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Carlos Amaral Dias

Psicanalista, Lisboa

1946 - 2019

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VASCO SANTOS - Gostaria que falasse um pouco da sua infância e desta atitude que permite dizer: "tive uma infância feliz; trabalho também esse de uma espécie de reconstrução imaginária do próprio tempo.

 

CARLOS AMARAL DIAS - Não tive propriamente uma infância feliz. Sou filho único, os meus pais eram ambos enfermeiros, e o meu pai tinha uma visão de vida muito ligada à ideia de construção da sua clínica, de tal sorte que sacrificou e amputou muitas das partes da vida à ideia da realização desse projecto, que construiu: é a Clínica de Santa Filomena em Coimbra. Vivi na Clínica dos Olivais, também em Coimbra, entre os meus primeiros meses de vida e os 7-8 anos quando fui para a Clínica de Santa Filomena da qual só vim a sair para ter a minha primeira casa aos 9 anos. Não posso dizer que tenha tido uma infância feliz iá que tive o meu primeiro quarto, como espaço próprio, aos 9 anos. Antes disso vivi em clínicas, com tudo o que foram experiências, do ponto de vista sensorial e perceptivo, absolutamente tremendas e de grande violência. Na primeira clínica onde vivi, o quarto em frente ao meu, era onde se faziam os eletrochoques e, na altura, não se faziam os eletrochoques com anestesia. O doente entrava numa espécie de crise epiléptica induzida através da postura dos eléctrodos, e aquilo era de uma violência impressionante. Via, também, frequentemente, a passagem de baldes de alumínio cheios de pedaços de órgãos internos que saíam dos blocos operatórios para outras partes do edifício da clínica. Vivia numa espécie de R/C-cave, via passar esses baldes e lembro-me perfeitamente de ter tido, aos meus 2-3 anos, o que sei hoje ser uma alucinação visual. As escadas interiores vinham oblíquas, vincavam-se num patamar e depois voltavam a abrir para baixo, e o meu quarto era nesta parte de baixo onde existia uma mesa que tinha provavelmente coisas ligadas à enfermagem. Lembro-me de ter tido uma alucinação, de ver o meu corpo completamente coberto de baratas, em cima daquela mesa. Tive um horror, algo a que Bion chamaria de terror sem nome. Descobri, também nessa altura, a sexualidade, fiquei a saber que se injectava urina das grávidas nas orelhas das coelhas porque era assim que se ficava a saber se as mulheres estavam grávidas - não havia outra forma de o fazer. Era um mundo tremendamente perceptivo e sensorial. Tive uma infância em que o recurso, quase imperioso, de dar significado verbal, acústico e simbólico, ao mundo que me rodeava era de tal maneira sumamente intenso, que tenho a consciência, hoje, de que se não tivesse feito isso muito precocemente, provavelmente, teria entrado num mundo enlouquecedor - porque era aterradora a explosão sensorial que me rodeava em criança.

 

Nesse mundo desolado, kafkiano, o psiquismo desenvolve a cognição precocemente para sobreviver.

 

Muitos psicanalistas explicam isso. Em primeiro lugar Winnicott, que explica a hipermaturação cognitiva das crianças que são "vítimas" de um bombardeamento sensorial que é incongruente ou inconsequente, a menos que a criança muito rapidamente lhe atribua significações precoces de maneira a poder organizar uma outorgação mínima de significado e de racionalidade a um mundo que, de outra maneira, não teria significado nem racionalidade alguma. Não me surpreendeu, à posteriori, ter sido assim. Depois quando fui para a Clínica de Santa Filomena, que os meus pais começaram a construir já eu tinha 6-7 anos, tive aí uma boa história, uma história muito "divertida". Foi uma história de Carnaval, vestiram-me de cowboy, e nessa altura a clínica estava toda em obras, e havia uma zona feita em madeira que dividia dois quartos, o dos meus pais e o meu. Vivíamos no meio das obras e eu então abri a porta que dividia os 2

quartos, puxei de uma pistola de cowboy e matei-os aos dois. Tinha uns 7 anos, matei os dois, que se fartaram de rir perante a morte simbólica deles. Mais tarde, percebi que aquilo não tinha graça absolutamente nenhuma.

 

Tinha sido a realização de um desejo?

 

É. Tinha uma zanga contra ambos pela maneira como o mundo a que estava entregue ser um mundo de uma impressionante impregnação sensorial e, muitas vezes, de grande dificuldade de apreensão e de organização de significados. Lembro-me, que aos 7-8 anos, tentei fazer umas asas com lençóis e pôr-me no telhado da clínica e lançar-me cá para baixo, o que é, para todos os efeitos, um equivalente suicidário. Isto mostra como esse período foi turbulento na minha vida e que só terminou, aparentemente, quando aos 9 anos, me é dado um quarto, mas que, ainda, esse não era bem meu. Era um quarto dividido com a minha avó, com a mãe do meu pai. Esse quarto dava para a biblioteca do meu pai, o que era fantástico, porque era ali que, como iríamos ver mais tarde, tudo encontrou forma de se resolver. Aos 9 anos comecei rapidamente a entrar em contacto com todos os livros que ele tinha, e por volta dos 10 tinha lido todos os livros dele. Numa compulsão de leitura absolutamente inacreditável. Passava horas por dia a ler. Saía da escola e punha-me a ler. Lia inapelavelmente. Depois o meu tio, o irmão do meu pai, foi para lá viver e estudar medicina e li tudo o que ele tinha e tudo o que ele não tinha.

