with
Howard Levine, Ofra Eshel, Riccardo Lombardi
Joshua Durban, Anne Alvarez, Avner Bergstein
Judy K. Eekhoff, Robert Caper, Leopoldo Bleger
Sebastian Thrul, Steven Jaron
Teresa Abreu & Csongor Juhos

FREE ASSOCIATION LISBON
Psicanalista

Rui Coelho
Obrigada por ter aceitado participar na entrevista. Costumo começar por esta pergunta: quem é o Rui Coelho?
Sou médico, médico psiquiatra. Fui professor universitário, catedrático; durante cerca de 45 anos trabalhei no Hospital de São João (CHUSJ), no Porto, e na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP). Fiz todos os concursos que as carreiras académica e clínica exigiam. Simultaneamente, iniciei uma formação analítica muito cedo, inicialmente, pensava eu, associada à profissão de psiquiatria que iria exercer e fiz uma análise pessoal, no Porto, e depois, penso que nesse mesmo percurso de análise pessoal, surgiu a possibilidade de fazer a formação para psicanalista, o que exigiu deslocar-me durante três anos a Lisboa, com idas semanais, e fazer ainda a primeira supervisão em Coimbra, também outros três anos, semanalmente. Isto é, durante cerca de seis anos, fiz esta viagem Porto – Lisboa, Porto – Coimbra. Tinha de ser.
Como foi, para si, fazer essas viagens durante seis anos? Porque é muito exigente.
Sim, sim, estávamos no final da década de 1980, não havia alternativa. No Porto, não tínhamos ainda o Instituto de Psicanálise do Porto, que é apenas inaugurado a 25 de setembro de 1999, portanto, a única hipótese era mesmo ir para Lisboa. Após essa formação inicial de três anos efetuada em Lisboa, era obrigatório haver duas supervisões de dois casos clínicos diferentes, de sexos diferentes, um homem e uma mulher, com um analista didata. Havia, então, um analista didata em Coimbra. Portanto, desloquei-me a Coimbra também semanalmente, após a formação dos três primeiros anos em Lisboa. Não foi fácil, tinha família, e olhando para trás, penso que foi preciso ter uma grande motivação, entusiasmo e um muito bom suporte familiar. Mas o mundo está a mudar muito, e toda esta questão da tecnologia, inevitável, traz globalmente mudanças em relação à análise, começam a discutir-se processos complexos, com alguma sensibilidade.
São as vantagens e as desvantagens da tecnologia.
Tivemos um período muito difícil, que nos apanhou a todos de surpresa. De repente, um vírus irrompe, instala-se uma pandemia, assusta e paralisa o mundo. Na altura, já era diretor da Clínica de Psiquiatria e Saúde Mental, nas áreas de Psiquiatria, Pedopsiquiatria e Psicologia no Hospital de São João, e lembro-me que março de 2020 não foi fácil, passava-se algo de desconhecido para nós, o uso obrigatório da máscara, o distanciamento social. E este acontecimento inesperado – eu acho que a vida contém isso, temos de estar preparados para o inopinado, para o não pensado – foi extremamente violento. Acarretou também algo que é prejudicial, o stress crónico, nós acordávamos e pensávamos «como é que vai ser o dia de hoje, como vão estar os cuidados médicos intensivos no hospital?».
No ensino, eu era responsável, enquanto Diretor do Departamento de Neurociências Clínicas e Saúde Mental da FMUP, pelo ensino da Psiquiatria, e pelos Mestrados e Doutoramentos da responsabilidade do Departamento, e nós, num espaço de mês e meio a dois meses, mudámos para o online (ensino à distância) todo o ensino presencial que se fazia na Faculdade de Medicina, licenciaturas, pós-graduações, mestrados, doutoramentos. Tivemos um apoio extraordinário, quer da Reitoria da UP, quer da área de informática da FMUP e do HUSJ, de modo a que tivesse sido possível mantermos uma atividade regular clínica e letiva.
Eu penso que parte desta experiência ficou, isto é, hoje em dia, é possível e desejável, e foi um bem, podermos fazer reuniões através de meios tecnológicos, isto é irreversível. Agora, relativamente à formação em Psicanálise, eu penso que a parte teórica, a parte dos seminários, certas reuniões clínicas, podem e devem beneficiar do uso das tecnologias. Já uma análise pessoal, para mim é impensável, e mesmo as supervisões é muito difícil, na minha opinião, não serem presenciais.
