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AUSTRÁLIA OU O INCÊNDIO DOS ASPECTOS

Updated: Jan 28, 2020

Por Vasco Santos


O incêndio australiano ilustra a fortíssima interdependência entre o processo de acumulação de capital e o processo de acumulação de imagens.


Vídeo «Tacet», de João Onofre. Cortesia do autor

A Austrália queimada, evocando os grandes incêndios da história: o incêndio de Roma (64 d. C.), o incêndio de Londres (1666), o incêndio de Lisboa (1775) ou o grande incêndio de Chicago (1871); a Austrália, a Califórnia, o Canadá, incêndios recentes, reenviam-nos, na sua desmesura, para o filme de Guy Debord Movemo-nos na noite sem saída e somos devorados pelo fogo, algo já pensado de forma fulgurante no seu livro A Sociedade do Espectáculo.


A televisão, essa máquina superior de destruição simbólica, ao mostrar obsessivamente o incêndio, cria-o. No torvelinho de um amor florestal constante, prolonga-o.


Reverentes e assombrados ao pulo do canguru, à perplexidade do koala ou ao voo oblíquo do pássaro paradipsíquico, a questão climática não muito nos interessa.


Pensamos, espantados ainda, numa outra visão do passado: em Gaston Bachelard e na sua exuberante metapoética dos quatros elementos, na sua Psicanálise do Fogo (1939).


Nesta obra, Bachelard mostra-nos a permanência da idolatria do fogo e os complexos subjectivos que imperam sobre a sua compreensão. Os complexos são organizados em relação à mitologia: o complexo de Prometeu, o desejo de possuir o fogo contra a vontade dos deuses; o complexo de Empédocles, o desejo irracional de se deixar consumir pelo fogo; o complexo de Novalis, o fogo associado ao amor correspondido; o complexo da dissociação entre o fogo sagrado, a luz divina; e as chamas da inquisição ou do ISIS, chamas que ardem e purificam nos infernos; o sexo.


E que é estampido neste livro?


É o que Bachelard afirma: «o amor é a primeira hipótese científica para a reprodução objectiva do fogo»; o fogo é, pois, «uma criação do desejo e não uma criação da necessidade».


Bachelard não aceita que a descoberta do fogo pelos povos primitivos tenha sido causada pela fricção de dois pedaços de madeira ao acaso.


Não estamos longe de Julio Cortázar em Todos os Fogos o Fogo: todas as paixões acabam em incêndios, em destruição e morte.


Não fazendo erudição acerca das referências freudianas ao fogo, podemos assinalar na ombreira que, para Freud, o fogo é análogo à paixão do amor, é um símbolo da líbido.


Nas Observações sobre o amor de transferência, Freud alude ao dito de Hipócrates: as doenças que os remédios não curam, o fogo cura; as que o fogo não pode curar devem ser consideradas inteiramente incuráveis.


Para Freud, portanto, o fogo é o elemento mais poderoso, e o amor é algo que irrompe a cena analítica.


É cortante seguir Lacan nesta viagem, ao analisar o sonho descrito por Freud, «pai, não vês que estou queimando?», ou saltar no trampolim dual de Bill Viola, performance estupefacta que fala de mudança e dissolvência de estados e onde tudo se funde e se transfigura nos opostos.



Ou ainda acompanhar o poeta Jean Cocteau quando lhe perguntaram o que salvaria num incêndio em sua casa: «o fogo».


Finalmente, por cima de todos os rios, vazando a hermenêutica, é Francis Ponge que nos faz entender, para sempre, o latente do fogo, mostrando que a raiz que nos deslumbra está nos nossos corações e que o fogo não é senão a macaqueação aqui em baixo do sol:


«O fogo classifica: primeiro, todas as chamas se dirigem num certo sentido...


«(Não se pode comparar o andar do fogo senão ao dos animais: é preciso que ele deixe um lugar para vir a ocupar um outro; anda ao mesmo tempo como uma amiba e como uma girafa, sacode o pescoço, rasteja de pé)…


«Depois, enquanto as massas metodicamente contaminadas desabam, os gases que se libertam vão sendo transformadas numa única rampa de borboletas.»


O fogo pega no real e o Sol é colocado em abismo.

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