 

Mas nessa idade havia coisas, certamente, que não entendia, era uma leitura de preenchimento, de evasão, ou havia algum critério?

 

Havia um critério porque rapidamente o pedi ao meu tio e, aos 10-11 anos, tinha um critério de leitura. Comecei a perceber que havia critérios, que havia aquilo a que se chamava uma escrita clássica, percebi que havia uma escrita que tinha sido subjacente à escrita, que tinha sido a escrita grega e a escrita romana, mas sobretudo a grega. Depois comecei a organizar uma espécie de hierarquia de leituras, sobretudo dentro da literatura que me foi dada. O meu tio foi-me dando uma espécie de hierarquia de leituras e eu, de bom grado, aceitei-as todas porque, de alguma forma, essa necessidade de organização da realidade era uma coisa que me perseguia desde pequeno. Essa consciência de que há uma continuidade muito grande entre a minha curiosidade intelectual infantil, quase compulsiva, dos 9-10 anos e a minha necessidade de dar nome às experiências mais primárias foi muito rapidamente percepcionada. Eram-me absolutamente necessárias essas experiências de compreensão e organização da própria realidade. Lembro-me de que quando li, aos 12 anos, Recordações da Casa dos Mortos de Dostoievski, ter percebido aquele mundo carceral, prisional, toda aquela textualidade. Ainda hoje acho aterradora, a experiência que eu vivi nos meus primeiros anos de vida, a experiência de viver num mundo de partes do corpo separadas.

 

Que nome dar a esse mundo escuro?

 

Eu vivi num mundo de corpos sesionados, corpos partidos, divididos, premindo que eu lhes desse alguma espécie de significado e que percebesse o que é que se passava, realmente, naquele mundo que era completamente diferente. Nem sequer era o mundo da assepsia cirúrgica de hoje. Na altura via-se tudo: eram os baldes de alumínio cheios de sangue, de pedaços de corpos, que passavam à minha frente de um lado para o outro. Como é que era possível viver no meio daquele mundo? Mais: como é que era possível que os meus pais não entendessem a brutalidade disso? Houve um período em que eu estive profundamente zangado com eles. Nesse período, fiz muitas coisas quase parassuícidas: aos 3 anos subi ao depósito de água de Coimbra, que era gigantesco, situado por trás da Clínica dos Olivais. A distância entre os degraus era maior do que o meu corpo de 3 anos e consegui subir lá acima e de repente olharam e viram-me lá no alto, minúsculo, vieram os bombeiros e alguém teve o bom senso de não me fazer entrar em angústia, de me ajudar pela palavra, esse alguém foi a minha mãe. Tenho a certeza absoluta que se lá tivessem ido buscar-me, teria caído.

 

 

 

Também por volta dos 2 anos fiz uma "fuga de casa" até à baixa de Coimbra, sozinho. Ou seja, eram claramente manifestações de angústia. Tinha muitas coisas estranhas para uma criança. Não resulta uma criança viver num mundo de bombardeamento sensorial dessa natureza. Só muito mais tarde, alguém me falou de uma experiência parecida. Foi um paciente filho de um guerrilheiro angolano, do MPLA, que me falou da brutalidade da sua vida em plena guerrilha e do pouco respeito pela morte e pelo corpo. Foi talvez a única pessoa com quem pude ter o sentimento de compartilhar um mundo tão absurdo.

 

Na escola, foi um aluno integrado ou apocalíptico?

 

Fazia aquilo dentro dos mínimos. Não achava graça nenhuma. A partir de um certo ponto criou-se uma discrepância gigantesca. Quando acabo a quarta classe entro para o liceu e estudo coisas que não me interessavam minimamente. A única cadeira que gostava era matemática. Divertia-me a fazer os cadernos de exercícios e chegava ao fim do primeiro período e já tinha feito os do segundo e do terceiro e era a única coisa. De história, já nem me lembro. Era, penso eu, a do Matoso, que era uma coisa que me matava a cabeça. Às vezes era escolarmente penalizado por alguns excessos e impaciência.

 

A adolescência pode ser vista como um segundo momento de individuação, de construção da identidade, de projeção no seio do grupo de partes do self que necessitam de ser projectadas no gang (Meltzer, 1973) para que a organização emocional se faça. Como foi a sua adolescência?

 

Posso dizer que fui relativamente equilibrado porque de um lado tinha os meus amigos ligados ao meio intelectual, com quem compartilhava as minhas preocupações intelectuais, políticas e filosóficas e, do outro lado, por razões ocasionais, tinha amigos ligados ao desporto, ao râguebi - fui jogador de râguebi muito cedo. Frequentava e dirigia o Centro de Estudos Cinematográficos da Associação Académica de Coimbra, circulava nesse meio e ao mesmo tempo jogava râguebi. Já no segundo ano da Faculdade interessava-me pelo Jazz, pela música clássica e por Brassens. Vivia em dois mundos completamente diversos. De um lado, um mundo mais ligado ao corpo, a algum gozo físico do desporto e, do outro, um mundo intelectual, integrado num grupo ferozmente crítico, que pouco tinha a ver com a tradição coimbrã. Liamos a beat generation, Kerouac e também Faulkner, Virgínia Woolf, Eliot, E. E. Cummings, entre outros autores da literatura norte-americana e inglesa. Tínhamos uma formação cultural paralela, que nada tinha a ver com a formação cultural da chamada esquerda tradicional portuguesa.