Estava a ouvi-lo falar e não foi assim há tanto tempo…
Exato, estamos em março de 2024 e foi há quatro anos. Eu penso que houve um movimento de grande solidariedade, penso que a União Europeia fez um trabalho fundamental, interessante, nessa área; no esforço, por exemplo, de acumular meios financeiros para que, tão cedo quanto possível, fossem disponibilizadas vacinas para algo ainda não completamente conhecido.
Parece que, face a uma ameaça, houve a capacidade de várias instituições e países se unirem no sentido de desenvolver qualquer coisa importante para todos, isso nem sempre é possível.
Exatamente, sim, sim, um princípio oblativo, de generosidade. Passou-se de um paradigma claramente competitivo e concorrencial para um de cooperação, de solidariedade, e ficou muito claro que, quando é possível cooperar, é melhor, as pessoas ficam melhores, o mundo fica melhor. É a grande diferença entre cooperar e competir.
Isso é verdade, da cooperação vem a construção, o crescimento, na competição gastam-se demasiadas energias e apesar de haver um vencedor, todos ficam mais pobres.
E há uma espécie de efémero, quer dizer, costumamos dizer que a vida é breve, tudo isto são coisas de uma certa grandiosidade, de uma omnipotência ilusória, que, por exigirem aquela competição de que há bocado falámos, mostram aquilo que há de pior em nós.
Penso que Freud muito cedo falou disso, que a nossa cultura-civilização é muito frágil.
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E isso vê-se, as pessoas aparecem na clínica preocupadas com as transformações que houve no mundo, saímos da pandemia, veio a guerra…
Mas é isso mesmo, o mundo atual vive momentos de profunda exigência e transformação, equilíbrio e sensatez, porque houve uma pandemia, há uma guerra que se instala na Europa, previsível por muitos, há outro conflito que aparece no Médio Oriente. Nós temos, neste momento, a televisão a transmitir conflitos, com genocídios e coisas muito complexas e destrutivas, como se isso fosse normal e adequado. E se isto é difícil de ser metabolizado, integrado, por nós, adultos, o que é que uma criança, ou um adolescente, que está em “construção”, a olhar permanentemente para aquelas imagens, pode pensar e sentir? E que respostas têm os adultos? Nem sempre temos respostas, nem sempre é fácil sentir e elaborar o que ouvimos e visualizamos… o terror… o impensável…
Por volta de 2018, houve uma exposição no Museu da Eletricidade de Lisboa que se chamava Felicidade, onde se referia algo curioso: todos os jornais que tinham aparecido só para transmitir factos positivos, tinham falido.
Parece que o facto positivo não vende. Mas é curioso, também é possível transformar com criatividade momentos de grande sofrimento, de grande amargura em coisas muito boas, na literatura, na arte, na música, na poesia…
Falando da pandemia, houve pessoas que lidaram com aquele momento muito difícil de uma forma mais integrada, e outras que se desestruturaram mais, e ainda hoje encontramos vestígios disso na clínica.
Faz todo o sentido. Tivemos situações de fobia, de pânico, em crianças e, ainda hoje, temos os adolescentes com questões, por exemplo, da sua identidade. Claro que, de repente, crianças e adolescentes ficaram em casa, deixaram de conviver, num período em que faz parte da sua maturidade psíquica a interação e a relação, fica uma lacuna, uma presença da ausência, uma zona traumática.
Como chegou à Psiquiatria e à Psicanálise? Era claro para si, quando foi para Medicina, que queria especializar-se em Psiquiatria, ou foi uma opção que foi crescendo?
Eu sou o segundo de quatro irmãos. Quer o meu pai, quer a minha mãe, eram ambos licenciados em Farmácia… formaram-se em Coimbra. Ambos eram diretores técnicos e abriram uma farmácia em Braga; e ficámos a viver ali muito perto. A farmácia tinha uma zona mais dianteira, mais comercial, de receção aos clientes e entrega dos medicamentos, mas atrás, tinha uns armazéns e uns reservatórios onde estavam os medicamentos e os chamados produtos químicos que iriam ser manipulados. Portanto, a farmácia, durante a nossa infância, marcou-nos bastante, quer dizer, acho que esta conexão à doença, aos doentes e aos medicamentos, foi uma constante. Curiosamente, paradoxalmente ou não, dos quatro filhos, nenhum vai para Farmácia, mas eu penso que, se calhar, em mim, terá tido alguma influência nesta associação à medicina.
