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A Urgência do Essencial. Em Defesa da Saúde Mental Infantil e Juvenil.

Updated: Nov 6, 2019

Por Maria Teresa Sá



"É Possível? Sim é possível! Porém, se tudo isto é possível, se tem mesmo só uma aparência de possibilidade, então, por tudo o que há no mundo, é preciso que aconteça alguma coisa."

Rainer Maria Rilke

Temos vindo a assistir ao avanço de um discurso “neuro”, que vai ganhando terreno na Psiquiatria da Infância e Adolescência, na Psicologia, na Pediatria e na Educação, com o apoio de lobbies da indústria farmacêutica e de “clínicas de neurodesenvolvimento” (das quais vamos lendo confrangedores relatórios que acompanham crianças e adolescentes, medicados com fármacos, por vezes desde a creche).

Na ausência de uma verdadeira escuta para as suas dificuldades, de um acompanhamento profissional acessível, informado, integrado, competente e continuado, que lhes permita serem acolhidas nas suas dúvidas e aflições, muitas famílias em busca de respostas rápidas e, também, educadores e professores perdidos diante das dificuldades que encontram nas suas salas e para as quais as suas magras formações não os prepararam, aderem a estas intervenções, sendo muitas vezes, na verdade, a primeira resposta que encontram.

As investigações no campo das neurociências, da neurobiologia e da neuropsicologia, que sabemos serem um importante suporte e contributo para o avanço do conhecimento, apropriadas por grupos fanáticos, transformam-se em armas de arremesso, de poder e de manipulação, que procuram explicar o devir humano através de uma engenharia de conexões cerebrais, justificativas das mais grosseiras abordagens farmacológicas, com o seu complemento de seguimentos neuro-comportamentais.


Ilustração de Marc Lizano et Carole Trébor

Essencialmente, estamos a falar da passagem de um modelo humanista, dinâmico, eco-sistémico e integrativo, que procura as causas do mal-estar, das dificuldades e do sofrimento infantil e juvenil, na história e na vida mental do sujeito, na sua construção complexa e dinâmica, nas suas interações com o meio, para um modelo unidimensional e reducionista, biológico, a-histórico e a-social.


O fascínio pelo falar “neuro” tomou conta de muitos profissionais de saúde mental, conduzindo a um confrangedor enfraquecimento das faculdades críticas. É como se tivessem deixado de existir trajectórias de crescimento, epigénese ou contextos familiares e sociais. Há tão somente “conexões cerebrais”. Confunde-se o mental com o cerebral e a vida psíquica com a neuroimagiologia.

Em certas obras e currículos apagaram-se os termos “desenvolvimento” ou “dificuldades do desenvolvimento”, substituindo-os por “neurodesenvolvimento” e “dificuldades do neurodesenvolvimento”. Correu mesmo uma Petição Pública à Ordem dos Médicos para que fosse reconhecida a subespecialidade em “Pediatria do Neurodesenvolvimento”, designação que, pretendiam os subscritores, substituísse a de “Pediatria do desenvolvimento” (citamos: “(…) A terminologia de “Pediatria do Neurodesenvolvimento” é atualmente de uso corrente em detrimento da designação anterior de “Pediatria do Desenvolvimento” e “(…) as patologias do neurodesenvolvimento constituem a patologia crónica mais frequente na criança e no adolescente”).

Podemos imaginar, com estupefação e horror, à semelhança do que acontece a milhares de crianças e jovens que são atendidos, levianamente diagnosticados e excessivamente medicados em clínicas de neurodesenvolvimento, o dia em que as famílias, ao marcarem uma consulta de pediatria para os seus filhos, encontrem pela frente, desde os primeiros anos de vida do bebé, um destes “pediatras do neurodesenvolvimento”!

Também ofertas formativas em “neuro-educação”, com estratégias de marketing bastante persuasivas, invadem insidiosamente as bolsas de formação para professores e educadores (desde a Educação Pré-Escolar), ao mesmo tempo que nos currículos é cada vez menor o número de horas dedicado ao aprofundamento das problemáticas desenvolvimentais e centradas na compreensão e estudo da vida emocional e relacional da criança, na construção do seu mundo interior, na integração psicossomática, nos contextos nos quais cresce e se desenvolve, suas vicissitudes, desafios, sofrimentos e dificuldades. A atenção à investigação pedagógica e à relação educativa vai também cedendo lugar à programação neurolinguística, ao neuro-feedback e ao fitness cognitivo-comportamental.

Sabemos ao que este caminho tem conduzido: diagnósticos abusivos de milhares de “PHDA” (Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção), 70 000 casos no nosso país, e medicação subsequente com psicoestimulantes (ritalina, concerta). Diante de um comportamento hiperativo, ou desatento, ou impulsivo, deixou de se perguntar e de investigar: o que significará? de que falará este comportamento e o que falará nele ? Para, a partir de preenchimento de fichas, proceder à classificação “É um PHDA” (ou um “portador de PHDA, como agora se vai dizendo) e é por isso que está desatento, que se mexe muito e desordenadamente, que é muito inquieto e impulsivo. O cérebro explica.

Com este vertiginoso e perigoso deslocamento, estamos diante de uma verdadeira PDASMI (Perturbação de Défice de Atenção à Saúde Mental Infantil). Explico-me:

1. O ABANDONO DO CONCEITO DE SINTOMA

O sintoma (comportamento expressivo) e que, portanto, pede investigação, é substituído pelo comportamento explicado em si mesmo por uma conexão cerebral ou um disfuncionamento cerebral… mínimo.

