapassou. A nossa seriedade e competência nunca foi posta em causa.
Quando já havia analistas suficientes e o Amaral Dias se tornou Presidente da SPP, tudo se concluiu. Em 1999, uma comissão organizadora criou oficialmente o Instituto de Psicanálise do Porto, com um artifício de nome (IFTP) derivado de razões administrativas, uma vez que já havia algo registrado com esse nome, em brasileirices de passagem.
Fui, naturalmente, o seu primeiro Presidente.

Teve uma actividade institucional importante, tem uma actividade clínica significativa, tem uma série de livros publicados, disse-me que vai publicar mais dois livros, como é que consegue arranjar tempo para tudo isso?

Eu costumo brincar com esse tema do tempo.
É a gestão do tempo que nos avaliza a responsabilidade e o sentimento de responsabilidade que a antecede e tonifica.
Por entre alegrias e sobressaltos, arranjei tempo para conduzir uma vida familiar intensa (estou casado há 58 anos), divertir-me, interessar-me muito por desporto, ter 5 filhos (uma é psicanalista, outro é especialista de Medicina Desportiva) e seis netos (dois gostam muito de falar dos Jogos Olímpicos).

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Na juventude, o meu grande desejo seria tornar-me jogador de futebol. No Liceu, no famoso Alexandre Herculano no Porto, eu era o defesa central duma equipa a que chamávamos “a selecção nacional do Liceu”. Joguei na praia e no campo, sou sócio do Futebol Clube do Porto há largas dezenas de anos (tenho bom gosto, gosto do azul), frequentei durante mais de vinte anos os greens do Club de Golf de Miramar (sem grande competência, diga-se de passagem). Aconteceu-me entrar na SPP com um jornal desportivo debaixo do braço e provocar escândalo visível nalguns puristas.


Além disso, interessei-me muitíssimo pela Arte, sobretudo por pintura, cinema e literatura, tendo criado os bienais “Colóquios do Porto: Psicanálise e Cultura” que já vão na 12ª edição.


Percorri todas os graus e chefias da carreira médica e participei activamente em todas as lutas dos últimos decénios pela melhoria dos serviços e pela dignificação dos doentes psiquiátricos. Regi durante cinco anos duas cadeiras na Faculdade de Psicologia do Porto e aposentei-me após 44 anos de exercício no Serviço Nacional de Saúde, tendo ainda tempo para fazer inúmeras troças e provocações sobre obscurantismos, expressões, personagens, etc. etc.

O futebol é uma paixão?

É a ausência de pensamento na cruzada contra os infiéis. É a maravilha temporária de um corpo em movimento num estado de candura. Só há dois anos deixei de frequentar o Dragão, com grande pena minha. A idade obriga. Com os meus amigos tinha um camarote no estádio das Antas, local onde os árbitros foram sempre uns gatunos. Agora só na televisão. Quero com isto dizer que costumo sorrir quando me falam do tempo.

O meu tempo não é diferente. Apenas tive sorte na vida, a sorte que os “sem tempo” não terão tido. Vivi uma infância dura, em Gaia, nas violentas dificuldades e carências da segunda Grande Guerra, que terminou quando eu tinha 10 anos. Habituei-me ao esforço e ao frio, não alinhando em queixumes. Talvez isso tenha algum significado
Será uma disponibilidade “inscrita”...

De escolha?!

De escolha, de circunstância, de tempo interno. O essencial não será o tempo externo, igualzinho para todos. Será o interno, pessoal e diferente, numa singular utilização.
Hoje, aliás, um dos problemas maiores da cultura é justamente a tentativa de eliminação desse tempo interno, o que na passada equivalerá à tentativa de eliminar a Psicanálise.

O que lhe trouxe o escrever e como incentivaria alguém a fazê-lo?

As pessoas só escrevem quando pensam.
A Psicanálise é em si mesma um movimento que incentiva a (re)criação do pensamento. Transformar o pensamento em escrita será uma nova fase, onde muito se perde mas também muito se ganha, porque se comunica. Escrever é limitar a liberdade e a qualidade do nosso próprio pensamento, porque transmitir é ordenar, organizar e racionalizar. Produz porque estimula, mas codifica por definição. Quero com isto dizer que o pensamento é livre mas a escrita não: ao ordenar condena. Mas produzir é preciso (risos). Não sei como se incentiva.
 