Na adolescência, há um turning point, eu associo-o muito com a convivência com o meu irmão mais velho, três anos, com os colegas da idade dele e com colegas ainda mais velhos do que ele. Eu com dez, onze anos convivia com pessoas de treze, quatorze, quinze anos, o que, na altura, fazia muita diferença. Isto era antes do 25 de Abril, e muito cedo nós tínhamos tertúlias, habitualmente ao fim de semana, em que se discutia a situação política de Portugal. Havia muita influência do que acontecia em Paris, devido ao Maio de 1968.
Entretanto, o meu irmão vai para Coimbra, estudar Engenharia e acontecem as greves estudantis dos finais de 1960, há a discussão que ocorre então com autores como Guy Debord, Cooper, Laing, Basaglia, portanto, há uma estimulação social e política precoce e factual, sem dúvida, e muita leitura. Lembro-me que, na altura, fui com um amigo de liceu fazer inter-rail e durante três meses, de julho a setembro, dois verões seguidos, estivemos lá fora. Tive oportunidade de trabalhar em working camps na Inglaterra, em restaurantes, numa fábrica de embalagens de salsichas e de conviver com jovens de outros países, em que a política estava muito no quotidiano. Nunca me esqueci de com quinze, dezasseis anos, um italiano, num dos working camp, me ter questionado se eu não tinha vergonha de pertencer ao regime político português, salazarista.
Entrei para a Faculdade de Medicina do Porto, muito ligado a grupos de esquerda, ainda me lembro de ter fugido a investidas da polícia no meio estudantil, isto até ao 25 de Abril, estava, então, no final do segundo ano da faculdade. Eu ia frequentemente de madrugada para a periferia do Porto, distribuir jornais clandestinos de esquerda. Quando veio o 25 de Abril, envolvo-me também muito ao associativismo académico da FMUP, até que, pelo quinto, sexto ano, fui convidado para monitor de uma Unidade Curricular do ensino básico da FMUP, e então, aí, comecei a afastar-me e a dedicar-me mais ao estudo e à investigação.
Porquê a Psiquiatria? Foi sempre uma curiosidade, sim, decidi durante o curso que ia para Psiquiatria. Devo dizer que, na altura, a Psiquiatria não era assim muito bem vista e era, e ainda é, estigmatizada… Portanto, acho que a Psiquiatria, por aquilo que tinha de objetivo, mas sobretudo por aquilo que tem de social e subjetivo, e pela relação interpessoal, era uma escolha definitiva.
A minha aproximação à análise foi também por aí, quer dizer, achei que para ser melhor psiquiatra era importante conhecer-me melhor.

Então a análise começou por ser um trabalho pessoal e só depois é que pôs a hipótese de fazer a formação psicanalítica.
Sim, sim, por todos os motivos. No Porto havia, no início dos anos da década de 80 do século passado, um analista didata, Jaime Milheiro, com quem fiz uma longa análise, interrompida por um ano enquanto acabei o doutoramento, na Universidade de Glasgow, era já psiquiatra, e que, depois, continuei a análise. E, às tantas, durante o percurso da própria análise pessoal, foi assim um pouco elaborado, o possível aprofundar da formação analítica, que veio fazer sentido, veio completar aquele trabalho pessoal.
Considero que a psicanálise não é uma corrida de cem metros, é uma maratona, bem ao longo de toda a vida. Eu era estudante e ia lendo dois semanários médicos, o Jornal do Médico e O Médico, em que, todas as semanas, saía uma página, escrita por um senhor que eu não conhecia, chamado António Coimbra de Matos, que eu lia, e ia guardando e arquivando aquelas páginas. Isto levou a que, anos mais tarde, tenha acabado por publicar, através da Fundação Bial, aqui no Porto, em 12 volumes e por ordem cronológica, em cerca de duas mil páginas, todos os seus trabalhos, desde 1959 até 1994, com o título António Coimbra de Matos: Escritos (publicados previamente em diversas revistas). Ele era um excelente comunicador, com ideias muito inovadoras, numa série de áreas, não é um autor fácil, longe disso, é preciso ler e reler. Ele foi alguém que, se calhar, indiretamente, teve algum papel nessa minha escolha (formação)…
Entretanto, fiz a candidatura à Sociedade Portuguesa de Psicanálise… e sei que passados uns anos, quando o procuro para fazer este projeto da publicação dos Escritos, ele me pergunta, «de onde é que o Rui conhece a minha obra?». Estou convencido de que ele, no início, achou o projeto excessivo, demorado [risos] e isso contribuiu, também, para estabelecer a proximidade…
Mas ao longo deste tempo, eu tinha tido um papel muito associado à psicossomática, toda a minha investigação no mestrado, no doutoramento, foi sempre na saúde mental na área ligada à Cardiologia, hipertensão arterial, enfarte do miocárdio, insuficiência cardíaca, follow up… Entretanto surgiu a hipótese de eu propor à Fundação Bial a publicação dos Escritos, atrás referidos.