 

E o seu interesse pela medicina?

Foi uma escolha pragmática. Porém quando fui para medicina, não queria ser médico, queria ser psiquiatra. Quando cheguei ao 7° ano do liceu pus o meu pai perante duas alternativas: ou ia para Paris estudar jornalismo (não havia em Portugal nenhuma escola para estudar jornalismo) ou ia para medicina para ser psiquiatra. Podia ter sido uma daquelas pessoas que entra para medicina e depois a meio do curso descobre que o que quer é ser cirurgião, ou obstetra, até porque na família seria isso que seria lógico, que faria dinheiro. Mas não, eu queria ser psiquiatra. Porquê? Porque os mistérios da cabeça interessaram-me muitíssimo a partir de um certo ponto e o contacto com alguns textos de Freud foi determinante. Quando li pela primeira vez os Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905) achei essa obra, paradoxalmente inebriante e decepcionante, "mecanicista". Apesar de tudo, era o melhor que eu tinha lido até aí sobre o problema da sexualidade e explicava-me muitas coisas da minha própria sexualidade infantil e muitas outras ligadas ao meu próprio mundo infantil, o que me ajudou. Lembro-me "ingenuamente" de ter pensado que se podia escrever melhor, ou dizer melhor, sobre o tema. Descobri mais tarde que Freud se encarregou ele mesmo de o fazer.

 

Tive ainda o privilégio, quando fiz psiquiatria, de estudar grandes pensadores. Barahona Fernandes, por exemplo, era um homem que pensava filosoficamente a vida. Quanto mais não seja, podíamo-nos opor a eles.

O estudo da fenomenologia na psicopatologia geral foi fundamental na minha formação psiquiátrica. Actualmente há pouca preocupação com a compreensão do que é um fenómeno psíquico. Na altura sim. Não interessava tanto saber quadros clínicos, interessava sim a compreensão do que é um fenómeno psicológico, uma ideia patológica, uma alucinação, como compreendê-los, como torná-los visíveis, à luz de um determinado processo do saber. Isso marcou toda a minha geração, assim como marcou toda uma geração psiquiátrica anterior à minha, em Portugal e fora de Portugal. Em França, Lacan tinha um apreço extraordinário pela fenomenologia alemã e pelo saber fenomenológico.

 

Eu tive uma paixão pelo Schneider, pelo Jaspers ou pelo Klaus Conrad, pelo que tinham trazido de original para a compreensão do psiquismo humano. Mas, A Esquizofrenia Incipiente de Klaus Conrad (1960) é um livro que hoje ninguém lê. Lembro-me da paixão que tinha pela leitura dos livros destes autores que me apaixonaram talvez mais que certos livros de psicanálise que senti na época muito mecanicistas, como uma espécie de procura de uma grande chave que resolvesse todas as questões. Em Conrad encontrava uma outra perplexidade, quando descreve os primeiros momentos da esquizofrenia: o trema, o sentimento da perplexidade do psicótico como alguém que antes de abrir a cortina do palco sabe que há milhares de pessoas que estão lá do outro lado, para o verem, e ele tem a sensação do olhar de toda a gente em cima dele, e depois da apofania, do apocalipse e do conceito de nastrofé. Estas descrições de Conrad são essenciais, de uma beleza e estética extraordinárias, que eu não encontrava na maior parte dos psicanalistas. Aí reconheço que alguma psiquiatria teve em mim, no bom sentido do termo, um efeito extraordinariamente perplexizante. Outra, de natureza mais biológica, teve um efeito mais empobrecedor. A psiquiatria biológica tinha pouca importância, não é que se fizesse menos psiquiatria biológica do que se faz hoje, o que é uma coisa paradoxal. Já existiam neurolépticos, antidepressivos, por exemplo a cloroimipramina e a imipramina. O que é curioso é que nos psiquiatras ditos de orientação biológica, a esperança messiânica de que a questão da depressão, por exemplo, se resolvesse com a introdução de um antidepressivo, era nula. Nunca tive o sentimento, mesmo naquela escola que eu frequentava, que era a escola de Coimbra, de que houvesse uma espécie de convicção messiânica de que a cloroimipramina, por via endovenosa, e com subida progressiva no soro, fosse resolver o problema de todas as depressões. Ou que as depressões se esclareciam e se esgotavam no problema da serotonina. Isso era impensável até por uma razão: a maior parte das pessoas que se interessavam por psiquiatria no meu tempo, a geração que se interessava por psiquiatria em Lisboa, no Porto, ou em Coimbra, eram pessoas críticas, inteligentes e cultas. O que rapidamente caiu em desuso, ou seja, rapidamente o número de pessoas que se interessam pela psiquiatria e que não se interessam minimamente pelos fenómenos psíquicos aumentou extraordinariamente. Uma geração que se interessou verdadeiramente pelo mundo e também se interessou pela psiquiatria isso foi algo de finais dos anos 60-70 e parte dos anos 80. Depois disso entrou claramente em queda.

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É psiquiatra, psicanalista ou um comentador do mundo?

