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Ser Solidário Assim Para Além da Vida

Por Maria Teresa Sá


A angústia de morte está biologicamente ancorada ao sopro de vida. Que no nosso inconsciente não haja registo de morte é uma matéria insondável, já que do inconsciente pouco sabemos, apesar dos divãs em que o (nos) deitamos. Sabemos que vamos morrer, só não sabemos quando, como ou onde. Pensar na morte, na nossa e na dos outros, é como olhar o sol de frente, e a vida pede que não nos demoremos aí muito tempo. Mas se nada podemos fazer quanto à morte, que por entre a imprevisibilidade da vida é a nossa única certeza, já a situação do morrer e a possibilidade de minorar algum do seu sofrimento, é uma outra coisa.


Morrer inquieta e perturba todos os humanos, expressa o medo de cada um diante do seu fim e diante da perda dos que amamos. É um terror com nome. Algumas vezes, para lá da nossa dor de perda, acontece sermos capazes de sentir de dentro o sofrimento do Outro que nos morre e aceitarmos que ele possa querer pôr fim ao seu sofrimento. O bem que queremos ao Outro torna-se então maior do que a ocupação caseira com a nossa dor, com a insuportabilidade do nosso sofrimento, com a nossa culpa ou com a nossa impotência para o salvarmos e retermos junto de nós. Conferimos-lhe então o direito de decidir de si, da sua vida e da sua morte. Alteridade. Quando assim é, quando assim somos, elevámo-nos na nossa condição humana, ultrapassámos o frágil e duro limiar do nosso Eu, que sempre impede que nos inclinemos verdadeiramente sobre o Outro.


Maria Teresa Sá, Aguarela, Mar adentro.

De entre os humanos, médicos e enfermeiros, herdeiros de Asclépio, são preparados para ver a morte como o seu maior adversário e para contra ela se empenharem numa luta desigual, em que a vida surge como o bem maior, não importa a que preço. Perder esta luta não é apenas partilhar a angústia humana do fim, é também uma ferida no narcisismo de um Eu profissional que se restabelece em cada cura ou em cada vida que salva, que se culpa por ter falhado, que se fragiliza quando não é omnipotente como lhe é externamente pedido e, sobretudo, como de si mesmo exige.


A força de vida que cada profissional de saúde convoca para esta luta contra a morte está, a maior parte do tempo, do lado de todos nós e queremos que ela não esmoreça. Mas diante do que tem ou deixou de ter sentido para cada um de nós, no que respeita à nossa vida, também desejamos que esse narcisismo profissional possa ter a força de escutar a pessoa que tem diante de si e que respeite o que só a nós pertence. Tal desejo pode mesmo vir a habitar quem acha que a vida e a morte só a Deus pertencem e que, chegado a este momento, decida usurpar o lugar de Deus e tomar a sua vida e a sua morte em mãos. Mas acontece, como também bem sabemos, que nem sempre as mãos estejam capazes de ajudar à partida e que precisemos da mão do Outro, do seu auxílio, da sua solidariedade humana para a nossa morte, que com a sua força de vida ele nos assista nesse momento. Que seja solidário assim para além da vida. Alguns declararão objeção de consciência e não nos darão a sua mão. Seja. Mas uma sociedade evoluída, humana e solidária, saberá organizar-se para que alguém nos assista e esteja ao nosso lado. Boa morte ou morte digna é toda aquela que respeita a nossa dignidade e há muitas formas de morrer com dignidade. A forma como decidimos organizar a nossa vida não deveria ser imposição de ninguém, tal como a forma como decidimos da nossa morte. Ninguém a não ser o próprio é capaz para decidir sobre a sua qualidade de vida e é isso que vai determinar o seu desejo em prossegui-la ou interrompê-la. A ninguém é dado o direito de impor a sua filosofia, ciência ou religião, para decidir do sentido da vida de um Outro.


Na tarde de 20 de fevereiro, numa pausa entre sessões, da janela que abre sobre o Tejo e a colina de São Bento, chegava até mim a voz dos manifestantes que gritavam Vida Sim, Morte Não. Revoltada com o ruido manipulador da prepotência, um outro lado de mim ouvia a angústia de humanos incapazes de encarar de frente o sofrimento e de o pensar. À noite, ao ter conhecimento de que foram aprovados os projetos que finalmente viabilizarão no nosso país a morte medicamente assistida, fui conduzida de novo ao final de um Canto Telegráfico de Mário Cesariny “O amor redime o mundo diziam eles/mas onde está o mundo senão aqui”?


E agradeci.

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