Estava a dizer que a Psicanálise é uma maratona e não uma corrida de cem metros, gostava que explicasse um pouco melhor a sua ideia.
É assim, a Medicina treina-nos muito para a doença, para doenças complicadas, para um tratamento, sinais, sintomas, exames analíticos e imagiológicos. A Psiquiatria, penso que hoje ainda mais, foi lá buscar [conhecimento] e enriqueceu a fenomenologia, isto é, o estudo exaustivo da psicopatologia (recordemos os trabalhos de Jaspers, Conrad, Schneider), da atividade delirante, da melancolia, da paranoia, enfim, de quadros clínicos muito do tempo da abordagem da psiquiatria francesa e alemã – que se preocupava em compreender, em ouvir, até porque não havia como atuar farmacologicamente, já que os psicofármacos apenas aparecem nas décadas de 1950 e 1960 em diante, portanto, há relativamente pouco tempo.
Mas mesmo a Psiquiatria é cada vez mais biológica, há modelos que fazem todo o sentido, mas que percebemos que chegam apenas aos sintomas, quer dizer, quando estamos com febre é bom que tomemos o paracetamol para a baixar, mas depois é preciso saber o porquê, de onde vem essa febre. Eu penso que a Psicanálise tenta ir mais por aí, pelo “porquê” do sofrimento…
Os autores dessa Psiquiatria de que falei, fenomenológica, como o Tellenbach, com a melancolia, o Bleuler, com a esquizofrenia, o Ey, com a alucinação, foram exaustivos na descrição fenomenológica dos doentes, gravíssimos, muitas vezes hospitalizados… A psicanálise é um outro mundo, é outra coisa, a psicanálise exige, é um permanente vaivém do nosso passado, presente, futuro, do nosso dentro e fora, é a nossa subjetividade, o nosso implícito. Numa análise pessoal, nós estamos plenos de fantasias e ilusões, mas é importante percebermos os aspetos destrutivos, negativos e arrogantes que também temos, omnipresentes inclusive, e é isso que nos permite uma melhor compreensão da criança que fomos e do adolescente que nos construímos e, também muito importante, a elaboração dos pais e irmãos que tivemos. Eu penso que, ao promovermos esta maior humildade, diminuímos a nossa vaidade, a nossa arrogância, temos de ser necessariamente pessoas mais dadas, mais colaborativas, mais generosas…
Mas esse movimento para tolerar, estar aberto à diferença, mantendo a sua singularidade, é difícil. A análise pessoal é preparatória, e é suposto dar-nos competências para começarmos a voar… julgo que era o Meltzer que falava em sermos mais existentes do que sobreviventes!... E, não podendo alterar o passado, podemos atribuir significados diferentes, promovendo uma integração e um contínuo mais coerente... Mas também temos de ter cuidado, isto é, este dentro e fora, intrapsíquico e intersubjetivo, remete-nos permanentemente para uma realidade interna que todos nós temos, mas também para estarmos atentos a uma realidade externa e penso que este é o grande desafio, um certo balanceamento adequado, um ajustamento entre o interno e o externo, ou como César Botella e Sara Botella referem: “Only inside – also outside”.
Sim, é complexo, no fundo, o trabalho de análise pessoal, à partida, dá-nos mais liberdade de sermos quem somos, de termos uma voz própria, mas também seria importante dar-nos mais liberdade de aceitar os outros como são, com a sua voz própria. Agora, o equilíbrio entre o interno e o externo, qual é a minha tolerância pelo outro, mas também quais são os meus limites, é um equilíbrio delicado.
