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Writer's pictureCsongor Juhos

ESCUTANDO O QUE PERMANECE

Instâncias, funções parentais e inscrições psíquicas na infância


Por Maria Teresa Sá


A família é um objeto de estudo complexo, frente ao qual não estamos nunca desimplicados, dada a dinâmica transferencial e contra-transferencial que a sua análise sempre envolve. Diz-nos profundamente respeito. Para lá do movimento inerente a tudo o que é vivo, que mexe e se transforma, trazendo sempre consigo a turbulência, a incerteza e a angústia do desconhecido, diante das mudanças que atingem a família, vou-me interrogando a respeito destes novos tempos na construção do humano.


É certo que não se trata da primeira mudança, outras houve ao longo da história da família. Mas as mudanças de hoje, que são as nossas, desacertam-nos as referências em que crescemos e sobre as quais nos legitimamos e repousamos. Ainda não lhes conhecemos o futuro. E o que fazemos ou não fazemos parece ter adquirido um peso que os nossos pais e avós não conheceram. Menos constrangidos pelas malhas da transmissão, mas talvez mais desparentalizados, mais livres, mas possivelmente por isso também mais a braços com o risco, artífices e aprendizes, procuramos em manuais a melhor forma de educar e na palavra dos especialistas o saber que parece ter escapado a cada um de nós.


Poderá esta mudança levar-nos a uma maior reflexividade e criatividade? A tomar em mãos o que antes nos comandava? A fazer melhor?


É possível que muitos dos gestos que colocamos no encontro com as novas gerações continuem a chegar-nos de uma cripta que guarda as inscrições da nossa própria infância, alfabetos antigos, instâncias que interiorizámos e que falam de (em) nós, reminiscências activas vindas do passado e que entram no presente. No interior da mudança, não teimará “isso” em marcar presença?


O processo educativo implica influências múltiplas e recíprocas entre gerações e o seu caminho é pontuado por encontros que vão permitindo a construção do ser e o seu amadurecimento. Trabalho de formação pelo qual a criança é chamada a desenvolver as faculdades que a definem como ser humano, o produto deste trabalho, a bem dizer interminável, é a realização em cada um de nós das características constituivas dessa humanidade. O futuro de cada ser humano parece decidir-se num acordo de princípios (desde os princípios) entre o que a sociedade oferece ao individuo e aquilo de que o individuo necessita. Será certamente histórica e socialmente datado mas, no mundo em mudança, terão mudado assim tanto as necessidades das crianças e as respostas de que necessitam?


Através da escuta particular na qual a Psicanálise me formou, que é a do mundo interior e do inconsciente, no encontro com as crianças e os jovens que recebo (e também com adultos), que vivem e se constroem em configurações familiares bastante diversas, creio ouvir algo que permanece, o individuo relacional e cultural que nos religa a uma humanidade comum. É nesta escuta que encontro uma bússola para pensar as funções da família, qualquer que seja a configuração que venha assumindo. Mesmo se a sua forma varia nas diversas culturas e se o número de famílias recompostas, monoparentais ou homoparentais hoje se multiplica, encontro sob estas diversas formas uma estrutura de base e, também, fundamentalmente idênticos, os processos inconscientes que participam na génese dos sujeitos que compõem estes sistemas.


A estruturação e o amadurecimento do sujeito psíquico repousa num conjunto coerente de referências internas e externas que são construidas ao longo da vida . O estudo filogenético e ontogenético leva-nos a crer que o desenvolvimento saudável da nossa espécie exige que um certo número de condições sejam garantidas, figurando na primeira linha os processos de sustentação, amadurecimento, vitalização e humanização, que dependem de contextos humanos, de quadros organizadores e de protagonistas que os assegurem.


Para a Psicanálise, a família permanece o primeiro núcleo de construção do sujeito. Como escrevia Donald Winnicott “tudo começa em casa”. O quadro familiar e os seus personagens desempenham funções estruturantes, no sentido em que que disponibilizam os primeiros materiais para o desenho do mundo interior que reflete sempre as particularidades dos primeiros adultos que estiveram presentes ou que fizeram falta. Como também lembrou Freud, toda a Psicologia é uma Psicologia Social.


Na perspetiva da Psicanálise, a construção de uma pessoa é sustentada por importantes processos de identificação, introjeções no psiquismo individual de traços, comportamentos e pensamentos de um Outro com quem se teve uma relação próxima e privilegiada. A família é o primeiro lugar onde ocorrem estes processos, numa época de grande dependência emocional, como é a infância. É certo que este processo não termina na infância e que também não se restringe à família, alargando-se a outros personagens, lugares e experiências significativas que se lhe vêm juntar ao longo da vida, como cascas de uma cebola. Mas a família é o primeiro grupo humano que regula e filtra as trocas com o meio e onde a criança encontra as primeiras mensagens sobre o crescimento, mensagens que interiorizará e que fará suas. As respostas às necessidades de segurança, ligação, reconhecimento, pertença, exploração, afirmação, comunicação, autonomia e liberdade, direcionam cada história individual e constroem em cada um de nós uma representação do que é crescer.