Penso que sou as três coisas. Sou psiquiatra, em primeiro lugar tirei a especialidade de psiquiatria, faz 30 anos que sou psiquiatra. Em 2006, fará 30 anos que fui membro candidato da Sociedade Portuguesa de Psicanálise, o que mostra também que uma carreira estava ligada à outra, ou seja, fiz uma coisa ao mesmo tempo que fiz a outra. Fiz a formação psicanalítica ao mesmo tempo que a formação psiquiátrica; não fui capaz nunca de distinguir uma coisa da outra, e fui muitas vezes psiquiatra e ainda hoje faço muitas vezes psiquiatria, quando é preciso, quando acho que é necessário medicar um paciente, medico um paciente. Porque é que não hei-de fazê-lo? Não tenho disso nenhuma visão religiosa, escatológica. A minha intervenção psiquiátrica tem um princípio, um meio e um fim, não tenho nenhuma ilusão de que possa ir mais longe. A minha intervenção como psicanalista já é outra coisa, embora não tenha, diga-se de passagem, uma grande expectativa. Como psicoterapeuta tenho alguma expectativa terapêutica, como analista não tenho expectativa terapêutica nenhuma. E uma coisa que eu verifico ao fim anos. Todos os casos nos quais tive grandes sucessos terapêuticos foram os casos em que nunca tive expectativa de sucesso terapêutico nenhum. Freud tinha, neste aspecto, absoluta razão. Blanchot também fala de uma espécie de neutro que vai no mesmo sentido. Isto é, os pacientes onde não tive expectativa de cura, de os tratar, tinha a expectativa apenas de os analisar, esses foram os que correram sempre melhor.

 

A psicanálise, ainda que decorrente do desenvolvimento da ciência do fim do séc. XIX, emerge, intrinsecamente, como uma criação. Quer problematizar as condições históricas e meta-históricas que determinaram o aparecimento do paradigma psicanalítico?

 

Também se pode dizer que, na psicanálise, há qualquer coisa de muito semelhante à astronomia. Porque ao longo da obra de Freud assiste-se a uma construção do próprio objecto psicanalítico, da complexidade do objecto psicanalítico; ou seja, esse objecto não lhe é dado à partida é preciso ampliar o telescópio do sujeito que escuta. O que lhe é dado à partida é qualquer coisa que ele começa por nomear, de uma forma simples, como a questão do inconsciente, qualquer coisa que também aproximaria Freud de um conjunto de autores que na época se preocupavam com a questão do inconsciente, Janet e outros. O que lhe é dado à partida é a psicoterapia dos pacientes histéricos, que interessava muitas pessoas desde Charcot, Bernheim, Breuer, para não falar de muitos outros. O que é dado à partida, aceite-se ou não, é, evidentemente, o objecto primitivo do conhecimento, isto é, o objecto rudimentar do conhecimento: a existência de fenómenos que não são conscientes. A preocupação de Freud não foi que se esgotasse aí essa descoberta, ampliou-a para uma relação complexa que rapidamente elabora entre os sistemas da percepção/consciência. Introduz, de forma inaugural, o problema da percepção como um problema central na relação entre a percepção e a consciência, introduz o sistema do inconsciente, introduz o sistema do pré-consciente e rapidamente começa a complexificar esse pensamento. Em 1895, ele escreve os Estudos sobre a Histeria, em 1900, A Interpretação dos Sonhos ou A Ciência dos Sonhos, e no capítulo VII, há já toda uma linguagem que dá uma outra perspectiva sobre a questão, é outra coisa.

Essa outra coisa vai-se propalando ao longo da obra de Freud. Vai-a complexificar progressivamente e proceder de uma forma muito interessante no sentido da amplificação e síntese. A última síntese, inacabada, Esboço da Psicanálise (1940), é disto um testemunho vivo. Ele expande, criando novos conceitos elevadissimamente complexos. Toda a obra de Freud é uma obra construída sendo, ao mesmo tempo, uma obra criada por um só homem, do pensamento de um homem.

 

Ao singularizar Freud, aproximamo-nos de um mito fundador? No círculo de Viena, no círculo húngaro, austríaco, nesta mundividência quase visionária do fim do séc. XIX, princípio do séc. XX, houve múltiplos contributos não propriamente de psicanalistas, mas de antropólogos, filósofos, escritores, todo um universo epistemológico incandescente, científica e culturalmente...

 

Mas eu estava a falar da psicanálise como criação. Evidentemente que Freud sustenta essa criação num conjunto de paradigmas científicos do seu tempo e isso é completamente diverso, ou seja, uma coisa é esta co-construção da psicanálise em conjunto com a sua própria vida. Aliás, tem um livro chamado Estudo Autobiográfico (1925), que retrata claramente como uma coisa é quase indissociável da outra. A psicanálise é construção de um homem mas, ao mesmo tempo, não é de um homem qualquer.