O Coimbra de Matos dizia muito isso: «…a análise tornou-me mais tolerante, mas se quer saber, também mais intolerante…». É também, no trabalho de análise pessoal, eu estar presente sem ser invasivo e estar reservado sem ser abandónico. É um trabalho sempre a dois, ou a três, quando há supervisão, e penso também que, enquanto analista e/ou supervisor, eu tenho de me sentir a crescer e sentir-me implicado, senão algo não está bem…
Um dos meus supervisores dizia que nós não podemos andar à frente das pessoas, temos de andar ao lado delas, mesmo que vejamos mais à frente.
Exatamente, é isso mesmo! Nas tais entrevistas iniciais que se fazem, antes do início do processo analítico, construímos uma estrutura, quem é quem, com quem vamos estar e trabalhar, para podermos estar sempre ao lado e, embora possamos ver além, termos muito cuidado em falar na altura própria, em sermos contidos. É percebermos que a pessoa precisa do seu tempo, na análise aprendemos a escutar e a esperar, há, quase que permanentemente, um tempo de espera.
Disse que sempre esteve muito ligado à psicossomática e, dentro desta, à Cardiologia. Foi por escolha ou por causa do serviço a que esteve ligado?
Foi o serviço de psiquiatria, foi uma casualidade. O especialista, meu orientador de formação em psiquiatria, com quem trabalhei, Rui Mota Cardoso, tinha uma forte ligação à Cardiologia e convidou-me para trabalhar com ele, que estava nos “enfartes” do miocárdio e eu fui para a hipertensão arterial. Fui com alguém que já tinha essa porta aberta e, através dessa porta, havia dois serviços: um serviço de Medicina Interna com uma forte componente de investigação, e uma forte clínica em Cardiologia, em que esse meu colega trabalhava. Depois, havia um serviço de Cardiologia propriamente dito, ao qual me liguei e, aí, iniciei-me no estudo e investigação da psicocardiologia.
Essa pergunta é muito interessante, porque o professor de Psiquiatria que eu conhecia e com quem, no início, trabalhei foi o Fernandes da Fonseca, ele foi contemporâneo do Eduardo Luís Cortesão. E o Fernandes da Fonseca trabalhava muito na questão da psicossomática, em particular na gastroenterologia e na dermatologia. Então, ele referia que havia autênticos «equivalentes», psicossomáticos que ele designou de «afetivos», que se podem expressar somaticamente, por exemplo, através da úlcera gástrica, de uma colite ulcerosa ou por alterações da pele. E havia, em Madrid, o professor López-Ibor Aliño, que falava em «equivalentes depressivos», ou seja: «eu tenho uma depressão, mas a minha depressão tem uma expressão somática, manifesta-se por eu ser hipertenso, ou por dores de cabeça, articulares, ou gástricas», é o corpo… Ora, o Fernandes da Fonseca dizia que podia não ser só depressão, a pessoa podia estar em mania e isso ter a expressão corporal, as por ele designadas “metamorfoses” de natureza maníaca e hipomaníaca…
Isto é, desde cedo, no Hospital de São João, na Faculdade de Medicina do Porto, houve um grupo por ele reunido, que desenvolveu muito a investigação em psicossomática. No serviço de psiquiatria, de algum modo, e por estarmos num hospital central e universitário, tínhamos essa facilidade de estarmos paredes-meias com serviços de medicina, cardiologia, cirurgia, de haver este intercâmbio.
Nem sempre era muito bem aceite pelos outros médicos, eu conheci cardiologistas que não valorizavam muito a psiquiatria, mas havia outros que me diziam: «Este paciente tem uma hipertensão, fez um enfarte, isto é cá de cima... », ou seja, também emocional, houve sempre esta associação entre o serviço de psiquiatria e os serviços de medicina no Hospital de São João. Houve esta riqueza, esta sorte, a interação entre a psiquiatria e as restantes áreas médicas.