A investigação psicanalítica, assente no material clínico e suportada pelos estudos sobre o desenvolvimento precoce, leva-nos a supor que no arranque de toda a organização psíquica, no coração do desenvolvimento, está uma relação, e que as primeiras relações que se estabelecem no seio da familia são determinantes e criam modelos operantes internos que o bebé, a criança, o jovem e depois o adulto mobilizarão na sua relação consigo mesmos e com os outros. Como escreve João dos Santos “a experiência infantil acompanha-nos pela vida fora e podemos admitir que tal como a Obra tem uma estrutura de base e toda a construção um alicerce, também a personalidade tem uma base ou alicerce, que é a infância. Tal como o edifício depois de acabado, retocado e experimentado, não pode dispensar os alicerces, também a pessoa não pode mentalmente anular a experiência e as vivências da sua criação.”


É complexa e enigmática a gramática desta experiência relacional, difícil de dizer o que nela age e o que ela transforma, mas parece indubitável que os agentes de transformação são as pessoas. A família é o lugar das primeiras pessoas, o lugar onde se alicerçam e estruturam as raízes do Eu (as diversas identificações primárias, nomeadamente as que decidirão uma identidade sexual psicológica), as raízes do supereu e da moral (assentes nos modelos e nos interditos parentais) e do Ideal do Eu (promovido pelos adultos e pelas culturas que os envolvem).


Com Freud, e depois de Freud, a Psicanálise identificou algumas das funções que a família assegura na construção do psiquismo individual, fazendo referência a duas instâncias parentais de que a criança necessita para iniciar e prosseguir o seu desenvolvimento: a instância materna e a instância paterna.


A necessidade de uma instância materna é o corolário do estado de imaturidade do recém-nascido, da sua total dependência e da sua fragilidade durante os primeiros anos de vida. É o lugar da sustentação do ser, da sua continuidade, da narcisação necessária a uma existência de si e para si, ao mesmo tempo que da objetalidade e mutualidade necessárias à existência com e para o Outro. Primeira instância alimentadora, protetora e equilibrante, assegura a neutralização das angústias primitivas de morte e dos primeiros traumatismos das emoções em excesso que o bebé não consegue ainda conter e transformar. É uma Instância que lê e alfabetiza o que ainda não tem nome, que organiza o caos e o devolve à criança de uma forma pacificada, digerível e depois simbolizável. Amortecendo, filtrando e transformando, permite que a criança, vulnerável e desamparada por natureza, se possa aconchegar e reencontrar a paz. Assegura os primeiros movimentos de integração.


É, assim, uma Instância vitalizadora das funções corporais e psíquicas emergentes, acolhedora e responsiva às primeiras tentativas de comunicação do bebé, fazendo igualmente uma primeira apresentação da realidade externa, insuflando confiança no caminho que começa. Assegura também uma função de espelho, através do qual a criança começa a ver-se a si mesma, a situar-se, a apreender e a significar os seus estados emocionais, ao mesmo tempo que começa a conhecer o que lhe é exterior e a ligar interior e exterior numa zona intermediária de experiência suportável, onde pode inaugurar o sonho, o sonho acordado, a fantasia, o pensamento e a linguagem. Nesta época, o ajustamento, a continuidade e a previsibilidade da experiência relacional tornam-se fundamentais.


Uma experiência suficientemente boa (Winnicott) com esta instância, quando interiorizada, continuará a assegurar ao longo da vida, mas agora no interior do sujeito, como acompanhante interno, essencialmente as mesmas funções, que poderão ser transferidas para a relação com os outros. Esta transferência é particularmente importante em futuras parentalidades, mas, também, em todas as profissões do humano quando, sejamos homens ou mulheres, nos ocupamos de pessoas em desenvolvimento ou em sofrimento. A ressonância emocional e a empatia vivem-se e aprendem-se aqui.


Mas para que a criança se torne um sujeito de desejo, não alienada ao desejo materno, é necessário que encontre uma outra instância que valorize e apresente outras leis do crescimento: a instância paterna. O pai simbólico ou metáfora paterna (Lacan), na pessoa de um terceiro - dado que não é só o pai o agente desta função - aquele que não é mãe e para onde a mãe desvia um olhar que não se centra exclusivamente na criança. Esta instância nova e separadora evita que se instale uma relação excessiva e fechada numa bolha a dois, claustrofóbica, ao mesmo tempo que, pelas palavras de reconhecimento que dirige à criança, a convida a uma abertura indispensável ao desenvolvimento. Mediadora para um social mais alargado, como um compasso traçando novos círculos concêntricos no espaço vital, a instância paterna abre a criança à diferenciação, apelando a novos investimentos pulsionais e torna possíveis novas operações mentais. Aliada da função de exploração, a instância paterna joga um papel do lado das forças centrífugas, introduzindo a necessidade e o desejo de encontrar respostas para a dimensão mítica e política do ser humano, o impulso vital para o conhecimento, mais do que a nostalgia do tempo perdido. Procura respostas para o que fazer da solidão e incita à autonomia e à criatividade. É igualmente o suporte implícito e explicito dos limites impostos ao desejo sem limites, à negociação do prazer com a realidade e à sua autolimitação, introduzindo a criança na expectativa a médio e longo termo, em lugar de tirar prazer apenas da satisfação imediata das suas necessidades e demandas. Procura respostas para o que fazer da Lei e incita à organização social. Organizador diferencial e diferenciado do corpo e do psiquismo, introduz a triangulação, a diferença e a complementaridade, fala da tridimensionalidade sem a qual a vida psíquica não se expande e aprofunda, da futurização que nos liberta do presente, da inscrição e da transmissão que nos situam numa herança e na cultura.