Primeiro, Freud era um homem que terá lido cerca de 5000 autores o que, ainda hoje, constitui uma raridade. Segundo, era um homem muito bem informado sobre as ciências do seu tempo e com preocupações epistemológicas evidentes. A construção da metapsicologia dá conta dos paradigmas científicos do seu tempo, dos paradigmas biológicos, evolucionistas, dos paradigmas que vêm do problema da energia e, portanto, dá conta de tudo aquilo que se passa à sua volta. De alguma forma tenta criar uma espécie de ciência, ou de disciplina científica que ele tenta enquadrar no modelo geral das ciências. Freud sempre afirmou, de maneira absolutamente persistente, que a psicanálise não segrega uma nova visão do mundo. Em Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (1933) diz claramente que a psicanálise não segrega uma nova visão do mundo, a psicanálise faz parte do movimento científico em geral. Não queria que se criasse à volta da sua obra qualquer espécie de messianismo ou de religiosidade. Também é verdade, que outros aspectos, como o facto de Freud ser judeu, contribuíram decisivamente para a criação da psicanálise. Esta discussão ainda hoje permanece. Não será que a psicanálise estaria apta a vir a ser descoberta, ou seja, seria preciso um homem como Freud, ou poderia ter acontecido em qualquer metrópole culta da Europa naquele período? Do meu ponto de vista, não era obrigatório que fosse Freud, mas considero que a relação entre um pensamento simultaneamente científico, um pensamento que se caldeava muito no mundo científico do seu tempo e um pensamento vindo da linhagem familiar, um pensamento judaico, põe a interpretação (Deutung), como um lugar chave na modificação de um sistema que é observado. Freud propõe-nos um modelo análogo ao das ciências naturais, porque o paciente está deitado no diva, o paciente é escutado, o analista não intervém com as suas próprias associações, observa, propõe a neutralidade, mas a modificação desse sistema provém de uma actividade mental específica da parte do analista: a interpretação. Este conceito, tão simples, repõe toda uma história mítico-cultural judaica, o chamado pensamento talmúdico, que é interpretativo; ao contrário do cabalístico, que é divinatório. O pensamento talmúdico é um pensamento da interpretação. Penso, ao longo da leitura da obra de Freud, que não é a escrita que é significante. E a leitura da escrita que é significante. O que torna significante a escrita é a leitura da escrita. Ele chega a falar a propósito do sonho, que o sonho teria um texto originário e penso que não é por acaso que ele põe a palavra "texto". Não penso que fosse fácil a alguém que não viesse de um mundo onde a interpretação da palavra faz a palavra, porque a Bíblia é o livro impossível. É impossível escrever o livro. O pensamento talmúdico responde a esta impossibilidade interpretando a obra, submetendo-a sempre a uma reinterpretação e a uma reinterpretação da interpretação e por aí fora. É um processo que cruza dois níveis absolutamente fascinantes: criar, de um lado, um paradigma baseado nos modelos biológicos do seu tempo e ao mesmo tempo fazer interferir nesse paradigma qualquer coisa que é a área de outorgação da significação, de uma significação outra, através da leitura que se faz de uma escuta. É por causa disso que é interessante que muitos psicanalistas digam, e eu concordo, que a escrita de um psicanalista é um sintoma do psicanalista: o psicanalista lê, não escreve. Lê no que ouve, lê outras coisas no que ouve e, nesse sentido, toda a escrita é da ordem de um sintoma, porque, no limite, o que conta para o psicanalista é a capacidade de escuta da fala que está ali, que propõe e convoca uma interpretação. Isso reconvoca uma coincidência curiosa: em 1856, ano em que nasceu Freud, nasce também o filósofo Husserl, o filósofo da significação. Essa coincidência histórica, no interior da psicanálise, repõe dois níveis epistemológicos do conhecimento que em si mesmos, aparentemente, se contradizem: observar como se observa um facto natural e, ao mesmo tempo, vê-lo como um efeito que é da ordem da linguagem e da reconstrução psicológica do sujeito. Assim, trata-se mais de um acto hermenêutico do que, propriamente, de um acto científico-naturalista.

 

 

Ou do conhecimento positivista.

 

Ainda é uma posição vigente na psicanálise, até Bowlby, um seu, defensor, coloca-a, porém, como uma ciência natural. Tentou substituir a mitologia dos instintos por uma mitologia dos vínculos. Também há toda a tendência hermenêutica que tenta fazer desaparecer a recontextuação que Freud traz da psicanálise enquanto psicologia do corpo. A psicanálise nasce, contudo, deste cruzamento. É este cruzamento que a torna específica: cruzamento entre o que vem do corpo, a decisão que vem do corpo (a analidade, a oralidade, etc.) e a relação entre o corpo e a linguagem que o exprime como pseudopodia, como emissão que vem do corpo pela palavra. A palavra é uma, como um corpo que se expande através da linguagem e ao mesmo tempo é por uma linguagem que se chega à linguagem do outro que é o corpo. Isso cria uma densidade epistemológica específica que, penso, Ricoeur, Bachelard não

explicitam suficientemente. Ricoeur teve de fazer uma espécie de ablação no modelo psicanalítico, exorcizar dele tudo aquilo que não fosse a faceta hermenêutica que a psicanálise convoca, sem que ficássemos com a percepção da freudiana como construção e criação. A psicanálise criou uma singularidade nos sistemas científicos para a qual, talvez, não encontremos ainda a possibilidade de a pensar como qualquer coisa sempre da ordem de um pós-paradigmático e não de um paradigmático. Até a própria construção do saber psicanalítico, em Freud, é feita ao arrepio das ciências neurológicas ou psiquiátricas do seu tempo.

 

Ou sexológicas.

Ou sexológicas. Observavam-se cem pessoas para se chegar à conclusão do que era uma alucinação ou um delírio, ou seja, era por acumulação que se explicavam os quadros clínicos. Freud com um caso fazia a teoria. Observa O Homem dos Ratos e faz uma teoria.

 

Levantam-se, neste domínio, questões que continuam em debate e que Popper colocou a propósito da falsificabilidade, que são os critérios de verificação, da verdade ou certeza em psicanálise.