Falei em Eduardo Luís Cortesão, os dois – com Fernandes da Fonseca – estiveram juntos num estágio, em Londres. Este último promovia frequentes vindas ao Norte, do Eduardo Luís Cortesão, que era um homem da grupanálise e da psicanálise. Eu diria que, no Norte do país, a Psicanálise era, de algum modo hostilizada, posta à parte, quer dizer, tínhamos em Lisboa o ISPA e a Faculdade de Psicologia, com o Carlos Amaral Dias, o Coimbra de Matos, o Pedro Luzes… Na Faculdade de Medicina e na Faculdade de Ciências Médicas, em Lisboa, foram muito importantes pessoas como o José Carlos Dias Cordeiro e o Eduardo Luís Cortesão, respetivamente; eram pessoas com responsabilidade no ensino e na clínica e eram sensíveis à área da psicodinâmica… da psicanálise… Felizmente, no Porto, Eurico de Figueiredo, psiquiatra e psicanalista, teve um importante contributo no Ensino e na Clínica, respectivamente no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS) e no Hospital de Magalhães Lemos; agregou ainda, no Ensino da Psicologia (ICBAS), Celeste Malpique e Manuela Fleming, ambas psicanalistas e com publicações relevantes na Psicanálise.
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Em alguns casos, separam-se o corpo e a mente, o corpo e o funcionamento psíquico, como se fossem duas entidades distintas. Por exemplo, quando as pessoas dão entrada num serviço de urgência ou são internadas num serviço de medicina intensiva, é-lhes retirada toda a medicação psiquiátrica, porque tem de se resolver a situação aguda que as levou ali, desvalorizando-se o impacto que isso pode ter. Gostava que falasse um pouco mais disso, o que sente que pode ser o papel do serviço de psiquiatria nesta ligação…
E fala bem, há mesmo uma área designada Psiquiatria de Ligação, que eu cheguei a coordenar no Hospital de São João. Naquele ano em que estive na Universidade de Glasgow, estive numa MRC, ou Medical Research Council, no estudo da tensão arterial, inserido numa Blood Pressure Unit, associada ao Departamento de Psiquiatria do Gartnavel General Hospital.
Há questões nos cuidados intensivos de decisão entre a vida e a morte, desde o recém-nascido, na neonatologia, há situações limite. Depois, há a nossa formação em Medicina em que temos mais de trinta unidades curriculares, e temos uma de Sociologia, outra de Psicologia Médica, outra de Psiquiatria, outra de Ética, isto é, o curso é excessivamente organicista, biologista. Até 2009, quando eu assumi a direção do serviço de Psiquiatria da FMUP, estive bastante presente em muitos congressos de Psicanálise e de Psiquiatria em que ouvi desde, «é tudo culpa da mãe», até «isto é tudo cérebro… há de haver uma molécula que ainda não conhecemos, mas que se há de descobrir». Também acredito que muitos colegas, por defesa, afirmem, «isto é biológico, tem de ser orgânico», tal como ouvimos ainda hoje dizer, em 2024, «ele está doente porque quer», e falamos de doente depressivo. E também tenho colegas cirurgiões que estudam exaustivamente os exames analíticos e imagiológicos das pessoas que vão operar, estudam toda a situação clínica, querem saber se é homem ou mulher e idade, mas praticamente mais nada da sua psicobiografia…
Mas aí eu percebo que saber mais pode fazer-me estabelecer uma relação e eu ser menos eficiente do ponto de vista cirúrgico.
Além disso, nós médicos, temos protocolos muito minuciosos e objetivos e, portanto, introduzir o psíquico, introduzir a subjetividade, complica, dificulta, promove a complexidade.
Para mim é surpreendente, é como se a emoção não pudesse estar presente na cirurgia, na ortopedia, etc, ou seja, se eu disser a alguém que tem cancro ou que vai ter de ser amputado, se a pessoa à minha frente ficar abalada, eu diria que é natural.
Sim, o que está a dizer faz todo o sentido, mas implica que o médico seja sensível e que tenha tempo e nós, hoje em dia, temos consultas a cada quinze, vinte minutos, excepcionalmente, trinta minutos. Exige tempo e sensibilidade, preparação, o tal cuidado de que há bocado se falava, cada vez mais, seja a nível público, privado ou social.
É paradoxal que, num momento em que se supervaloriza a emoção, pareça haver cada vez mais dificuldade, na medicina, em acolher a emoção do outro. Mas em dez minutos não é trivial. O doente está fragilizado e, portanto, a relação e o acolhimento que o médico faz, o sentir-se olhado, são aspetos importantes.
A tal empatia, não é? É suposto que nós terapeutas sintamos quem nos procura, mas nós também somos sentidos, e não é por acaso que a pessoa volta ou não volta, mantém-se ou não se mantém. O outro também nos lê, nos sente, o outro também nos intui.
Estava a pensar se haverá algo de que não tenhamos falado e que gostasse de trazer para a entrevista.