2. O ABANDONO DA ETIOLOGIA

O estudo e investigação das causas é substituído pela nosografia - categorização e caracterização das patologias, segundo classes, ordens, géneros e espécies (DSM). Ora as perturbações mentais em geral, e em particular as da criança e do adolescente, não são doenças como as outras, quer dizer, comparáveis às doenças somáticas.

3. O ATAQUE AO SENTIDO, AO PENSAMENTO, À HISTORICIDADE

Anulam-se todas as determinações intra e intersubjetivas, como se os comportamentos ocorressem num sujeito sem história, sem conflitualidade interna, isolado do seu contexto. Reduz-se a criança ao seu comportamento, não dando atenção à globalidade do seu desenvolvimento no qual a perturbação se inscreve. As particularidades de cada criança, a sua maturação, a dependência do meio, o seu psiquismo em vias de estruturação ou o seu sofrimento são ignorados, ao mesmo tempo que é retirada toda a abordagem sistémica, afectiva e relacional e ainda o “carácter positivo do sintoma” que daria às condutas um significado diferente do simples défice.

4. UM OLHAR FOTOGRÁFICO, REDUCIONISTA E IMEDIATISTA

Substitui um olhar dinâmico, que se move para a frente e para trás.

A etiqueta fica colocada, crónica.

5. UMA GIGANTESCA REGRESSÃO CIENTÍFICA

Reintrodução do dualismo orgânico /psíquico; inato /adquirido; sujeito /ambiente.

Faz-se tábua rasa das concepções e investigações actuais a respeito de como se processa o desenvolvimento infantil e humano. Sabemos que os factores internos e externos, genéticos e ambientais se articulam desde o início da vida, que todos são indispensáveis ao crescimento – epigénese – e que é da sua síntese e interpenetração que surge o sujeito… e o cérebro. Se levarmos em consideração os estudos sobre a estruturação psíquica, sabemos, por exemplo, que a capacidade de dar atenção seletivamente não é um processo simples, pelo contrário, é a consequência de um processo complexo que pode sofrer contratempos e que se modifica com o tempo. O mesmo se pode dizer em relação ao domínio da motricidade e ao controle dos impulsos. O que julgaríamos já assente, decorrente da investigação sobre o desenvolvimento humano, sobre o desenvolvimento da criança, as investigações e os estudos neuropsicológicos sobre o papel da interação e, nomeadamente, sobre a interacção precoce na construção das funções psíquicas e da personalidade (vide os estudos de Boris Cyrulnik) regressa ao século passado.

6. A  CAMUFLAGEM

Este modelo “neurobiológico” também MASCARA AS RESPONSABILIDADES POLÍTICAS, SOCIAIS, EDUCACIONAIS E FAMILIARES no mal-estar de algumas crianças e jovens.

7. A ÉTICA

Mas são igualmente, questões ÉTICAS que se levantam, pois que, nunca o esqueçamos, os modelos comandam as práticas e as escolhas terapêuticas.

A defesa da Saúde Mental na infância e adolescência pede-nos (exige-nos) que denunciemos esta situação e que, em todos os lugares onde nos encontremos, procuremos fazer-lhe frente.


Nenhuma intenção pretensamente sensível ao sofrimento familiar, infantil ou juvenil, com o argumento de que “há que mitigar danos “e por isso medicar, pode justificar a adesão e a propagação desta forma de se pensar e de se intervir em Saúde Mental Infantil e Juvenil. Nenhum sofrimento ou impotência profissional diante da complexidade e quantidade dos casos que nos chegam, da falta de tempo ou da falta de meios, deverá levar-nos a tolerar esta negligência à Saúde Mental na Infância e Juventude.

A defesa da Saúde Mental na infância e Juventude pede que encontremos tempo para ouvir e para procurar compreender os sinais de sofrimento e mal-estar infantil e familiar, equipas multidisciplinares com tempo para refletir e encontrar pontes para um modificável. Sabemos que não há soluções mágicas, nem únicas, nem simples. Em conjunto procuraremos caminhos.

Estamos conscientes de que não será fácil o caminho e que encontraremos pela frente a resistência de poderosos interesses instalados, a ignorância e, também, importantes desorganizações ou desamparos familiares, numa época em que a procura de soluções rápidas e imediatas convive com os ataques ao pensamento, à simbolização e ao reconhecimento do humano na sua globalidade e dignidade.

Será, pois, necessária toda a sabedoria, todo o conhecimento, toda a sensibilidade e toda a coragem. A Ciência e o Humano estarão connosco! Como escreve Shakespeare em A Tempestade:


“(…) Coragem esforçados corações! Coragem!

Eia valentes! Ânimo, ânimo, companheiros!

Soprai ventos, rebentai, mas dai espaço para a manobra! "


Parafraseando Rainer Maria Rilke em As Anotações de Malte Lauridis Brigge:


“(…) É Possível? Sim é possível! Porém, se tudo isto é possível, se tem mesmo só uma aparência de possibilidade, então, por tudo o que há no mundo, é preciso que aconteça alguma coisa. O primeiro indivíduo, o que teve estes pensamentos inquietantes, deve começar a fazer alguma coisa do que se perdeu”.

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