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Defesas em tempos de cólera

Writer's picture: Rita AmorimRita Amorim

Citando o psicanalista David Bell na penúltima conferência da Tavistock and Portman NHS Foundation Trust, sob o título “Development of psychoanalytic theory”, a primeira dificuldade, perante a actual e brutal ameaça pandémica, será colocarmo-nos algures, e de forma equidistante, entre a paranoia e a negação.


Curiosamente, a conferência de quarta-feira, dia 11 de março, a que todos os inscritos tiveram de assistir remotamente, era dedicada a Melanie Klein e ao conceito de posição esquizo-paranoide.

A crise actual, vivida como um estado de perigo radical - não só porque representa uma ameaça mortal, mas em larga medida também porque essa ameaça é indefinida em termos de objecto, duração, técnicas de ataque e meios de defesa - é a combinação mais ameaçadora que podemos conceber: um perigo externo de contornos imprecisos, mal delineado, que dá lugar a cenários internos devastadores. Os nossos demónios serão sempre maiores e mais assustadores do que a realidade externa: dentro de nós, não têm fronteiras sólidas nem quaisquer lógica e linguagem de que nos possamos socorrer.


Nesse mesmo dia, um paciente queixou-se, numa sessão, de sentir febre e dores no corpo, perguntando-me se estaria a somatizar ou efectivamente infectado pelo vírus.

Há duas reacções possíveis face a esta ameaça. Uma rejeita a realidade e a segunda aceita-a e lida com ela. Todos flutuamos entre as duas ao longo da nossa vida. Na posição mais primitiva - a que dava título à conferência - reagimos, por um lado, com negação e omnipotência e, por outro, com pânico, exagero e desespero. A reacção omnipotente procura evitar a dor e a angústia através da sobrevalorização cega das nossas capacidades. Vem, normalmente, acompanhada de desprezo e raiva em relação às regras, negação da magnitude do momento e recusa em obedecer a instruções. A reacção de pânico activa os nossos terror infantil e profundo desespero, como se gritássemos: Salvem-me deste sofrimento já!


Um dia depois, quando já era obrigatório, em vários países da Europa, o isolamento social, vi imagens de grupos de pessoas a beber nas ruas e em festa, sem qualquer preocupação em respeitar a distância mínima recomendada, lado a lado com imagens de supermercados de prateleiras vazias.


Escrevo hoje, no meu 11º dia de isolamento, certa da passagem de toda a comunidade a uma posição mais evoluída, a que Klein chamou posição depressiva e que consiste na aceitação da realidade. A partir desta posição, reconhecemos os perigos externos e a nossa vulnerabilidade perante os mesmos mas, simultaneamente, conseguimos ancorar-nos numa agência interna capaz de lidar com o perigo. Esta perspectiva, mais sóbria, apesar de acompanhada de angústia e sofrimento, faz-se da aceitação rendida de que só podemos fazer e faremos o nosso melhor.


Fotografia do foto-jornalista Miguel Manso, publicada no dia 13 de março de 2020 no Instagram

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