Talvez, algumas coisas. Eu penso que Psicanálise sem Freud não há, Freud é fundamental para a teoria, a técnica e a investigação em psicanálise, toda a sua obra, de 1886 a 1938, mostra tal. Acho que é obrigatório, na minha opinião, conhecer Abraham, Ferenczi, Klein, Bion, Winnicott. Há outros psicanalistas que eu considero muito, como por exemplo: Maurice Bouvet, André Green, César Botella, Sara Botella, Pierre Marty, Michel Fain, Pierre Fédida, Francis Pasche, Nicolas Abraham, Maria Torok… Nós percebemos que houve dissensões e atritos já desde Freud, e Freud fez o que pôde, escreveu, todos reconhecemos a sua honestidade intelectual, o saber, a curiosidade, a investigação… E houve todo um conjunto de seguidores, que eu penso que temos de integrar, alguns levaram ao limite dissensões importantes, como Lacan, Kohut ou Erikson.
Mas há um autor, Kernberg, que, há muitos anos, escreve sobre a questão da formação em Psicanálise, a questão das sociedades psicanalíticas, por vezes, se confrontarem, e o risco de a psicanálise se transformar numa ideologia e afastar-se do modelo científico. Eu conheço e prezo o seu trabalho, claro que dentro do contexto, também institucional, em que ele trabalha, e tendo em conta a sua história pessoal. Mas lembro-me no encerramento de um congresso da IPA [International Psychoanalytical Association], em que eu estava presente, Kernberg ter dito o seguinte: que a psicanálise tem de ser pensada e repensada de alto a baixo, o nosso trabalho, a nossa técnica, o que queremos fazer; que a psiquiatria biológica está no seu apogeu e que cada vez mais vemos o papel dos psicofármacos; que os psiquiatras se afastam da psicanálise… Metade da sala abandonou a sua palestra e a outra metade levantou-se e aplaudiu.
Metade da sala levantou-se e abandonou?
Foi-se embora, em protesto, por ele ter dito, “temos de repensar o que andamos a fazer”. O Kernberg escreveu as famosas «Trinta formas de acabar com a criatividade dos candidatos a psicanalistas» [1996]. Tem um livro inteiro sobre as altercações das organizações institucionais. Alguém como ele, que publicou imenso, refletindo, alertando, numa perspetiva do diálogo de que há bocado se falava, de cooperar, quase de pedir, devia levar-nos a parar, elaborar, reunir, falar…
Mas o que é que isto tem a ver com os tempos de hoje? A Psicanálise está instalada na Europa, nos Estados Unidos, na América do Norte e do Sul, e agora na Ásia – Pacífico, são quatro regiões geográficas muito diferentes. E este avanço da tecnologia, que a pandemia promoveu, e bem, pode ser utilizado, em particular, no ensino. Por exemplo, aquele trabalho que eu fiz entre Porto e Lisboa, durante três anos, para seminários teóricos e seminários teórico-clínicos, hoje em dia poderia ser feito em outras condições, com o apoio tecnológico.
Aquele congresso da IPA para mim teve um grande impacto. Como regulamentar adequadamente? Como validar o que é introduzido, proposto de novo? Parece-me que é um desafio complexo, é preciso ter muita prudência, perceber que, se calhar, não é possível ter regras muito rígidas, inaplicáveis em determinadas zonas, porque o mundo, a geopolítica, estão a mudar.
Não é claro por onde ir, o que é claro é que é preciso pensar, ouvir, debater. E lá está, perceber a diversidade, a IPA perceber o que pode exigir, o quê, como, a quem… Portanto, eu penso que a tecnologia vai trazer desafios. São tantos os fatores, mas arriscamo-nos a que o online comece a predominar. Por exemplo, a questão do corpo na tele-análise como será?... a transferência, a contratransferência, o silêncio, as tonalidades de voz?... Há tanta coisa rica que nos ajuda no modelo presencial, no setting psicanalítico…
Um outro aspeto é a clínica, que tem de ser repensada. Hoje sabemos que as histerias clássicas se calhar não eram bem histerias. Temos cada vez mais as situações clínicas limite, os estados-limites…os sofrimentos narcísico-identitários, os núcleos de destrutividade marcada, quer auto, quer hetero, com núcleos perversos, psicóticos, melancólicos… as adições, as patologias do agir, o corpo doente… no adolescente a questão identitária, as práticas sexuais com alguma perigosidade, a solidão na criança e no idoso… Cada vez mais, aparecem-nos pessoas com 50, 60 anos; Freud referiu que depois dos 50 não era possível fazer psicanálise. E, portanto, a clínica também está a mudar. Temos de estar atentos à complementaridade e ter algum cuidado em aderirmos facilmente a práticas que retiram a essência da análise…
É mesmo um desafio e não há uma resposta clara.