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Mas será necessário um desejo prévio, uma representação mental colorida e uma busca de  satisfação compensadora. A Psicanálise encaminha tudo isso. Escrever torna-se significativo quando o próprio escreve o que pensa, sente ou vive, no sentido geral da palavra. Quando se torna íntimo e espontâneo, não dependente de academicismos, repetições e citações.


Pensar é sonhar, saber é interpretar, escrever é objectivar, num cadinho muito diferente dos cozinhados metapsicológicos.


Há três grandes metapsicologias na história da Psicanálise: as de Freud, Klein e Bion, mas, lamentavelmente, o seu discurso foi levado até ao ponto de muitos psicanalistas, em vez de cuidarem do funcionamento global dos seres humanos, transformarem a Psicanálise numa gaiola de complicadas erudições. Foi um erro enorme.

Uma Psicanálise enclausurada.

Exactamente. Foi um prejuízo maior, sentado no narcisismo tóxico, que acarretou um alfobre de resistências culturais e sociais.

Estava a falar sobre o tempo, o tempo externo e o tempo interno. Uma das coisas que mais ouvimos hoje é que não há tempo, as pessoas estão sempre a correr, tudo tem de ser muito rápido, eficiente. Qual é o lugar da Psicanálise num mundo assim já que a Psicanálise é um processo lento, vamos parar para pensar e o mundo à nossa volta está a correr.

É um paradoxo tremendo. Há na cultura movimentos   absolutamente paradoxais, enaltecidos em algoritmos e tecnologias. Há quem se julgue capaz de gerar uma nova espécie. Um desses movimentos é a tentativa de eliminação do tempo interno, como dizia, facto completamente impossível na espécie que somos, resultante do medo de não continuar no palco, de uma pressa de exibir exterioridades civilizacionais, de uma enlouquecida negação da morte e da ideia de morrer. Nunca vi ninguém que não tivesse medo. Sobretudo o medo de estar só e o medo de ser abandonado e morrer, ambos sentados no medo do desconhecido. Em todos os seres humanos funcionam, em grau maior ou menor, porque o ser humano nasceu de maneira muitíssimo particular e diferente de todos os outros. Nasceu absolutamente prematuro e dependente, incapaz de se alimentar, de viver e de continuar. Só se aguenta nos primeiros três ou quatro anos de vida se houver totais ajudas físicas e afectivas, numa determinação genética incontornável. É nesse período que esses medos se organizam, permanecendo no “sentimento de percurso” de cada um.


 

 

 

Todos passámos por isso, todos os incluímos como fundamento e caracterização, sendo esse facto que nos leva à representação mental do objecto e à simbolização, para interiorizarmos os objectos protectores e dessa forma os não perdermos. Temos medo de nos perdermos, se os perdermos. Sem sentimentos de passado e sem sentimentos de futuro, sem o tempo interno e sem o seu enquadramento no presente, ninguém humano seria.

No meu livro mais recente: “Ensaio sobre os Humanos...”, longamente descrevo um síndrome clínico de incidência crescente, desse paradoxo derivado, a que chamo: .A Estupidez de Existir. Acentuando que: “uma vacina contra a estupidez seria um estrondoso fracasso comercial: todos a recomendariam, ninguém se consideraria receptor adequado”.

É por isso também que, como há pouco dizia, a Psicanálise nasceu em crise e continua em crise, mas será eterna enquanto esta espécie existir.
Até já acabou para muitas Faculdades de Psicologia em Portugal e noutros países, nesse absurdo da estupidez de existir. Será eterna, porque é eterna a humana condição. Porque a interioridade da espécie não pode arquitectar-se doutra forma, havendo sempre parcelas reprimidas, conflitos, ansiedades e mal estar, embora a Psicanálise necessite de adequar-se às mudanças evolutivas e nessas encruzilhadas vá encontrando dificuldades.
Terá de reencaminhar-se para um novo sentido investigacional, associando-se efectivamente ao conhecimento do corpo e ao conhecimentos noutras áreas, num alcance muito diferente dos chamados processos científicos tradicionais e dos processos analíticos habituais.

Antes de terminarmos, o que faz de um psicanalista um bom psicanalista, a capacidade de pensar?

Será a sua capacidade de pensar sobre si, sobre os outros e sobre a relação entre si e os outros. Será a sua capacidade de pensar por si e de criar por si, ou seja, a capacidade de receber e de esquecer o recebido para pensá-lo de novo, caminho que leva anos a afirmar-se. Acentuaria ainda, para finalizar, que ser psicanalista não é recitar textos psicanalíticos. É alimentar uma atitude, uma experiência e uma clínica, sentado na singularidade de um conhecimento.

 

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