 

A questão popperiana se expõe no interior de dois sujeitos epistémicos. Isto é, para o psicanalista a confirmação ou infirmação das suas interpretações é verificável pela evolução do seu paciente e pela resposta que o paciente dá à interpretação. Há, inclusivamente, critérios que foram criados para a verificação da interpretação, desde o célebre critério "Ah! Nunca tinha pensado nisso", esse critério em que, subitamente, o paciente entra em contacto com algo; ou quando o paciente nos nega a associação seguinte, confirma a interpretação do analista. Portanto, há um conjunto de critérios que estão mais ou menos elencados, seja segundo o modelo freudiano, kleiniano, ou bioniano. Há critérios elencáveis para ver aquilo que se passa no campo estrito da relação psicanalítica, para descrever como a falsificabilidade da resposta, ou seja, da hipótese - tal como em qualquer outra ciência - nasce de um terreno intuitivo. No psicanalista não é tão intuitivo quanto isso porque essa intuição está caldeada pelos saberes teóricos que ele próprio constrói. Isso propõe uma interpretação. Essa interpretação é a forma de intervir no sistema. A resposta que o sujeito dá a essa interpretação cria um critério muito semelhante a um critério de verificabilidade, ou falsificabilidade da resposta à la Popper, porque a interpretação pode ser infirmada pelo paciente e, portanto, falsificável. Isso é o dia-a-dia do analista, é pensar "por aquele caminho não devo ir, tenho de experimentar outro". Não me parece que isso seja um problema dentro do território da psicanálise, é um problema, outrossim, de saber quais são os níveis em que a psicanálise pode dialogar com outros territórios, o que é uma coisa completamente diversa. Mas não penso que isso seja um problema central para dentro da psicanálise, é, antes, um problema central para fora da psicanálise.

 

Em resumo, podemos dizer que Freud partiu de três vectores fundamentais: a interpretação do sonho e do sintoma neurótico, a interpretação da cultura e a introdução da pulsão de morte. Freud faz um debate com a Biologia, faz um debate com a Sexologia que, aliás, surge também na viragem do séc. XIX, e inventa um método onde tudo passa pela palavra e sem a qual não se poderia ter acesso às representações mais inadmissíveis para a consciência, nem aos diferentes benefícios do sintoma.

 

Absolutamente de acordo porque, justamente, é o problema da cura pela palavra e do que a palavra traz consigo, e a palavra, para Freud, traz consigo o corpo.

 

Traz o corpo falado...

 

...é um corpo falado, eis o problema. Tudo o que nós dizemos e sempre qualquer coisa que vem do corpo. E sempre o corpo que fala através da nossa linguagem. Como é que a palavra em psicanálise nos interessa? Interessa-nos enquanto tal? Não. Ela interessa-nos enquanto lugar onde se abre a palavra para outra palavra, a escuta do analista não é uma escuta do que o paciente diz.

Não é uma escuta pragmática.

 

É uma escuta equivocada do que o paciente diz porque provoca sempre um deslize sobre a palavra, ou seja, o que a palavra do analista faz é fazer deslizar o que o paciente diz para um outro lugar qualquer onde aquilo que ele disse passou a ser uma outra coisa qualquer. Esta coisa à qual dei o nome do sindroma apatetado do psicanalista - fazemos de pateta perante uma contradição - parte do princípio de que aquilo que a pessoa disse é sempre um mal-entendido que até está presente naquilo que disse, quando o disse, na forma como o disse e no lugar em que o disse. A escuta em psicanálise é sempre assim, mesmo quando se procede apenas a uma operação explicativa à maneira de Freud em Construções em Análise. Mesmo quando se procede dessa maneira: "outrora você era o filho preferido da sua mãe, depois nasceu um irmão, você sentiu-se a bandonado por causa disso, e por aí fora". O paciente procurou-nos porque estava deprimido, triste e nós vamos dizer: "não, outrora você sentiu-se abandonado e é isso que faz com que você hoje viva com um sentimento abandónico". Mesmo neste caso, toda esta interpolação implica lidar com dados objectivos, mas a palavra do paciente passou para outro lugar. No modelo kleiniano, por exemplo, o analisando diz: "desculpe, hoje está a chover imenso, vou molhar-lhe o diva todo". Como o analista kleiniano trabalha sob a ordem da fantasia, e da fantasia inconsciente, convoca que o paciente tema que o diva seja uma espécie de corpo da mãe, que ele irá molhá-la e uriná-la, etc. O analista lacaniano poderá provocar apenas um deslizar do significante. Um analista como eu aposta nas três, podendo jogar com cada uma delas. Há dias, por exemplo, um paciente meu, bastante obsessivo - e como todos os obsessivos terá um problema na relação com o pai - estava a descrever-me qualquer coisa sobre o pai que era bastante interessante e depois disse: "Ah! mas isto é apenas um pormenor". E eu disse: "Pormenor ou pai menor? Não percebi o que você disse". Remeti-lhe, assim, o significante para um outro lugar. Qual é a palavra do analista? É uma palavra que agarra na palavra e põe a palavra noutro lugar qualquer, pela disrupção que provoca. Não é por acaso que Lacan fazia, tecnicamente, esse deslizar do significante, talvez por conhecer bem a utensilagem da linguagem dos surrealistas e de ser capaz de a utilizar no interior do campo psicanalítico.

 

Se o analista não perceber o efeito da surrealidade na linguagem, utiliza, tão-só, o naturalismo da própria língua. O processo psicanalítico repousa - como ensinou Bion - na dinâmica que se cria no campo analítico, estabelecida pelas influências recíprocas entre o par analítico. O analista é sempre diferente para cada paciente.