Mas se chegarmos aí, já é bom, é um desafio; vamos pensar, ouvir, debater…
Há um artigo de Freud em que ele compara as práticas religiosas com as práticas obsessivas, às vezes, nas nossas sociedades e instituições psicanalíticas parece existir uma ideologia quase religiosa e não tanto uma elegia do pensamento, do crescimento, da construção.
É por isso que eu acho que o psicanalista tem de ter vida para além da psicanálise. Pessoalmente, tive um excesso de trabalho institucional, mas ter família, filhos, netos, ter amigos, ter vida para além da psicanálise é a única hipótese, porque senão também ficamos fora da realidade em que estamos, construímos uma realidade perfeitamente ao lado, clivada…
Deixamos de ter em conta a realidade externa, que também se impõe. Podemos ter um trabalho mais analítico, ligarmos mais ao funcionamento interno, mas o externo tem de estar presente em vários sentidos.
Mas só para acabar, nesta minha relação com a psicossomática houve um período em que me interessei muito pela Escola Psicossomática de Paris, estagiei no Hospital Bichat – Claude Bernard, na área de gastroenterologia com Jacques Gorot e na de Cardiologia com Jocelyne Vaysse, e durante alguns anos fizemos um intercâmbio curioso entre Paris e Porto, na área da psicossomática, com psicanalistas como Sami-Ali, Sylvie Cady e Jean-Marie Gauthier, entre outros.
Tive também entusiasmo quando apareceu a neuropsicanálise. Eu entrei em contacto com o Mark Solms. Fui ao primeiro encontro em Londres, trouxe cá, ao Porto, o Mark Solms, em 2001 e, depois, fui a um segundo encontro, em Nova Iorque. Houve um período em que me correspondi com ele. E depois percebi que era interessante a neuropsicanálise, mas às tantas, é outro modelo, quer dizer, nas neurociências há sobretudo um estudo sobre as emoções, a relação das emoções e, de facto, é possível dialogar até certo ponto; valorizam muito a psicometria, a bioquímica, a imunologia… São pessoas que dão contributos interessantes para algumas das nossas questões, da inter-relação, da subjetividade, de uma psicanálise. Lá está, são movimentos que aparecem, movimentos de complementaridades, de ir além, mas que nem sempre se conciliam.
Isso leva-me aqui a outra questão, que é a nossa capacidade de comunicar. Sinto que, muitas vezes, entre os psicanalistas, não há muita facilidade em sermos entendidos e em nos fazermos entender.
Somos muito culpados por isso, na Psicanálise, de cultivar uma linguagem hermética, que afasta. Seria bom falarmos com o nosso saber, mas também com as dúvidas que temos. Eu senti muito o que acaba de dizer, psiquiatria, psicanálise… [Risos]
Uma coisa é sabermos que o nosso público são os colegas, outra é a capacidade de divulgação científica. O Carl Sagan foi um dos primeiros cientistas a apostar na divulgação científica e começou por ser muito criticado, mas houve uma série de conceitos e ideias científicos que, não sendo fáceis, ele conseguiu transmitir e divulgar junto do público. Sinto que nas nossas áreas, há esta dificuldade de vermos quem é o nosso público, a quem é que nos dirigimos, qual é o objetivo da nossa mensagem. E isso não ajuda a psicanálise a estar presente.
Tem razão no que está a dizer. Eu tive, em particular, dois convites para falar e discutir enquanto psicanalista em que para além da delicadeza dos temas me foi exigente adequar o que pretendia transmitir ao grupo a que me dirigia… um para falar sobre a pedofilia, um segundo sobre a orientação sexual e a ideologia de género… e não foi fácil, como diz… Há muitos anos que tenho situações clínicas de seguimento e, portanto, é uma realidade que tento perceber e conhecer e é uma realidade clínica extremamente difícil, que acarreta, por vezes, um sofrimento enorme.
Porto, março de 2024
Entrevista realizada por Alexandra Coimbra
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