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Diários de Quarentena

Updated: Mar 20, 2020

Por Isadora Barretto

São Paulo, Brasil


É bonito ver uma nova onda de debates ligada aos conceitos de empatia, comunidade e solidariedade justamente em uma época em que se via prevalecendo a guinada de um pensamento ultraneoliberal baseada na máxima do cada um por si...

Fico pensando se o ultraneoliberalismo não andaria junto com uma certa descrença no ser humano, na humanidade, e em tudo o que vem nessa bagagem que ao longo dos anos parece ter sido deixada pelo caminho.

"Ser humano é ter empatia para com seus pares".

Li ontem como a gripe espanhola ajudou a criar o Welfare State, ou o Estado de Bem-Estar Social. E como, para a antropóloga Margaret Mead, o início da civilização humana era representado por um fémur quebrado, que havia sido curado pelos cuidados de outrem.


© Duane Michals, Danny and Ernestine and Their Cats, 1969

Lembro de coisas que andei lendo ano passado. Lembro de Ferenczi, psicanalista contemporâneo a Freud conhecido por aceitar os casos mais díficeis e desacreditados da psicanálise, afirmando que o trauma é o que constitui subjetividade. Não muito diferente do que falava Darwin em relação à evolução da espécie, de que para evoluirmos muita coisa precisa morrer.

Lembro da dualidade da carta da morte, no tarot, e da simbologia de Saturno - o grande maléfico - e de Júpiter - o optimista e benéfico - na astrologia, que hoje, curiosamente, caminham ambos do signo de capricórnio - o velho, a dureza, o encontro inexorável com a realidade - para o signo de aquário - o coletivo e humanitário.

Ando pensando muito na morte. Sentindo muito a morte. E ouvindo muito também - de amigos, familiares, nos grupos de Whatsapp, no consultório - sobre essa sensação estranha e incómoda ligada a esse significante tão carregado. O silêncio, uma sensação de vazio, de ar parado, uma sonolência aguda e uma vontade constante de "não se fazer nada".

Geralmente pensamos na morte como algo negativo. É avassaladora a angústia sentida com a iminência da morte de milhares, quiçá de milhões que já aconteceu e que ainda está para acontecer. Haverá leitos suficientes? Quem será o próximo da vez? Saio de casa e arrisco? O que fazer no isolamento? Como encarar o pânico, a ansiedade, a incerteza, esse embrulho de não saber do hoje e nem do dia de amanhã?

Mas penso também nas mortes simbólicas. Na queda das bolsas, na queda de mitos, na queda dos mitos, nos imaginários incapazes de se sustentar no encontro assombroso com o real.

E também nas viradas que surpreendem. Nos gestos de solidariedade, nos repentinos reacendimentos de coisas antes adormecidas - grupos, pessoas, temas. A importância da esfera pública, da noção do que é público, a percepção da virtualidade na separação entre indivíduo e colectivo, a potência das redes (familiares, sociais, virtuais), etc etc etc.

Há algo de potente no encontro com o chão, com a realidade dura das coisas. Engraçado como a vida ganha corpo justamente no momento em que, no mais forçado movimento, devemos nos privar dele.

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