 

Exactamente. Penso que o analista, tem de ser um globetrotter das teorias, quer dizer, não é aquele que acrescenta mais teorias, mas aquele que é capaz de lidar com as teorias. A palavra não é uma coisa que exista. O analista coloca a palavra noutros sítios, não é no lugar onde ela existe mas onde ela insiste, onde ela persiste como efeito do inconsciente, como deformação, ou seja, é o lugar da persistência ou da insistência. A insistência do efeito do inconsciente na linguagem ou a persistência desse efeito. O que interessa o analista é esse efeito da deformação gerado para que o analisando se dê conta daquilo que está omisso.

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Mas isso fica a dever-se a quê?

 

Fica a dever-se, primeiro, ao lugar que Freud ocupava na cultura do seu tempo e ao não-lugar que os psicanalistas ocupam na cultura do seu tempo, ou seja, à espécie de cisão entre o pensar psicanalítico e a contemporaneidade. Não quer dizer que os psicanalistas não pensem coisas interessantes - eles pensam coisas muito interessantes - mas ao mesmo tempo põem essas coisas para dentro do campo psicanalítico e não para fora. Penso que a psicanálise é um instrumento absolutamente essencial para compreender algumas questões do mundo de hoje. Veja-se, por exemplo, a questão do terrorismo. O terror é uma experiência sobre a qual os psicanalistas sabem falar provavelmente melhor do que a maioria de outros profissionais. Os psicanalistas podem contribuir de uma forma notória para se entenderem questões que são convocadas pelo terror, sejam as dos agressores ou das vítimas. Salvaguardadas algumas excepções, os psicanalistas deixaram de falar para o mundo, deixaram de estar num diálogo com o mundo, e este facto retira à psicanálise visibilidade. Repõe-na, apenas, numa espécie de coisa que é discutida dentro dos institutos de psicanálise. Aí mesmo ela vai sofrer, ainda, um efeito de distorção maior porque os institutos preparam (e bem) os psicanalistas em primeiro lugar para serem clínicos. Mas o problema é que ser-se clínico não nos abre os olhos para o mundo e, portanto, por aí mesmo os institutos não podem cumprir uma função que cabe, também, a cada um dos psicanalistas. Ao mesmo tempo, o mundo contemporâneo segrega paradigmas com os quais a psicanálise não se dá às vezes bem, em que fica menos confortável.

Aquilo a que se chama o efeito da pós-modernidade no conhecimento tem repercussão óbvia na psicanálise que é, do meu ponto de vista, o paradigma da ciência da modernidade. A psicanálise é uma ciência que resulta da modernidade porque o poder dado à palavra só é possível pela democracia.

Com o esclavagismo, mais tarde com o feudalismo, o poder estava no Corpo. O poder quando passa para a palavra, quando passa a estar na linguagem – isso é uma coisa que a Hannah Arend percebeu muitíssimo bem – constituiu-se como efeito da modernidade e este efeito atinge o seu ponto mais alto quando a linguagem além de ser poder, passa a ser cura. No efeito da pós-modernidade, através das excessivas basculações paradigmáticas que ela abriga bem como os processos de aceleração histórica, criam à psicanálise novas questões que ela terá de saber resolver. O que está em causa é o lugar onde a psicanálise joga na leitura do mundo, não como algo que segrega uma nova leitura do mundo, mas que permite a outros melhorarem a sua leitura do mundo, a partir de coisas que a psicanálise pode afirmar. Concordo com Otto Kernbergs sobre a necessidade de os psicanalistas voltarem ao seu tempo. Obviamente que não se pode deixar o espaço do mundo entregue aqueles que o não são sem criar uma contrapartida conceptual para as pessoas perceberem qual é o efeito que provoca no tempo a palavra do analista. Tenho sido alguém que tem dedicado muitos anos da vida a fazer isso e com efeitos surpreendentes, por exemplo, nas rádios, TSF e agora na Antena 1, com excelente recepção pública. Isto quer dizer que há um número de pessoas muito significativo que considera que as coisas que nós temos para dizer podem ser interessantes. Utilizo nestes meios muitos conceitos que não vêm da psicanálise, mas que sofrem sempre uma leitura psicanalítica.

Portanto metapsicanalisar a própria psicanálise significa também metapsicanalisar outras formas do saber e entrecruzá-las sob o registo da reconvocação do outro lugar da coisa. Penso que temos todos de perceber a importância dessa intervenção cívica e voltar a Freud que participou activamente em discussões científicas que tinham a ver com questões do seu tempo: Mal-Estar na Civilização (1930) o Futuro de uma Ilusão (1927) entre outros. Não teve medo de interrogar, inclusivamente, a origem do seu próprio povo, em Moisés e o Monoteismo (1939). Essas obras eram lidas por um número infindável de pessoas e não apenas por psicanalistas, pessoas que não tinham ao seu dispor uma coisa que só apareceu mais tarde, a rádio, muito menos uma outra chamada televisão. Temos tendência a esquecer o óbvio, é que os livros hoje existem, mas o resto existe tanto ou mais que os livros. Uma questão como, por exemplo, a questão sexual não desapareceu, simplesmente agora, ela é explorada de maneira diferente. Aliás nunca vi que a questão sexual fosse tão explorada como hoje, deve haver um número infinito de revistas para rapazes, raparigas, homens, mulheres.