Uma experiência suficientemente boa com esta instância, quando interiorizada, continuará a assegurar ao longo da vida, mas no interior do sujeito, como acompanhante interno, essencialmente as mesmas funções e poderá ser transferida para o amor e o trabalho, para a possibilidade de complementaridade e reconhecimento da diferença, para a aceitação do tempo da iniciativa e da concretização, incitando à produção, à perseverança, à cooperação e à generatividade. A tomar um lugar e a tomar a palavra. A transmitir, a educar e a oferecer-se como modelo.


Há dois aspectos que gostaria ainda de realçar:


O primeiro é o de que o trabalho destas instâncias não deve ser considerado separadamente. Na infância e ao longo de toda a vida as instâncias parentais interiorizadas vão sendo solicitadas para responder aos perigos, às dificuldades, às tarefas e aos desafios do desenvolvimento. É importante que comuniquem no interior do sujeito. A solidez e a harmonia desta conjugalidade interna garante à criança, ao jovem e ao adulto, um lugar de ancoragem identitária e de segurança. Também aqui, a forma como os adultos que asseguram as funções materna e paterna se conjugam e dialogam entre si é muito importante no presente da criança e do jovem, futuro adulto.


O segundo, é o de que estas funções são asseguradas não apenas pelos pais ou por quem exerce a função parental na família, mas também por outras figuras tutelares que a criança e jovem encontram nos seus lugares de vida e também pelas instituições que no espaço social as representam - famílias de um segundo tipo - que também acompanham o desenvolvimento: outros familiares, amigos, escola, educadores, professores, psicólogos, médicos, juízes, etc. Sabemos como a qualidade destes encontros e destes contextos pode colmatar falhas e mudar mesmo o destino de uma vulnerabilidade inicial.


A clínica psicanalítica de crianças, jovens e adultos, mas também o acompanhamento de situações escolares e educativas, têm-me colocado, entretanto, uma série de questões que me parecem estreitamente associadas ao funcionamento e à qualidade destas instâncias. Enunciaria algumas delas:


A entrada muito precoce dos bebés no espaço social (infantários), com a exigência de uma adaptação precocíssima aos tempos sociais da instituição, que parece dificilmente capaz de assegurar a resposta fina, sincronizada e ajustada às suas primeiras necessidades; A guarda partilhada de bebés muito pequenos que me parece comprometer uma continuidade relacional necessária à construção de primeiras representações internas estáveis e securizantes; A defesa dos direitos dos adultos, nomeadamente em situações de separação e também de adoção, certamente compreensíveis, mas que deixam a criança numa zona de terra de ninguém, confusa e frequentemente minada por pesados conflitos de fidelidade; As parentalidades que excluem à-priori um dos pais, mãe ou pai, que excluem um terceiro.


Algumas sérias e cada vez mais frequentes dificuldades de separação, intolerância à frustração, ao adiamento, ao tempo e ao Outro, a predominância do imediato e de condutas agidas ou regressivas, as dificuldades de contenção e de transformação da pulsão, certos quadros de excitação, de instabilidade e de afundamento depressivo não estarão relacionados com falhas destas instâncias? Sintomas infantis que falam da doença dos adultos? Doença de uma instância parental mais global - a sociedade no seu conjunto- que parece enlouquecida na solicitação mediática dos impulsos mais primitivos sob o olhar ávido dos mercados? Que modelos transmitimos? Que mediações e laços civilizacionais apresentamos?


Gostaria, para terminar, de convocar Winnicott quando fala da mãe “suficientemente boa”.


Há certamente muitas maneiras de exercer as funções materna e paterna de uma forma “suficientemente boa”, com ancoragem num mundo e numa família em mudança. O tempo presente poderá não ser o tempo da falência das instâncias se formos capazes de as reconhecer e de pousar um olhar reflexivo sobre nós próprios, como adultos a quem compete assegurá-las, em família e fora dela.


As crianças e jovens de hoje têm sobretudo necessidade de encontrar adultos que apresentem modos de aproveitar e organizar a vida, através da sua forma de ser, e que transmitam, de igual modo, uma suficiente confiança na aventura humana e no lugar que nela a criança e o jovem podem assumir. Que num mundo em mudança possamos dar um passo em frente no nosso processo civilizacional e de humanização.

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