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Writer's pictureCsongor Juhos

O Mundo do Vírus

Por Tiago Pires Marques



[...] Aqui não ficou rasto de nenhum monumento de superstição. A moral e a língua reduzidas à sua expressão mais simples. Estes milhões de pessoas que não têm qualquer necessidade de se conhecerem, levam com tal paralelismo a educação, a profissão e a velhice, que o seu tempo de vida deve ser muitas vezes inferior àquele que uma estatística louca encontrou para os povos do continente. Tal como, desde a minha janela, vejo novos fantasmas deslizando pelo espesso e contínuo fumo de carvão , - nossa sombra campestre, nossa noite de estio! – novas Eríneas diante do cottage que é toda a minha pátria e todo o afecto, já que tudo aqui é igual a si-mesmo , - uma Morte sem lágrimas, nossa activa filha e criada, um Amor desesperado e um lindo Crime ganindo na lama da rua. Jean-Arthur Rimbaud, “Cidade”

(trad. de Mário de Cesariny)

O infame William Burroughs propôs, em tempos, a seguinte teoria: a linguagem, que considerava a mais mortífera das qualidades humanas, teria surgido de uma mutação genética, produzida pela acção de um vírus em macacos. O tipo de inteligência biológica própria do vírus, a saber, a sua capacidade de replicação adaptativa, teria, assim, ficado inscrita no funcionamento da linguagem. Dependente dos hospedeiros para viver e replicar-se, o vírus visaria o ponto de equilíbrio entre duas orientações opostas, a similitude na réplica e a simbiose com um organismo outro.


Maman de Louise Bourgeois

A capacidade de este coronavírus existir, em estado de latência, em superfícies inorgânicas até encontrar um hospedeiro humano é exemplar da capacidade viral de fazer do mundo uma homogénea superfície de propagação. A lógica do combate à pandemia é, como se tem visto, a de provocar interrupções na superfície e evitar o encontro do vírus com o humano (isolamento social, lavagem das mãos, máscaras). Combatemos, pois, o vírus nos seus termos e não parece haver, por agora, outra forma de proceder. Porém, a contrapartida disto é a clara intensificação dos elementos virais da linguagem: o seu funcionamento replicativo parece transformar o nosso mundo numa só superfície de propagação e de controlo. Neste processo de adaptação mútua entre vírus e humanidade, uma nova língua colectiva exclui formas ancestrais de experiência – a presença própria da voz, ou a sensorialidade da pele e do olfacto. Observa-se também uma intensa disciplina do psiquismo: a sentimentalidade pensada para circular na forma de meme viral; o elogio produtivo do erotismo à distância; a injunção de não pensar o vírus para além do pragmatismo que deve convocar. A mobilização guerreira para a literalidade do combate e para a sentimentalidade abstracta traz consigo o obscurecimento das possibilidades não pragmáticas do pensamento, tais como o pensar errante, o sonho e a invenção poética. Numa palavra, elimina das actividades de pensar e de sentir as suas qualidades significantes, preênseis, não virais; e de viver e morrer extrai a experiência que não se adapta à lógica da réplica e do símile. As estatísticas diárias de mortos são já a figura linguística de uma morte replicada, da produção de mortos iguais; figura que tem o seu equivalente imagético nas dezenas de caixões alinhados nos pavilhões de Espanha e Itália, para os quais não há lágrimas possíveis.


Brooklyn Bridge Showing Painters on Suspenders de Eugene de Salignac

No limite, a experiência colectiva inteiramente colonizada pela lógica viral é a das perversões pragmatistas que vemos surgir agora a cada dia que passa – o presidente das Filipinas que anuncia a possibilidade de abate dos que não se sujeitarem ao confinamento (mate-se o hospedeiro!); a morte sem lágrimas que já se vai reservando aos velhos...


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