 

 

 

Tem uma longa prática clínica, tem uma obra extensa publicada, desde os trabalhos sobre a questão das adições até às questões mais técnicas dos conceitos de identificação projectiva, das relações entre a psicanálise e a política, toda uma investigação epistemológica sobre o pensamento psicanalítico. Andou à volta de Bion e expandiu conceitos de Bion, nomeadamente a sua Tabela, fez uma leitura pessoal de Freud nos últimos anos. O que é que trouxe, de novo, à narrativa psicanalítica?

 

Não trouxe nada porque aquilo que tento é repensar autores, sou, aí, steineriano. Quando muito, coloco autores a falarem através de mim uns com os outros, portanto, apenas sou um carteiro que entrega a carta que foi escrita pelos maiores. Nunca pretendi, nem pretendo, nem pretenderei ter um outro lugar. Agora, esse lugar que parece pequeno, não o é assim tanto. Disse exactamente que me dediquei à obra de Bion e a expandi, de alguma forma, nomeadamente num texto sobre a Tabela [Tabela para uma Nebulosa (1997)]. Indiscutivelmente faço, aí, uma expansão do pensamento de Bion. Também no livro que publiquei com Manuela Fleming, A Função Continente do Analista (1998), faço algumas expansões da obra de Bion.

Embora sempre rigorosamente colado ao texto original, mas repensando, abrindo e abreviando por outros lados, por outros lugares. O mesmo faço agora com Freud. De facto, posso dizer que sou uma pessoa de obsessões. Recordo que a minha primeira grande questão foi a questão da identificação projectiva. Como autor, posso distinguir vários momentos em mim, que atingem o seu paradigma maior em Para uma Psicanálise da Relação (1988), em que tento perceber o conceito de identificação projectiva. Esse modelo da identificação projectiva obrigou-me a ler e a reler Bion para compreender as especificidades que o pensamento dele trazia, os acrescentos em relação ao modelo kleiniano tradicional e foi, paradoxalmente Bion, pela insistência sistemática que ele tem na citação de algumas obras de Freud, nomeadamente, Formulação sobre dos Dois Princípios do Funcionamento Mental (1911), texto, para ele, incontornável e recorrente, que me obrigou a reler Freud. O que tenho feito, ultimamente, é preocupar-me em repor Freud no campo do pensar psicanalítico. Escrevi o livro Freud para além de Freud. Vol. I (2000) que é uma síntese de grandes textos, no segundo volume parto de pequenos textos e desenvolvo-os. Porque faço isto? Em primeiro lugar, porque acho que toda a investigação serve para o próprio investigador. Para um analista, a investigação é sempre da ordem do sintoma: o meu é o retorno a Freud. Poder-se-á dizer que, paradoxalmente, este meu sintoma é o sintoma do meu rejuvenescimento e do meu envelhecimento; a possibilidade de reconhecer o mestre dos mestres e de pegar nele com a humildade com que se pega numa obra rara pela sua inovação. Tentar pôr-me na pele dele, no seu tempo, tentar perceber a letra e o texto de Freud e tentar depois repô-lo na contemporaneidade, mostrar aos analistas de hoje como ainda é imprescindível, fundamental e central lê-lo. É um prazer e um dever. É um sinal do meu rejuvenescimento, porque em termos intelectuais me obriga a ler muitos textos para além dele. Ao mesmo tempo, é um sinal de maturação, porque como clínico, apliquei muitos anos uma técnica analítica interpretativa, baseada num modelo kleiniano - que muito bem Zimmerman descreveu e a que chama objectal-fantasmático, porque é a fantasia que é interpretada, é a fantasia inconsciente que constitui o primum mobilis da interpretação em Klein, portanto, é essa que é reposta no lugar fundamental da interpretação. A seguir, passei para um modelo bioniano que me silenciou mais, pôs-me mais numa posição de ultrapassar um certo solipsismo de setting, porque Bion segrega uma teoria de campo em psicanálise, da relação entre continente/conteúdo, onde o paciente passa a ter muita importância. Isso até que eu descobrisse, num texto de Freud (1923), o chamado manejo da interpretação dos sonhos em psicanálise em que ele não se preocupa em saber como é que se interpreta um sonho, ou o que é que se deve saber sobre os sonhos, mas o que é que se deve dizer naquele momento a um paciente sobre um sonho, afirmando que devemos saber toda a ciência dos sonhos, mas uma análise não é feita para que o analista saiba, é feita para que o paciente saiba. O sem memória e sem desejo de Bion já lá estava. Freud conclui nesse texto: que o analista não se deve preocupar se não interpretou suficientemente o sonho e se não vem no dia seguinte outro sonho, ou outra coisa qualquer, ele deve-se preocupar é com a coisa que está a ouvir; ele não se deve estar a lembrar da coisa que não disse, porque ele deve estar a ouvir aquilo que está a ouvir. Ou seja, a ideia do sem memória, sem desejo estava ali explícita, bem como a necessária humildade do analista. O analista não é um sujeito que exibe um saber, é um sujeito que ajuda o outro a saber sobre ele e sobre o que está a fazer ali.

 

A prática clínica é um modulador fundamental. Na clínica, o analista é confrontado com a prova da realidade permanente e é isso que o separa dos religiosos ou dos filósofos.

 

Exactamente. Esse retorno a Freud transformou-se numa espécie de acto que me põe um desafio, o desafio limite que eu poderia pôr a mim mesmo era escrever um texto paralelo a todos os textos de Freud, sendo que considero tal tarefa impossível, mas se conseguir escrever alguns, escreverei!

 

Lisboa, Maio de 2004, entrevista inédita, realizada por Vasco Santos

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